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O Arquivo ou Indício de Uma Falta

O Arquivo ou Indício de Uma Falta

Desde o surgimento, no século XIX, do método crítico e do historiador
profissional, a questão do “arquivo” não mais deixou de ocupar um lugar central
nos debates historiográficos. A evolução da história, que se tornou uma
disciplina que recorre aos métodos das ciências sociais, especialmente a
entrevista, e o surgimento recente de uma “história do tempo presente”, que
implica a confrontação direta e o diálogo permanente com os vestígios vivos do
passado – a memória dos atores -, modificaram de alguma maneira o debate
clássico sobre a noção de “arquivo”. A isso veio se somar uma mudança radical no
plano epistemológico, com o aparecimento, nos últimos trinta anos, de paradigmas
que negam à história sua pretensão de captar o real, definindo-a como – e às
vezes reduzindo-a a – uma narrativa subjetiva, na qual o estabelecimento da
prova, portanto o uso do arquivo, não constitui mais a base na qual ela pode
legitimamente se apoiar.

Mas, ao mesmo tempo, o desejo cada vez mais explícito na opinião pública de
uma história “positiva”, baseada em provas irrefutáveis, especialmente para
períodos ou acontecimentos trágicos do século XX, tem incessantemente acuado os
historiadores, obrigando-os a uma abordagem cada vez mais prudente dos arquivos,
remetendo-os mais uma vez a uma pergunta ancestral e contudo incontornável: como
chegar à verdade do passado, se é que isso é possível? Basta ver o vigor dos
debates recentes, seu caráter irracional, carregado de ideologia, ou até mesmo
de fantasias, sobre os arquivos contemporâneos, sua inacessibilidade real ou
presumida, a expectativa em relação a eles, para compreender que o problema
ultrapassa o meio dos arquivistas, dos conservadores ou dos historiadores e tem
a ver hoje em dia com o espaço público mais amplo. Isso fica especialmente claro
em relação à história da Segunda Guerra Mundial ou à do sistema soviético, cuja
queda acarretou um súbito acesso (ainda assim limitado) a jazidas documentais
que durante décadas se acreditou estarem enterradas para todo o sempre nas
gavetas secretas das burocracias totalitárias. Em outras palavras, exatamente no
momento em que toda uma corrente intelectual, inscrita na “pós-modernidade”,
denunciava a possibilidade de uma restituição objetiva do passado, baseada em
vestígios tangíveis, a demanda social por uma história que diga a verdade, que
exija uma maior “transparência” em relação aos arquivos mais recentes, tornou-se
cada vez mais premente.

Essa tensão contemporânea nem por isso relega à feira de antiguidades as
questões tradicionais suscitadas pelo uso de arquivos. Ao contrário, essas
questões podem permitir, num certo sentido, reenquadrar os termos do debate. A
utilização de um “arquivo” pelos historiadores só pode ser compreendida sob a
luz da noção de “fonte”. Chamaremos de “fontes” todos os vestígios do passado
que os homens e o tempo conservaram, voluntariamente ou não – sejam eles
originais ou reconstituídos, minerais, escritos, sonoros, fotográficos,
audiovisuais, ou até mesmo, daqui para a frente, “virtuais” (contanto, nesse
caso, que tenham sido gravados em uma memória) -, e que o historiador, de
maneira consciente, deliberada e justificável, decide erigir em elementos
comprobatórios da informação a fim de reconstituir uma seqüência particular do
passado, de analisá-la ou de restituí-la a seus contemporâneos sob a forma de
uma narrativa, em suma, de uma escrita dotada de uma coerência interna e
refutável, portanto de uma inteligibilidade científica.

Se admitirmos essa definição inicial, o “arquivo” no sentido comum do termo,
isto é, o documento conservado e depois exumado para fins de comprovação, para
estabelecer a materialidade de um “fato histórico” ou de uma ação, não passa de
um elemento de informação entre outros. A dificuldade consiste então em
distinguir as fontes – os vestígios – umas das outras, a fim de determinar
aquelas que permitem uma abordagem racional do passado. Isso implica uma escolha
das fontes mais pertinentes, não por elas mesmas, mas em função das perguntas
que o observador se faz previamente.

