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Você sabe do que está falando?

Você sabe do que está falando?

O principal aspecto de qualquer texto conceitual é a qualidade do conteúdo. Ele envolve dados, informações e idéias selecionados e organizados que expressam a visão crítico-analítica de quem redige. Tal material costuma estar apoiado em uma ciência, em uma disciplina, em uma área de conhecimento, ou em várias delas ao mesmo tempo. Deve, portanto, respeitar a veracidade de informações, conceitos e dados consagrados — social, cultural e historicamente aceitos como válidos. Isso não significa, porém, que conceitos e dados consagrados não possam ser questionados. Claro que sim. O trabalho intelectual implica questionar posições consagradas, acrescentar novidades, expor idéias. Aliás, o ensaio, em suas principais variantes, é a forma mais significativa de registro dessas novidades.

1. Crítica ou aceitação
O conteúdo de um ensaio pode questionar o conhecimento já existente sobre o assunto abordado ou apoiar-se nele. Sabemos que as mudanças são inevitáveis e necessárias, em todos os campos da atividade humana. Uma postura conservadora em relação à cultura, aos costumes e aos valores, que despreze a possibilidade evolutiva, é uma postura reacionária.

1a. Nada é verdade absoluta
Em qualquer área de conhecimento, não se pode considerar o que foi aprendido como verdade absoluta, imutável. Isso seria um erro. Se observarmos os conteúdos de textos, trabalhos e projetos verdadeiramente revolucionários, seja na Filosofia, seja nas ciências, veremos que estes se caracterizam pela crítica ao conhecimento já existente e, portanto, pela crítica e reformulação da tradição cultural precedente.

Para lembrar:

Não se critica e reformula algo que não se conhece bem.
A superfície da Terra é uma fronteira do oceano cósmico. Deles, aprendemos a maior parte do que sabemos. Recentemente, aventuramo-nos no mar o suficiente para umedecer os pés ou, no máximo, molhar nossos tornozelos. A água parece nos convidar. O oceano chama. Uma parte do nosso ser sabe que lá é o local de onde viemos.
Demoramos a retornar. Estas aspirações, penso, não são irreverentes, embora possam perturbar, independente dos deuses que existem.

Carl Sagan, trecho do livro Cosmos

Textos de conteúdo científico se caracterizam em geral pela crítica do senso comum e do conhecimento existente

2. Idéias próprias
Devemos nos esforçar por pensar “com nossa própria cabeça”, sem desprezar o que foi pensado antes. Essa prática deve ser iniciada, de preferência, na infância, quando todos ainda estamos totalmente abertos ao aprendizado e ao questionamento.

2a. É fundamental revisar e questionar
É importante fazer sempre uma revisão do que sabemos e do que estamos aprendendo. Mas respeitar verdades estabelecidas não significa ser submisso a elas. Veja um exemplo: houve um momento da nossa História em que a Terra era considerada o centro do universo, com o sol e os outros astros girando ao seu redor.

O astrônomo Galileu Galilei (1564 a 1642)
Os estudos de Copérnico e de Galileu, que questionaram essa “verdade” estabelecida, possibilitaram que nossa compreensão sobre essa questão, hoje, seja outra.

Se o homem não tivesse essa capacidade de questionar, ainda viveríamos em cavernas, temerosos dos monstros imaginários que habitam o desconhecido.

3. O questionamento
O questionamento do conteúdo não é algo fora do alcance das situações do dia-a-dia, embora a princípio pareça que apenas textos de grande abrangência estejam sujeitos a esse processo.

3a. Textos de menor alcance
O questionamento existe em todos os textos. Para isso, basta nos fazermos perguntas simples sobre o alcance e os objetivos do texto, seja ele científico, uma redação para o vestibular ou um memorando.

4. O conteúdo do ensaio
Sabemos que todo texto tem um conteúdo. Do poema à carta comercial, da crônica ao ensaio. Só que o ensaio deixa muito claro qual é o seu conteúdo e quem o redige está essencialmente preocupado com ele.

4a. Diálogo com o leitor
Nunca se pode esquecer que não existe conteúdo neutro. Ainda que camufladas, sempre haverá posições políticas, filosóficas ou ideológicas presentes no que se escreve. Ou seja, ao escrever, o redator mantém com o leitor um diálogo em que tenta estabelecer uma relação de cumplicidade e comunicar os seus pontos de vista.

