Luiz Carlos D. Formiga
Palavras bem ditas tornam-se benditas, e, mal ditas tornam-se malditas? Eneida Souza, em Tendências do Trabalho, julho de 2002, diz que a resposta é não. Se encararmos “benditas” com a sonoridade religiosa ou se ouvirmos “malditas” como rogo de praga. Desnudando-as destes clichês poderemos inferir algo de proveitoso a ser usado nas nossas relações. São poucos os que discordam da alegação de que é a linguagem que dirige os seus pensamentos quando a questão é emocional. “No princípio era o verbo”, parece indicar que o ponto de partida é a palavra, a expressão oral do conhecimento, do sentimento, do desejo. Verbo é a palavra por excelência, porque anuncia a ação, que traça roteiro ou desnorteia, que traz consolo ou desesperação.
No terreno em que estamos pisando o preconceito também começa na linguagem, como na cegueira, onde é voltada para a visão. “Faca cega” é a faca que não corta. O problema é que da linguagem o preconceito se transfere para a atitude, aparecendo níveis de afastamento. Surge então o ato de evitar, a discriminação e a segregação, ferindo a fraternidade, a igualdade e a liberdade.
A hanseníase pode levar à cegueira, mas o preconceito vai além, e o preconceituoso chega a surdez. Isso precisa ser “bem visto” e “ouvido” por uma campanha que se propõe chegar à visão (TV) e à audição (rádio).
Nas ciências biomédicas concluímos que a saúde é algo mais do que a ausência de doenças e que ela depende de fatores externos ao setor saúde. Do artigo 196 da Constituição inferimos que existe a determinação social, econômica, política e espiritual do processo saúde-doença. A saúde é amparada pelo princípio de que é dever do estado garanti-la, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e outros agravos. No conceito de cura esbarramos com a necessidade da extinção dos sintomas, do fator etiológico e do desaparecimento das lesões anatômicas. Isto implica, entre outras coisas, no acompanhamento clínico e laboratorial da evolução. Indo além, quero dizer que não podemos estacionar em diagnósticos e terminologias, havendo necessidade de penetrar e sondar as profundezas da alma, diante de um ser integral. Muitos profissionais da área somente conseguem entender quando passam para o outro lado da fronteira e na condição de máquinas em reparo, refletem naquilo que seus pacientes lhes diziam. Outros ainda permanecem “prisioneiros das salas acadêmicas, porque a vaidade lhes roubou as chaves do cárcere”.
Permita-me relatar uma conversa que tive com uma enfermeira que está agora do outro lado. Disse-me, enquanto me transportava em seu carro, que só agora entendia o que sentem os doentes, pois enquanto estava enfermeira não podia compreender, por maior que fosse a empatia:
– “Prof. Formiga o antibiótico mata o micróbio e dizer isso para o senhor é chover no molhado, mas ela não acaba com a doença, com o estigma. Não contei para a minha família, que mora fora do estado, mas fui à televisão fazer reivindicações em nome dos pacientes pobres, pois eu tenho plano de saúde. Aí, meu tio me viu na TV e emergiu todo o seu preconceito e discriminação. Para familiares, disse que“achava nobre a minha conduta, mas precisava dizer, na televisão, que tinha tido aquela doença?”
Você consegue perceber o estado psicológico desta sobrinha?
O medo do estigma precede a experiência real de discriminação. Isso é importante na identificação dos mecanismos psicológicos que a pessoa utiliza para lidar com a doença. Mesmo que a pessoa nunca enfrente um estigma real, o estigma internalizado pode ser muito forte e impedir uma integração satisfatória, porque as percepções pessoais ou sociais são incorretas.
O estigma é algo externo, não é da pessoa, mas chega antes dela. Um bom exemplo é o medo do contágio do estigma que expulsa negros dos espaços privativos dos brancos. Na hanseníase ela pode até poder pagar um plano de saúde. Há espaços em que os negros não são desejados, nem como consumidores, nos quais operam os elementos de resistência determinados pelo estigma e isto não depende da conta bancária.
A ‘‘ética é uma ótica’’. A transformação dessas imagens negativas que aprisionam, que discriminam, requer um novo paradigma que subverta essa ótica perversa. “Ela cega a ética e coloca o olhar fora de foco”. Essa tarefa é mais demorada do que parece. O prazo de eliminação da hanseníase já foi dilatado uma vez. Aqui não é suficiente o “transplante de córnea”. Tomamos conhecimento de que uma vereadora, integrante da Casa Legislativa Municipal no Rio de Janeiro, mandou retirar, da sala por ela ocupada, o retrato do Dr. Adolfo Bezerra de Menezes, sob o fundamento de que era “evangélica” e não poderia ter em “sua” sala o retrato de um “espírita”.