Se tomarmos duas das fontes mais comuns da história do tempo presente – o
testemunho oral e o documento escrito obtido nos fundos de arquivos públicos ou
privados -, poderemos ilustrar a natureza dos problemas encontrados pelos
historiadores diante de seu material usual. O testemunho colhido a posteriori,
por sua própria natureza, é uma das características da história do tempo
presente. Ele leva à criação de uma fonte singular na medida em que destinada
desde o início seja a formar um arquivo, no sentido de conservar – eis aqui a
memória de tal indivíduo ou de tal grupo -, seja a alimentar uma pesquisa
específica. Nos dois casos, essa fonte está intrinsecamente ligada ao
questionamento preciso do arquivista ou do historiador, voltada para um
acontecimento, um indivíduo, um determinado processo histórico, e entra em
sinergia ou em oposição com o discurso do ator assim erigido em “testemunha”.

O documento escrito (carta, circular, auto etc.) proveniente de um fundo de
arquivo foi por sua vez produzido por instituições ou indivíduos singulares,
tendo em vista não uma utilização ulterior, e sim, na maioria das vezes, um
objetivo imediato, espontâneo ou não, sem a consciência da historicidade, do
caráter de “fonte” que poderia vir a assumir mais tarde. É quase um truísmo
lembrar que um vestígio do passado raramente é o resultado de uma operação
consciente, capaz de se pensar enquanto vestígio, e não enquanto ação inscrita
no seu tempo, e portanto capaz de antecipar o olhar que lançarão sobre ele as
gerações futuras, ainda que às vezes exista em alguns atores a vontade de deixar
rastros de sua passagem. Mas mesmo que alguns homens, pequenos ou grandes,
tentem escrever em vida uma parte de sua história e influir sobre as narrativas
futuras, raras são as iniciativas desse gênero que resistem à alteridade do
tempo ou do olhar dos descendentes, tanto assim que as narrativas do passado,
mesmo de natureza mítica ou legendária, não podem hoje se livrar completamente
da crítica, ela própria conseqüência da afirmação de uma história com pretensão
científica que modificou singularmente, ao menos nas sociedades ocidentais,
leigas e seculares, a abordagem que uma coletividade faz de seu passado.

A diferença de estatuto entre essas duas fontes salta imediatamente aos
olhos. Elas não são produzidas na mesma hora: uma é contemporânea dos fatos, a
outra posterior; elas não têm as mesmas condições de abundância, já que nenhuma
pesquisa oral, mesmo sistemática, pode rivalizar com a massa de documentos de
todo tipo produzidos pelo mais insignificante organismo, sobretudo público; elas
não têm as mesmas finalidades: uma é de caráter memorial, pretende ser um
vestígio induzido, consciente e voluntário do passado; a outra é funcional antes
de ser vestígio, tanto é verdade que ninguém pode prever com certeza se este ou
aquele documento será conservado ou não, e por quanto tempo.

A esta altura, poder-se-ia crer que o que pretendemos é, por caminhos
tortuosos, opor mais uma vez o testemunho oral e o arquivo escrito, e levantar a
questão, banal e recorrente, de sua respectiva confiabilidade, a fim de
determinar qual dos dois teria mais valor para o conhecimento objetivo do
passado. Ora, ainda que se trate aí de um debate real, não é esse o nosso
objetivo. Ao contrário, queremos menos sublinhar as diferenças que evidenciar as
características comuns a toda fonte histórica e, dessa forma, convidar à
reflexão não sobre o método histórico e as técnicas do historiador, mas antes
sobre os próprios fundamentos da atividade historiadora.