4b. Leitura e posicionamento
E se há essa questão do posicionamento do autor, há sempre a questão da concordância (ou não) do leitor com as idéias expostas pelo autor. É a dialética. Por isso, quando lemos, temos de nos posicionar em relação ao texto.

… ganhador do Nobel, o francês François Jacob, um homem mais reflexivo e filosófico, se disse ‘exasperado’ pela experiência de clonagem da ovelha. ‘Há um bom tempo temos tentado obter prazer sexual sem gerar filhos. Com os bebês de proveta conseguimos filhos sem prazer. E, agora, estamos prestes a ter filhos sem prazer e sem espermatozóide’, diz Jacob. Evidentemente, a estrutura familiar num mundo de clones nunca mais será a mesma.

O procedimento descrito por Wilmut é tão brilhante e convincente que, no fundo, nem precisaríamos de Dolly para saber que ele fez a coisa certa’, diz Curtis Young, professor de ciências animais da Universidade de Iowa, um dos centros de excelência da embriologia experimental dos Estados Unidos.

Trechos da matéria “Dolly, a Revolução dos Clones”,
publicada na revista
Veja de 5 de março de 1997

Dialogando com o leitor, os dois textos acima trazem posições opostas a respeito da clonagem de animais e de homens

4c. Leitura e postura crítica
Muitas pessoas têm medo de se deixar influenciar por aquilo que lêem. Tal medo tem fundamento, porque de fato os autores procuram sempre fazer valer suas idéias e posições. Assumir uma atitude crítica frente ao que se lê ajuda a superar esse temor.

Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei;
Fui-o outrora agora.

Fernando Pessoa, in Obra Poética
Da mesma forma que no ensaio, o texto poético também estabelece um diálogo com o leitor

5. Um elefante no meio da sala
Imagine-se entrando em uma sala — a da sua casa, a de trabalho, a sala de aula. E que ao entrar você depare com um enorme, vivo e reluzente elefante vermelho. Não é alucinação. Ele está lá, parado, no centro da sala.
O que você pensaria em uma situação como essa? Provavelmente não pensaria nada, ficaria lá, paralisado, com aquela cara de quem viu um elefante vermelho na sala.

5a. Elefante x elemento crítico
Por que você se espantaria? Pela simples razão de que aquele ambiente não é lugar para um elefante vermelho, ou de qualquer outra cor. Sua presença nos choca porque é inadequada ali. Se ele estivesse no zoológico, você não se espantaria.

O elefante no meio da sala, portanto, funciona como um elemento crítico.

O elemento crítico pode surgir em situações do dia-a-dia, em ocasiões sociais especiais, na conversa profissional e na hora de escrever. E ele vai chamar a nossa atenção de tal maneira que a princípio irá nos paralisar. Mas em seguida nos fará pensar e agir.

5b. Como identificar o elemento crítico
Elemento crítico é aquele que propicia o reconhecimento dos outros elementos que compõem um conjunto estruturado. Por exemplo, você irá questionar como é que o elefante pôde passar pela porta ou pela janela; quem colocou o elefante ali (ou ele veio sozinho?); por que o pintaram de vermelho (ou seria a cor natural dele?). Esteve sempre ali e você não via?

Para lembrar:

O elefante propicia a você questionar os elementos
que compõem a sala enquanto um conjunto estruturado.
Ou seja: o elemento crítico leva a uma atitude crítica.

6. O que é ser crítico?
Ser crítico é reconhecer os elementos de um conjunto estruturado e compreender suas funções nesse conjunto.

6a. Por que você não desmonta o seu relógio?
Por que você não desmonta seu relógio de pulso? Certamente porque ele funciona bem, e se não funcionasse, você o levaria a um relojoeiro. Além disso, não vê uma função nisso. Só o faria se nessa “análise” houvesse um propósito, como a suspeita de que houvesse um elefante vermelho dentro dele, por exemplo. Pela mesma razão você não desmonta seu liquidificador ou seu aparelho de som.