A epilepsia, antes de ser um rápido distúrbio neurotransmissor, que atrapalha a coordenação motora e leva à perda da memória, é um estigma. A epilepsia não pega e em 90% dos casos é de fácil tratamento, então, por que o paciente é tão discriminado? Por causa da mancha anestésica social, que é a falta de informação, e do preconceito. Portadores de doenças estigmatizantes devem ser estimulados a se organizarem. Neurologistas ajudaram a fundar associações e a “Mundial de Pacientes com Epilepsia” possui endereço na internet: http://www.ibe-epilepsy.org/
Se naquela época existissem essas associações, Van Gogh, Joana D’Arc e Machado de Assis certamente teriam participado.
O estigma é estressante. Arthur Ashe, que se projetou no tênis mundial, escondeu sua condição de portador do vírus da aids, após uma transfusão sanguínea, porque “tinha medo do estima que é insuportável”.
A ponte entre Microbiologia, Imunologia e Psicologia, pode ser feita, observando-se o aumento da freqüência da manifestação do herpes simples em pessoas deprimidas.
O microbiologista na hanseníase trabalha com o micróbio, mas numa campanha sua função é de educador e aí o que deve ser pesquisado cuidadosamente no microscópio é a palavra. Também não pode errar o diagnóstico. Campanhas podem ser olhadas com aparelhos fora de foco e mensagens inadequadas podem ser inócuas, quando não são contraproducentes.
E quando o doente olha pelo microscópio?
O estar doente representa uma cidadania mais onerosa em todos os sentidos, com destaque para o emocional, para o domínio afetivo.
Uma campanha pode ser inócua se omissa, quando valoriza o biológico e se esquece do aspecto biográfico.
Uma campanha deve chegar aos profissionais de saúde. O médico interfere no campo do sujeito, em seu corpo, em sua vida pessoal, em suas emoções. A medicina é uma profissão moral. Mas, o estudante de medicina não quer saber de hanseníase, embora nas aulas de Microbiologia mostrem-se interessados. A questão estética tem um gancho no fator sócio-cultural. Esses alunos e eventualmente o professor não estão interessados na Dermatologia Sanitária, mas na Cirurgia Plástica e na Medicina Estética, especialidades em constante avanço. Eles ficam fascinados pelos modernos aparelhos de laser, pelo emprego da toxina botulínica, ácido hialurônico, vitaminas, agentes de foto-proteção, hidratação, pelos procedimentos como peelings, microdermoabrasão, abrasão cirúrgica.
Doentes de hanseníase geralmente não podem pagar planos de saúde. Preocupados com a sobrevivência não se preocupam com a estética.
A pergunta é – “na sua opinião, quais devem ser as mensagens numa campanha, via tv e rádio, para a eliminação da hanseníase no Brasil?”
Você disse não querer me ocupar, mas faz pergunta de difícil resposta, para a minha incompetência. Confesso que não me sinto à vontade, mas uma coisa é certa, a necessidade de abertura e tolerância nesse planejamento. As mensagens devem passar pelo rigor da argumentação, levando em conta todos os dados obtidos. Acredito ainda que não poderemos deixar de aceitar o imprevisível e o inesperado, como foi para mim a carta recebida ontem, reconhecendo o direito daqueles que possuem idéias e verdades contrárias às nossas.
A dimensão territorial do país e as diversas populações-alvo, encontradas, já nos colocam pequeninos, se não somos pretensiosos. Tenho clareza da minha pobre contribuição, mas não poderia me omitir, pois tenho muitos amigos aqui e no plano espiritual que passaram pelo sofrimento diante do leproestigma. Fico mais tranqüilo porque você me informa que diversos profissionais especialistas estarão sendo consultados, o que não poderia deixar de ocorrer. Antes da aposentadoria na FCM-UERJ, minha linha de pesquisa tinha como objeto infecções do trato respiratório. A vacina tríplice não precisava ser inventada e era prática eficaz. Hoje, meus colegas, estudam cuidadosamente os mecanismos de aderência e invasão bacteriana às células, uma vez que a doença nos deu uma trégua, caindo a níveis bem pequenos. A difteria, por exemplo, que causa uma miocardite, após a cura não produz reações ou seqüelas preocupantes. Em hanseníase não é assim, não dispomos da vacinação específica, embora o BCG seja utilizado como alternativa em algumas situações. As reações após a cura na hanseníase deixam alguns pacientes em sofrimento extenuante. Esse é mais um dos motivos que torna difícil acreditar que, apenas utilizando antibióticos bactericidas, seremos capazes de erradicá-la em tempo rápido. Outros países que conseguiram chegar a esse objetivo adotaram outras estratégias ainda antes do advento das sulfonas. Não estou querendo dizer que não devemos valorizar uma campanha permanente, mas que ela deve ser cuidadosamente elaborada, para que não venhamos a amargar resultados desproporcionais aos investimentos realizados.
