Solidariedade
Estava fazendo minha caminhada habitual pela avenida Sumaré, quando um filhote
de cão, talvez de uns 40 dias de vida, se tanto, abandonado ali na Praça Irmãos
Karman, veio para a beira da calçada e logo, o seu focinho curioso fez com que ele
descesse até o asfalto. Olhava a cena, enquanto o meu coração acelerava, prestes
a ver, e ao mesmo tempo não querendo ver, um acontecimento impiedoso e quase certo.
Os carros passavam à velocidade normal permitida ali, e o cãozinho iria virar carne
moída dentro de pouco tempo. Arriscando-me por entre alguns carros que até diminuíram
a marcha e outros tantos passando direto, com cuidado fui me aproximando do animal,
receoso pelo trânsito que não parava. O cãozinho já estava quase no meio da avenida,
totalmente indefeso e correndo um risco total, mesmo porque ele poderia ser morto
até por não ser visto pelos motoristas.
Nesse momento, um Sr. Marronzinho que acompanhava toda a cena veio do outro lado
e com mais autoridade, foi parando o trânsito até que peguei o filhote e, juntos
fomos para a praça em lugar seguro. Perguntávamos um para o outro quem teria abandonado
aquele cãozinho ali e como poderíamos cuidar do destino dele.
Nesse mesmo momento, veio do outro lado da rua uma senhora fina e elegante, trajando
um conjunto de cores muito bem combinadas que, tomando o cãozinho no colo, disse
poder levá-lo para a sua veterinária de confiança que o doaria a alguém, isto é,
se não quiséssemos levá-lo. Perguntou a mim e ao Sr. Marronzinho se estávamos interessados
em adotar o bichinho. Ele explicou que estava em serviço, senão poderia até levá-lo.
Eu perdera há pouco tempo o meu cão pastor com 11 anos de idade, fiel amigo de tantas
caminhadas e que me fez adquirir o saudável hábito de caminhar pelas ruas e avenidas
do meu bairro. Ainda com o coração doendo, não queria adotar nenhum cão, pelo menos,
não por enquanto.
Uma outra jovem senhora, simples e sorridente, carinhosa, logo pegou o cãozinho
e segurando-o contra o peito, dizia que desejava muito levá-lo mas o problema é
que não tinha espaço em sua casa. A senhora elegante, gentil e educada insistiu
para que ela levasse o cãozinho. Praticamente havia tomado a decisão pela jovem
que titubeava em adotar o animal. Logo se preocupou em como poderia arranjar uma
maneira de transportá-lo até sua casa. Prontamente, um motorista do ponto de taxi
próximo, disse que deveria ter um pedaço de pano no porta-malas do seu carro e afirmou
que a banca de jornal do outro lado da rua, com certeza, poderia arrumar uma sacola
plástica que permitiria carregar o filhote.
Assim fora resolvida a situação encaminhando a história para um final feliz.
Um cuidado daqui, uma atenção dali, várias pessoas juntamente buscando solucionar
aquele problema, para que o animalzinho fosse rapidamente adotado e, a partir daquele
dia, tivesse um lar.
Logo depois voltei para a minha caminhada, tocado por aquele acontecimento e
como, do nada, várias pessoas surgiram, prontas e bem intencionadas para por em
uso a sua bondade, a sua compaixão e num gesto muito espontâneo e simples de solidariedade,
providenciar uma casa e um destino para o filhote.
Hoje, quando me lembro da cena, não consigo deixar de pensar como ser solidário
é um gesto simples. Não tem regras, não precisa de normas nem de campanhas, não
precisamos de nos fazer muitas perguntas a respeito. Basta praticar o ato. Sim,
como uma coisa muito natural. Tão natural como o samaritano que socorreu o homem
caído à beira da estrada e ainda o levou a uma estalagem, onde pudesse receber tratamento
e remédios, deixando até dinheiro para pagar as despesas daquele homem, de quem
o samaritano nem sabia o nome ou a procedência, nem que pessoa seria, nem dos seus
princípios morais, nem de suas convicções religiosas. Foi um ato tão completo e
espontâneo como se o mundo, de fato, não tivesse divisão de países com suas fronteiras,
em que as nações falassem uma mesma língua e sem religiões, os seres humanos não
estariam enclausurados em suas convicções morais, defendendo este ou aquele princípio,
e até mesmo defendendo deuses próprios, supostamente melhores do que outros, como
os combates na antigüidade, onde as guerras que os seres humanos travavam eram também
guerras entre deuses.
Como já disse, de vez em quando sou tomado pelas lembranças do fato, sinto-me
então solidário e um pouco melhor do que normalmente sou. Mas sinto também que,
quando um fato como este não está tão forte e presente na minha mente, não me vejo
tão naturalmente bom, nem tão espontaneamente disposto a praticar o bem por mais
simples que seja. Me lembrei do ensinamento de Aristóteles escrevendo em Ética a
Nicômaco: “as virtudes são pois, de duas espécies, a intelectual e a moral, a primeira,
por via de regra, gera-se e cresce graças ao ensino – por isso, requer experiência
e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em resultado do hábito. Não é pois
por natureza, nem contrariando a natureza que as virtudes se geram em nós. Diga-se,
antes, que somos adaptados por natureza a recebê-las e nos tornamos perfeitos pelo
hábito.”
Sempre me pego pensando, o quanto ainda devo praticar para adquirir o hábito…
03/06/2003