Essa atitude também é o elemento crítico

6b. Imposição ou necessidade
O elemento crítico pode resultar de uma imposição exterior (elefante vermelho) ou de uma necessidade interior (intenção de conhecer ou compreender o mecanismo do relógio).

7. Elemento crítico na realidade
Podemos pensar o elemento crítico em situações reais de nossa vida pessoal e social. Os planos econômicos do governo, por exemplo, são elefantes vermelhos que nos obrigaram a repensar o contexto da economia do país e a nossa economia doméstica. O mesmo deve ter ocorrido com você com decisões importantes que tomou, que o levaram a repensar todo o contexto de sua vida.

8. Elemento crítico e ensaio
Colocando-se no lugar de quem redige o ensaio, você terá de ser crítico se desejar despertar o interesse de seu leitor. Você deve estar perguntando: “mas como eu enfio um elefante vermelho na sala do leitor?” Ou: “como posso ter uma atitude crítica em relação ao texto?”.

— Is this an elephant?
Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior atenção o objeto proposto que ela
me apresentava.

Rubem Braga, trecho do conto “Aula de inglês”,
in Os Melhores Contos

Aqui, o próprio autor, além de estimular o senso crítico do leitor, menciona um momento de questionamento do protagonista da história

9. O comportamento crítico
As pessoas podem não exercer suas capacidades críticas, mas potencialmente qualquer ser humano “normal” as tem. Toda atividade crítica pressupõe dois componentes essenciais: o questionamento e a ordenação das respostas. Uma pessoa crítica é aquela que questiona e se questiona, buscando resposta para suas indagações. A insatisfação com o próprio desempenho é o gérmen do comportamento crítico e do conseqüente crescimento nas atividades profissionais ou intelectuais.

Para lembrar:

Todo ensaio é sempre a tentativa de respostas
a eventuais perguntas que o leitor faria sobre o assunto.

10. Pense e questione
Conteúdos críticos não resultam apenas de leituras ou de assistir a aulas. É preciso que o interesse por si mesmo e pelos outros seja maior do que os medos, as inseguranças, as inferioridades e as preguiças. No questionamento corajoso de si mesmo, você encontrará a exata medida de suas dificuldades e saberá trabalhar para superá-las.

11. Como chegar a um bom conteúdo no ensaio
Existem qualidades principais do conteúdo para que ele seja correto e aprofundado. Para assegurar isso, deve-se adotar uma série de atitudes, sendo a primeira delas ter, frente ao texto conceitual, uma atitude crítica e autocrítica. Também é preciso ter clareza do âmbito da discussão e/ou exposição do tema de que o texto trata.

11a. Nunca se apóie em dados incorretos
Outra coisa essencial para que o seu trabalho seja bom diz respeito aos dados em que se apóia sua argumentação. Eles devem ser corretos, nunca inventados ou meramente supostos. Se você não tiver segurança quanto a eles, descarte-os ou informe-se mais a respeito do assunto.

Outras orientações para elaborar um ensaio

Dedicação — Sua discussão e exposição devem ter um sentido de aprofundamento.
Argumentação — Se esta envolve uma ou mais ciências ou disciplinas ou áreas de conhecimento, respeite suas leis, seus princípios, suas normas e seus objetivos.
Objetividade — Evite “eu acho”, “eu penso”, a não ser quando quiser assumir posições pessoais (é melhor usar “creio”, “acredito”, “suponho” etc.).
A verdade — Pesquise, pergunte a pessoas bem informadas, informe-se quando não tiver certeza dos dados ou confiança em suas opiniões.
Interesse — Procure manter-se atualizado, no mínimo sobre seu campo de trabalho ou estudo.
Crítica e autor — Abra-se para a crítica de seus leitores, mas não tenha uma atitude passiva frente a ela. Seja criterioso, pois o leitor pode ser menos preparado do que você. Se não for, reformule-se, sempre preservando sua independência de raciocínio e seu senso crítico. Não se intimide com a crítica. Também não se iluda com elogios superficiais. Seja exigente consigo mesmo.

Glossário

Reacionária: aqui tem o sentido de uma atitude que é contrária à liberdade de expressão e à mudança.
Variante: que varia ou difere. Cada uma das várias lições ou formas do mesmo texto; versão.
Veracidade: qualidade de veraz, verdade.

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