Quando estudamos hanseníase associamos a persistência da doença ao leproestigma. O estigma, associado a outros fatores, interfere na manutenção da enfermidade por trazer dificuldades para o diagnóstico e o seu tratamento. Acontece que o estigma está ligado às deformidades provocadas pela interação parasito-hospedeiro e ainda associada aos valores sócio-culturais. Empreender esforços para a mudança dos valores que a sociedade estabeleceu é árdua tarefa. Como estamos na “era pós-sulfona” poderemos encontrar a afirmação da inexistência do leproestigma e que não devemos nos preocupar com ele. Esta colocação parece ser mais um comportamento político do que uma efetiva constatação. Os depoimentos atuais parecem apontar em outra direção.
Dizer que o estigma não é um problema real é fácil, principalmente quando se está do lado de cá da fronteira. Difícil é implementar ações que conduzam a essa superação, principalmente quando recursos podem ser escassos ou eventualmente mal administrados.
Uma campanha será vitoriosa quando constatar a motivação da clientela em adquirir o produto oferecido que é o diagnóstico precoce e o tratamento eficaz, aquele que vai além da cura bacteriológica e considera o homem um ser de natureza bio-psico-socio-espiritual.
Assim proporcionaremos a mudança de comportamento frente ao estigma, que é diretamente proporcional ao aumento das incapacidades e inversamente proporcional ao diagnóstico e ao tratamento.
As cognições são ligadas às emoções e as percepções aos afetos, embora nem sempre estejamos conscientes disso. O pouco conhecimento do objeto é o suficiente para que emoções sejam despertadas. Imagine o medo quando o doente se descobre portador de uma doença em que o agente etiológico se chama M. leprae. Pensamento é ação, tanto que cientistas cognitivos relatam que, quando os surdos resolvem problemas, os músculos dos dedos com que fazem sinais, parecem estar ativos. Na hanseníase, como exemplo, podemos lembrar o caso da empregada doméstica que em 1989, após o diagnóstico matou as duas filhas de 5 e 6 anos e tentou o suicídio. Não morreu e teve que conviver com a informação de que era portadora do pólo não transmissível.
As campanhas não podem esquecer o componente afetivo, que tem como princípio organizador a internalização das idéias. Objetivos do domínio afetivo buscam mudanças de valores e o desenvolvimento de apreciações e ajustamento adequado. São formulações explicitas das transformações que devem ocorrer na maneira de pensar; sentir e agir. Como modificar as representações nascidas no terreno do principio moral? Haverá necessidade de desvincular a doença do “castigo divino”.
Somos ainda muito ignorantes em termos de educação em saúde e aí raciocínios em bases falsas são facilmente encontrados. Imagens naturais referentes à causa de hanseníase não foram especificadas em 86% das pessoas entrevistadas, em Minas Gerais, e apenas 1,5% delas ligavam-na a infecção bacteriana. O percentual restante apontava para a causa hereditária, gema de ovo, espremer espinhas, dinheiro em contato com o corpo, menstruação com lavagem de cabelo, e outras. (Gandra Junior, tese de doutorado, “A Lepra – Uma Introdução ao Fenômeno Social da Estigmatização).
No trabalho de Gandra, 86,8% das pessoas não sabiam da existência de tratamento e 5,2% imaginavam que a cura se processaria ao “transmitir a doença para outras pessoas”, o que é grave.
É possível que esses números estejam modificados, no entanto, recebi ontem uma carta vinda de cidade grande do estado de São Paulo onde a remetenterelata: – “eu descobri que estava com hanseníase, em final de 99. O preconceito começou na própria família. Sofri muito. Durante o tratamento só encontrei pedras e mais pedras no meu caminho. A primeira semana foi difícil para mim, mas aceitei rapidamente, fiz o tratamento e a família pedindo para que eu não contasse a ninguém, pois eles imaginavam os dedos caindo, o nariz, enfim tudo com relação à lepra.”(sic).
Nas mensagens deveremos utilizar a psicologia do medo ou fornecer apenas informações científicas?
Sempre olhei com desconfiança os objetivos que passavam pelo amedrontamento. Enfatizam os agravos, seqüelas. Essa tentativa foi feita em campanhas ligadas a fármaco-dependência e parecem desmoralizadas. Por outro lado é necessário desconfiar daqueles objetivos onde a informação científica é o objeto único. Esse enfoque se mostrou insuficiente quando são esperadas mudanças de comportamento.