Um testemunho colhido ou um documento conservado só deixam de ser vestígios
do passado para se tornarem “fontes históricas” no momento em que um observador
decide erigi-los como tais. Toda fonte é uma fonte “inventada”, assim como todo
“indivíduo histórico”, no sentido em que falava Max Weber, é uma construção, um
tipo ideal. A “narrativa histórica” começa com o estabelecimento de um corpus
coerente, inteligível sob o ponto de vista de uma investigação precisa, e não
sob o ponto de vista de um passado que se pretenderia simplesmente restituir em
sua verdade recôndita. Em outras palavras, a constituição da narrativa não é a
etapa final – o livro de história – a que se chega depois de acumulada a
documentação; é intrínseca ao próprio procedimento daquele que interroga o
passado. A narrativa começa com as hipóteses, a formulação das perguntas e o
estabelecimento de um corpus, uma operação fundamental de seleção que não pode
ser desvinculada do objetivo final, mesmo que o resultado possa estar muito
distante das intuições do início. Isso não significa que o vestígio não encerre
uma verdade intrínseca, ou que o real seria inacessível, mas induz a não
pensarmos a “fonte” fora da pergunta e do olhar do historiador que, como um
cineasta que desloca seus refletores e suas objetivas ao longo dos planos, vai
esclarecer de maneira parcial uma seqüência do passado, vai, ele também, criar
um vestígio, deixar uma marca, uma mediação. Simplificando, é raro que dois
historiadores que se fazem a mesma pergunta sobre um mesmo acontecimento ou um
mesmo período estabeleçam corpus idênticos e construam seu(s) fato(s) da mesma
maneira – o que não diminui em nada, se seu procedimento for rigoroso, a
confiabilidade de seu trabalho.

Escrito, oral ou filmado, o arquivo é sempre o produto de uma linguagem
própria, que emana de indivíduos singulares ainda que possa exprimir o ponto de
vista de um coletivo (administração, empresa, partido político etc.). Ora, é
claro que essa língua e essa escrita devem ser decodificadas e analisadas. Mas,
mais que de uma simples “crítica interna”, para retomar o vocabulário ortodoxo,
trata-se aí de uma forma particular de sensibilidade à alteridade, de “um errar
através das palavras alheias”, para retomar a feliz expressão de Arlette Farge
(1).

É esse encontro entre duas subjetividades o que importa, mais que o terreno
sobre o qual ele se dá ou o tipo de rastro que o torna possível através do
tempo. Nesse sentido, muitas vezes esquecemos que muitos arquivos escritos não
passam eles próprios de testemunhos contemporâneos ou posteriores aos fatos,
dotados de um componente irredutível de subjetividade e de interpretação que sua
condição de “arquivo” absolutamente não reduz: é o caso dos autos policiais –
para tomar apenas um exemplo entre os arquivos ditos “sensíveis” -, que muitas
vezes são apenas o resultado de transcrições escritas e conservadas de
depoimentos orais que foram objeto de uma mediação, de uma narrativa, a qual não
pode senão alterar a declaração original feita pelo ator ou a testemunha
interrogada. A escrita, a impressão, portanto a possibilidade de um documento
resistir ao tempo e acabar um dia sobre a mesa do historiador não conferem a
esse vestígio particular uma verdade suplementar diante de todas as outras
marcas do passado: existem mentiras gravadas no mármore e verdades perdidas para
sempre.

Da mesma forma, todo depoimento ou todo documento exige, para ser
significativo, uma recontextualização – especialmente no caso do arquivo escrito
– que implica que sejam examinadas séries mais ou menos completas para se
compreender a lógica, no tempo e no espaço, do ator ou da instituição que
produziu este ou aquele documento. É um tanto incômodo lembrar algo tão óbvio,
mas esse é um problema capital na mediatização (no sentido jornalístico do
termo) cada vez mais freqüente hoje em dia de certos documentos históricos,
obtidos ao acaso de uma pesquisa ou de uma “revelação” espontânea: não apenas
esses procedimentos levam a sentidos equivocados, e até mesmo a erros graves de
interpretação, como fazem crer que a verdade de um acontecimento decorreria da
leitura primária e imediata de um documento que se supõe ser decisivo,
comprobatório e definitivo. Esses procedimentos bastante conhecidos (lembremos
novamente dos arquivos de Vichy ou da KGB) têm o efeito de arrastar os
historiadores para um terreno que se acreditava estar abandonado há muito tempo,
o de um positivismo rasteiro, estranho a qualquer construção ou questionamento,
quando a evolução da disciplina voltou definitivamente as costas para essas
concepções ultrapassadas. É essa tensão entre uma história que procura se situar
em níveis de elaboração cada vez mais sofisticados (às vezes até demais) e uma
expectativa da opinião pública (e de alguns membros da academia) por provas
definitivas que torna hoje o trabalho do historiador e o debate sobre os
arquivos tão complexos: tivemos inúmeros exemplos com a história do Genocídio,
uma escrita em si mesma árdua, que foi acompanhada de uma demanda, até mesmo de
uma pressão, para que se enfrentasse as iniciativas negacionistas situando-se no
terreno exclusivo da prova material, como o demonstram por exemplo os debates em
torno do livro de Jean-Claude Pressac sobre os fornos crematórios de Auschwitz.

