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A Civilização Hindu e o Espírito de Tolerância

Carlos Alberto Iglesia Bernardo
(Breves considerações históricas sob o enfoque espírita)
Há mais de 4.000 anos, começou a surgir uma civilização que marcaria profundamente o desenvolvimento espiritual da nossa humanidade. Entre os vales do Indus e do Ganges, arqueólogos modernos desenterraram cidades, que de tão velhas,estavam esquecidas da história. Revelaram impressionantes remanescentes de uma vida social organizada e fragmentos de uma das mais antigas escritas já encontradas, infelizmente indecifrada.

Entre as ruínas, provas de contato comercial com povos distantes, que também começavam a dar os primeiros passos rumo a civilização. Permanece o mistério de quem exatamente eram e do que lhes aconteceu – desapareceram silenciosamente, por volta do 2º milênio antes de nossa era. Substituídos por outros povos, possivelmente em migrações sucessivas, que aos poucos introduziram uma nova língua e nova estrutura social.

Não se sabe o quanto de sua visão do mundo passou para seus sucessores, mas há indícios nos fragmentos encontrados e em textos posteriores, de que ali nasceram muitas das antigas tradições. Assim aos deuses trazidos nas migrações, se juntou um substrato filosófico que fermentaria novas concepções: Os hinos sagrados dos Vedas, os comentários filosóficos das Upanishads, as concepções religiosas registradas nos épicos (Ramayana eMahabharata) e a obra prima, o “Baghavad Gita” – a sublime canção do senhor Krisnha (inserida no texto do Mahabharata).

Por volta de 500 a.c., surge Sidharta Gautama, o Iluminado (Buda), que, ensinando um novo caminho para a libertação do sofrimento, abandona as fórmulas dos Vedas e a estrutura de castas – que tinha a casta sacerdotal, os brahmans, no topo – mas sem repudiar os conceitos filosóficos básicos e a postura central destes conceitos: a tolerância. Também como alternativa de libertação espiritual surgem os Jainas, que com um respeito profundo a toda manifestação da vida, se recusam a matar até mesmo os insetos.

Do quinto século antes de Cristo até o sexto século de nossa era, diversas filosofias se misturam pacificamente no subcontinente indiano e se espalham pelo Oriente distante. Da renovação filosófica da classe sacerdotal (principalmente na filosofia Vedanta), surge o hinduismo na forma em que o entendemos hoje. Brahmans, Jainas e Budistas se espalham pelas trilhas e mares – Sul da Índia, China, Sri Lanka, Camboja e além. Persas e gregos chegam as margens desse mundo distante e voltam para o Ocidente com notícias espantosas sobre os conhecimentos dos sábios exóticos (conta-se que um Jaina – da corrente mais radical, que não aceita nem mesmo usar roupas para não esmagar acidentalmente algum inseto oculto – retornou com a expedição de Alexandre e causou profunda impressão nos pensadores helênicos).

Por trás de alguns mitos ocidentais posteriores – Pitágoras aprendendo reencarnação da India; Jesus peregrinando entre Brahmans e Budistas antes dos 30 anos; etc … – está o reconhecimento do avanço na compreensão espiritual para lá do Sindhu (“rio” em sânscrito, em particular o “Indus”, o rio por excelência).

Com o sétimo século de nossa era, se inicia um novo período para a Índia. O Islã começa a avançar sobre o subcontinente e aos poucos torna-se a força dominante (séc. XIII). Nos séculos posteriores, mongóis e europeus também constroem impérios por lá.

A civilização hindu, outrora tão admirada, torna-se vitima da dominação estrangeira. Não mais espíritos curiosos como os filósofos gregos que acompanharam Alexandre o Grande, mas seguidores de religiões exclusivistas, orgulhosos de sua superioridade e dispostos a converter os demais a qualquer preço, ou melhor, se possível espoliando-os ao máximo de seus tesouros. É assim que os hindus aprendem o que é a intolerância religiosa, sentindo-a na própria pele.

Como parênteses, fica a observação de que os hindus, nesses contatos forçados, não tiveram a oportunidade de conhecer verdadeiros seguidores de Jesus de Nazaré, trazendo a Boa Nova do reino de Deus, nem mesmo do Islã culto dos filósofos de Bagdá e da Andalusia, que podiam compreender em profundidade os ensinamentos do Profeta Maomé. Tiveram contato com representantes de exércitos invasores, que fanaticamente refletiam em suas crenças os seus interesses de dominação.

O resto é história recente, que teve momentos dignos de um povo milenar quando Gandhi, munido apenas da não-violência (Ahimsa), libertou milhões do jugo colonial. Desde Ashoka, um dos grandes reis da Índia (por volta de 300 a.c.) , que governou um próspero e grande reino baseado no Dhamma (de muitas traduções possíveis, entre elas: dever, piedade, boa-conduta e decência), nunca tão grande espírito (Mahatma) tinha orientado os rumos políticos da nação.