Uma outra estratégia é procurar atingir objetivos voltados para um estilo de vida mais saudável. Esses poderiam ter impacto numa parcela da população, uma vez que se encaixam melhor nos problemas que se originam dos avanços tecnológicos. A infecção pelo bacilo de Hansen não poderia ser comparada às que estão ligadas à contaminação ambiental, uma vez que é doença transmitida de pessoa a pessoa, necessitando de contato íntimo e prolongado.
Um outro objetivo é o fortalecimento de organizações de ajuda entre os próprios doentes que, exercitando a cidadania, possam avaliar medidas implementadas e reivindicar junto aos que estão no exercício do poder nas diversas esferas governamentais. Atuariam dentro de um modelo de pressão positiva do grupo, funcionariam como multiplicadores e seriam ainda importantes naqueles momentos em que o paciente se vê freqüentemente desamparado após a cura bacteriológica.
Na universidade sentimos dificuldades nessa formulação porque essa vertente se dirige para o aumento da auto-estima, da capacidade de resistir às pressões ocasionadas pelo estigma. Mas será nessa hora que tentaremos mudar a “ótica destorcida” e que conduziu uma doença bacteriana à condição de fenômeno psico-social-somático. Assim fechamos o círculo e retornamos às representações nascidas no campo do princípio moral.
Um país que adotou uma nova terminologia e que produziu anteriormente ações educativas diversas, não poderá deixar de perceber “a hanseníase como ela realmente é: diferente, sem dúvida, da lepra, que pode ser definida como doença lendária, a mais antiga de todas, que provoca queda espontânea dos dedos e do nariz, o apodrecimento em vida e é fruto de um castigo divino, mas que não existe nem é semelhante a qualquer entidade nosológica existente.”
“Não sendo sinônimo de lepra, entretanto, a hanseníase não deixa de ser uma doença grave, potencialmente condutora de incapacidades e contagiosa, embora com baixa patogenicidade, e que se situa, por sua alta prevalência, entre as endemias nacionais de maior importância, sendo, pois, um dos mais sérios problemas de saúde pública.”
“Enquanto a doença não for assim encarada, continuarão sendo destinados recursos insuficientes para o seu controle. E, enquanto não for desenvolvido um programa educativo adequado, hanseníase continuará sendo sinônimo de lepra. Persistirão os graves problemas psicossociais por ela acarretados”. (Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Nacional de Programas Especiais de Saúde. Divisão Nacional de Dermatologia Sanitária. Controle da Hanseníase: Uma Proposta de Integração Ensino-Serviço. Rio de Janeiro, DNDS/NUTES, 1989. 124 p).
Somos dos que acreditam que não basta dizer a verdade, mas é preciso saber expressá-la. Essa proposta me faz lembrar a narrativa de Helen Keller sobre o seu desentendimento com a sua professora. Diz ela:- “naquele mesmo dia, tivéramos um desentendimento sobre as palavras mug (caneca) e water (água). A senhorita Sullivan tentara me fazer entender que mug era mug e waterera water, mas eu persistia em confundir as duas. Desalentada, deixou de lado o assunto para retomá-lo na primeira oportunidade”
Tenho observado que alunos e professores universitários passam pela mesma dificuldade e insistem em colocar com a mesma sonoridade as palavras lepra e hanseníase, e são incapazes de mínimo esforço para ampliar-lhes a conotação semântica e inferir algo de proveitoso a ser usado na nossa atividade. Desalentado tenho deixado de lado o assunto para outra oportunidade. Sullivan aguardou pacientemente e Helen mais tarde escreveu: – Caminhamos até a fonte, atraídas pela fragrância das madressilvas. Alguém estava pegando água e minha professora colocou a minha mão sob o jato. Enquanto a água fresca jorrava em uma das mãos, ela começou a soletrar a palavra água na outra. Primeiro lentamente, depois rapidamente. Fiquei ali parada, toda a minha atenção concentrada nos movimentos dos dedos dela. Subitamente adquiri uma consciência não muito clara, como de algo esquecido – uma excitação de retorno do pensamento; e de alguma forma o mistério da linguagem revelou-se para mim. Eu sabia então que á-g-u-a significava aquela coisa fresca e deliciosa que fluía pela minha mão. Aquela palavra viva despertou-me a alma, deu-lhe luz, esperança, alegria, libertou-a! Ainda havia barreiras, é verdade, porém barreiras que podiam ser derrubadas com o tempo.
Espero que numa Campanha na TV e no rádio não venhamos a causar confusão. Que nossos produtores saibam se equilibrar entre as palavras. A minha porta-voz preferida, Elis Regina cantou, esperando a volta do irmão do Henfil, que “para a esperança equilibrista basta saber, do artista, que o show deve continuar.”