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Caridade Integral

Caridade Integral

À questão 893, de O Livro dos Espíritos, Kardec indagava aos luminares espirituais qual seria a mais meritória das virtudes; ao que os espíritos responderam ser aquela que nasce da mais desinteressada caridade.

Habitualmente, quando falamos em caridade, pensamos em assistência material, muito embora não seja somente esse o seu significado, como veremos. E ao falarmos em caridade material, lembramo-nos de sua mais elementar manifestação, que é a esmola, que, a propósito, foi alvo da questão 888, daquela mesma obra, em que Kardec assim questionava:

Que se deve pensar da esmola?

“Condenando-se a pedir esmola, o homem se degrada física e moralmente: embrutece-se. Uma sociedade que se baseie na lei de Deus e na justiça deve prover a vida do fraco, sem que haja para ele humilhação. Deve assegurar a existência dos que não podem trabalhar, sem lhes deixar a vida à mercê do acaso e da boa-vontade de alguns.”

Diante de tão incisiva resposta, o Codificador acrescentava (888-a):

Dar-se-á reproveis a esmola?

“Não; o que merece reprovação não é a esmola, mas a maneira por que habitualmente é dada. O homem de bem, que compreende a caridade de acordo com Jesus, vai ao encontro do desgraçado, sem esperar que este lhe estenda a mão.

E complementam:

“… Nem sempre o mais necessitado é o que pede. O temor de uma humilhação detém o verdadeiro pobre, que muita vez sofre sem se queixar. A esse é que o homem verdadeiramente humano sabe ir procurar, sem ostentação”.

Uma vez, então, indo ao encontro daquele que necessita “sem que haja para ele humilhação”, por que meio podemos avaliar se estamos de fato praticando uma caridade satisfatória?

Na passagem evangélica intitulada “A oferta da viúva pobre” (Mc 12: 41 a 44), já exaustivamente estudada, Jesus nos demonstrou que a importância da caridade material não se avalia pela quantia que se dá, mas, sim, pelo sentimento de desprendimento com que se dá — pode-se dar muito ou pouco, com muito ou pouco amor.

Entretanto, importa ressaltar que a distribuição indiscriminada de recursos nem sempre resulta na prática da caridade responsável.

A esse respeito, Kardec, à questão 896, também da primeira obra basilar, indagava:

“Há pessoas desinteressadas, mas sem discernimento, que prodigalizam seus haveres sem utilidade real, por lhes não saberem dar emprego criterioso. Têm algum merecimento essas pessoas?”

Tendo obtido a seguinte elucidação:

“Têm o do desinteresse, porém não o do bem que poderiam fazer. O desinteresse é uma virtude, mas a prodigalidade irrefletida constitui sempre, pelo menos, falta de juízo. A riqueza, assim como não é dada a uns para ser aferrolhada num cofre forte, também não o é a outros para ser dispersada ao vento. Representa um depósito de que uns e outros terão de prestar contas, porque terão de responder por todo o bem que podiam fazer e não fizeram, por todas as lágrimas que podiam ter estancado com o dinheiro que deram aos que dele não precisavam.”

Por extensão de raciocínio, se, em sã consciência, entregarmos certo recurso financeiro nas mãos de quem dele se utilizará de maneira irresponsável, para alimentar vícios ou excessos de qualquer ordem, certamente estaremos contribuindo para a queda de alguém; e contribuir para a queda de alguém jamais será considerado um ato de caridade.

Por outro lado, sem reduzir em momento algum a importância da caridade material, os Espíritos, à questão 886, novamente da primeira obra básica,nos afirmam, peremptoriamente, que o verdadeiro sentido da palavra caridade, como a entendia Jesus, se traduz por “benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições alheias e perdão das ofensas”.Eis aí a caridade moral, que também deve ser exercida sempre que possível, mas, também, mediante certas precauções.

Oportunamente, recordamo-nos de um episódio relatado pelo Espírito André Luiz, no capítulo 31, de sua obra intitulada Nosso Lar, psicografada por Chico Xavier, em que a questão da responsabilidade no exercício da caridade nos foi exemplificada de modo bastante significativo.