Poderíamos retomar o mesmo argumento a propósito dos arquivos soviéticos,
que, segundo nos dizem alguns historiadores, devem ser objeto de um exame
sistemático e exaustivo, independente de qualquer grade de leitura, sob o
pretexto um tanto estranho da “urgência”, partindo a priori do princípio de que
esses arquivos vão provocar uma revolução no conhecimento do mundo comunista, e
quem sabe até de toda a história do século XX.

Finalmente, o testemunho assim como o arquivo dito escrito revelam por sua
própria existência uma falta, idéia esta tomada emprestada a Michel de Certeau.
O vestígio é, por definição, o indício daquilo que foi irremediavelmente
perdido: de um lado, por sua própria definição, o vestígio é a marca de alguma
coisa que foi, que passou, e deixou apenas o sinal de sua passagem; de outro,
esse vestígio que chega até nós é, de maneira implícita, um indício de tudo
aquilo que não deixou lembrança e pura e simplesmente desapareceu… sem deixar
vestígio – todos os arquivistas sabem que perto de nove décimos dos documentos
são destruídos para um décimo conservado. Que historiador um dia não foi tomado
de desespero diante da tarefa que o espera e dos milhões de documentos a serem
lidos, para, no dia seguinte, ser tomado de vertigem diante de tudo o que jamais
poderá saber, de tudo o que nunca será nem “memória”, nem “história”?

Partindo destas obsevações um tanto sumárias, podemos nos prevenir contra o
fetichismo do documento, tão difundido em nossos dias, e que caminha lado a lado
com a obsessão, igualmente suspeita, de uma transparência absoluta – uma palavra
que é aliás problemática, pois tornar alguma coisa transparente é também
torná-la invisível… Nenhum documento jamais falou por si só: este é sem dúvida
o clichê mais difícil de combater e o mais difundido, sobretudo no que se refere
aos arquivos ditos “sensíveis”. Existe um abismo entre aquilo que o autor de um
documento pôde ou quis dizer, a realidade que esse documento exprime e a
interpretação que os historiadores que se sucederão em sua leitura farão mais
tarde: é um abismo irremediável, que deve estar sempre presente na consciência
pois assinala a distância irredutível que nos separa do passado, essa “terra
estrangeira”.

O trabalho do historiador é por definição uma operação seletiva, que depende
do que foi efetivamente conservado, depende da sua capacidade pessoal e se
inscreve num contexto particular. Enfim, e isto é a meu ver essencial, nenhuma
pesquisa oral conduzida por um historiador, nenhum trabalho de seleção de
arquivos pode ser feito sem um mínimo de questionamentos e de hipóteses prévias,
mas tampouco – e este é um dilema real – deve se fechar à surpresa da
descoberta. É preciso, portanto, deixar os caminhos conhecidos, olhar para
aquilo que não se pretendia ver a priori, como um “errante”, para retomar a
expressiva imagem de Arlette Farge.

Evidentemente isso significa que o historiador ou o arquivista devem poder
ter acesso ao maior número possível de fontes – e aqui se encaixa o debate sobre
o fechamento à consulta de certos arquivos, sobre as “derrogações”, em suma,
sobre as condições nas quais se exerce a prática profissional da história -, mas
significa também que nenhum debate sobre a escrita da história ou sobre a
relação com o arquivo pode se furtar a esta pergunta temível: qual é a pergunta
para a qual o historiador procura uma resposta e quais são as fontes mais
pertinentes para responder a ela? O acesso aos arquivos, por mais liberal e
amplo que seja, nos dá ipso facto a chave do passado? Inversamente, a ausência
de documentos ou a impossibilidade de acesso a eles nos privam realmente de toda
forma de conhecimento sobre este ou aquele aspecto da História?

Acessíveis ou fechados, os arquivos são o sintoma de uma falta, e a tarefa do
historiador consiste tanto em tentar supri-la, em se inscrever num processo de
conhecimento, quanto em tentar exprimi-la de maneira inteligível, a fim de
reduzir o máximo possível a estranheza do passado.

(Publicado no Boletim GEAE Número 461 de 12 de agosto de 2003 )