Naturalmente um milênio de invasões e de submissão forçada a outras culturas, criou cicatrizes que se refletiram na tumultuada divisão (pós-independência) em um pais muçulmano e outro hindu. Apesar de todo esforço de Ghandi, e da tradição milenar de tolerância, hoje a Índia compartilha, com o Ocidente e com o mundo Islâmico, a existência de pequenos grupos fundamentalistas e os violentos conflitos decorrentes. Também a miséria e a ineficácia em levar os serviços sociais básicos a uma população numerosa, resultam nos mesmos problemas de outros paises do 3º Mundo, incluindo-se entre eles a criminalidade.

Mas enfim, abstraindo-se os problemas recentes, onde no substrato filosófico desta civilização se encontra a razão para a tolerância que a caracterizou ? De onde seus grandes pensadores tiraram o conceito de que não deveriam hostilizar-se mutuamente ? De quais dos ideais Védicos surge essa postura perante o mundo ?

Diria que de dois pontos principais: Da ênfase na vivência – para um hindu, a filosofia só faz sentido se refletida no comportamento de quem a adota – e da compreensão de que a realidade última está muito além das nossas possibilidades de descrição. De que é impossível descrever a Brahman (a Causa Primária de todas as coisas) e compreendê-lo com nossa mente finita e, assim, todas as descrições são aproximações. Desta última posição, da que está além da nossa capacidade de raciocínio descrever o infinito, de que nossa percepção se perde nos efeitos e não consegue perceber a causa (escondida pela Maya – a ilusão dos sentidos poeticamente representada pela magia de uma deusa), resulta principalmente a conseqüência de que todas as descrições são válidas – apenas aproximações da verdade.

A investigação da realidade, realidade da qual participa o espírito de cada um, levou a uma busca interior – desenvolvida nas escolas de meditação – que permitiu uma compreensão bastante precoce da psicologia humana. Conhecendo a psicologia, não fazia sentido forçar condutas exteriores. Também da investigação da realidade surgiu a convicção de um ordenamento moral do universo, tal qual o ordenamento promovido pelas leis físicas – ordenamento refletido na lei de ação e reação (Karma) e no dever de cada um em cumprir o melhor possivel o seu papel na vida (Dahrma). Ora, o Karma é intrinsecamente resultado da ação de cada um e portanto jamais passaria pela cabeça de um filósofo Hindu a idéia de queimar alguém para lhe salvar a alma.

Finalmente, essa realidade última – a Causa Primária de todas as coisas – onisciente e infinitamente além das nossas limitações, de modo algum pode ser atingida pela nossa ignorância. Infinito amor não tem como se ofender porque alguém crê que é desta ou daquela forma, que se chega a ele por tal ou qual caminho. Os que lhe conhecem – através da busca interior – não só não o conseguem descrever exatamente – por estar além das nossas palavras – como não precisam se preocupar em defende-lo, pois não há como feri-lo ou ofendê-lo.

Sejam quais forem os deuses a que seu coração sirva,
sempre sou eu o escopo da fé que o anima“.
cap 7, verso 21 – Bhagavad Gita
Trad. Huberto Rohden, ed. Martin Claret
Diante da civilização hindu e do seu espírito de tolerância, brevemente apresentados acima, não é possível para o pensador espírita deixar de refletir na influência de uma filosofia sobre a vida de um povo. Mais que isso, de uma filosofia espiritualista, reencarnacionista e cônscia de um ordenamento moral do Universo. Apesar das turbulências enfrentadas nos últimos séculos e de seus problemas – por exemplo, a dificuldade na compreensão de suas diversas correntes de pensamento, com seu complexo linguajar técnico e sua simbologia, se reflete na adoração pelas camadas populares de uma infinidade de deuses – é uma civilização que merece toda atenção.

Só finalizando este pequeno estudo, e para mostrar que a posição de tolerância da filosofia hindu nenhuma estranheza deve causar ao espírita, transcrevemos abaixo o trecho final da mensagem “Fora da Caridade não há Salvação”, do espírito Paulo (Paris, 1860), que consta do “Evangelho Segundo o Espiritismo” (os grifos são nossos):

Meus amigos, agradecei a Deus, que vos permitiu gozar a luz do Espiritismo. Não porque somente os que a possuem possam salvar-se, mas porque, ajudando-vos a compreender os ensinamentos do Cristo, ela vos torna melhores cristãos. Fazei, pois, que, quando vos vejam, se possa dizer que o verdadeiro espírita e o verdadeiro cristão são uma e a mesma coisa, porque todos os que praticam a caridade são discípulos de Jesus, qualquer que seja o culto a que pertençam.“.

Bibliografia

  • As Upanishads, Carlos Alberto Tinôco, IBRASA.
  • Bhagavad Gita, trad. Huberto Rohden, Ed. Martin Claret.
  • Breve História do Budismo, Nan Huai-Chin, Ed. Gryphus.
  • Filosofias da Índia, Heinrich Zimmer, Editora Palas Atenas.
  • Índia: A History, John Keay, Harper Collins Publishers.
  • La Filosofia de los Hindues, Helmut von Glasenapp, Barral Editores.
  • O Evangelho Segundo o Espiritismo, Allan Kardec, trad. J. Herculano Pires, EDICEL.
  • Pérolas no Fio, Yogashririshinam, médium Elzio Ferreira de Souza, Círculo Espírita da Oração.

(Publicado no Boletim GEAE Número 398 de 22 de agosto de 2000)