Encontravam-se André Luiz e Narcisa em Nosso Lar, quando uma figura de mulher se aproxima de um dos acessos daquela colônia implorando por socorro, em lamentável condição espiritual. Imediatamente o Vigilante-Chefe é convocado, e, ao examinar atentamente a recém-chegada das regiões umbralinas, afirma que, naquele momento, a triste criatura não poderia receber o socorro desejado. Confessando-se escandalizado, como muito provavelmente nós mesmos nos mostraríamos, André Luiz indaga se não seria faltar aos deveres cristãos abandonar aquela sofredora à própria sorte; ao que o responsável pela segurança aduz que assim agira por haver detectado cinqüenta e oito pontos escuros que maculavam o perispírito daquela entidade, e que correspondiam a exatamente cinqüenta e oito crianças por ela assassinadas ao nascerem, umas por golpes esmagadores, outras por asfixia.

Ao ser cientificada sobre o motivo que lhe impedia a entrada, a desafortunada criatura, antes aparentemente humilde, toma-se de cólera, passando a dirigir palavras extremamente agressivas ao seu interlocutor, demonstrando o seu verdadeiro estado de espírito.

Dando curso à valiosa lição, o Vigilante-Chefe afirma que, caso a infeliz entidade lograsse acesso àquela paragem de refazimento, certamente levaria extrema desarmonia a todos quantos ali se encontravam. E concluiu asseverando: “…a infeliz será atendida alhures pela Bondade Divina, mas, por princípio de caridade legítima, na posição em que me encontro, não lhe poderia abrir nossas portas.” (grifei)

Percebemos, pelo exposto, que, muitas vezes, a caridade se cumpre de maneira efetiva quando dizemos não, pois que, assim, estaremos propiciando àquele que erra, uma oportunidade para que, através do tempo e do esforço íntimo, possa avaliar toda a amplitude das conseqüências de seus atos.

A realidade é que a vida nos acena constantemente com as mais variadas possibilidades de atuação no campo da caridade.

Assim, ela estará presente no amparo material, através do pão que alimenta; da água que mata a sede; do abrigo que acolhe; do agasalho que ameniza o frio ou do recurso financeiro que suaviza a penúria—é a caridade material.

Senti-la-emos sendo elaborada na intimidade do ser, através das ondas mentais que emitirmos sob a forma do perdão silencioso que enobrece; da prece íntima que revigora ou do amor verdadeiro que liberta; são atitudes mentais salutares que, em primeiro lugar, nos favorecem, e, lançadas no espaço, certamente beneficiarão todos a quem se dirijam, encarnados ou desencarnados—é a caridade mental.

Far-se-á vibrante através das palavras que enunciemos; muitas são as tragédias íntimas e coletivas que a cada dia podemos evitar pela palavra que, quando sábia, orienta e edifica; quando suave, sufoca o pranto; quando indulgente, atenua a culpa; quando consoladora, dissipa o sofrimento; quando plena de amor, rompe o ódio ou quando em forma de oração, nos aproxima de Deus—é a caridade verbal.

Mas se pela palavra somos caridosos, também o podemos ser quando silenciamos ante uma ofensa desatada pelo desequilíbrio ou emudecemos para ouvir um desabafo de quem por tantas vezes não encontrou quem o fizesse—é a caridade passiva.

E, por estarmos encarnados, nosso corpo também se servirá à fraternidade, através do amplexo comovido que transfunde energia; do afago paternal que envolve uma criança; de um beijo carinhoso que aproxima as almas ou de um simples aperto de mão que faz brotar o sorriso num rosto antes amargurado—é a caridade gestual.

E se Deus nos concedeu, em qualquer grau ou modalidade, a ferramenta da mediunidade, como recurso precioso de auxílio a encarnados e desencarnados, estaremos aptos a praticar a solidariedade através das faculdades mediúnicas de que dispusermos—é a caridade mediúnica.

Só nos resta, então, porfiar nos caminhos que nos levam à eliminação lenta e gradual do orgulho e do egoísmo, o que somente se fará possível através da prática da caridade, em suas múltiplas e divinas manifestações, pois que, fora dela, conforme estatui a máxima eternizada pelo Espiritismo, não há salvação; salvação essa que representa para nós, espíritas, a inevitável purificação espiritual — única finalidade de nossas sucessivas existências.

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José Marcelo Gonçalves Coelho