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A Erisipela do Meu Pai

A Erisipela do Meu Pai
Nasci e me criei numa casa espírita. A partir da adolescência, como é normal, questionei muitos aspectos da vida, mas no aspecto Deus e Imortalidade, fui sempre convencido pela racionalidade da doutrina dos espíritos. A partir dos 19 anos, tornei-me então um Espírita e, parafraseando alguém cujo nome esqueci e peço perdão, considero-me Espírita por convicção e não por herança.

Atualmente tenho visto e vivido uma nova realidade da doutrina. Percebo através dos amigos e na casa que freqüento, uma enorme preocupação com o estudo, em especial o sistematizado. Não seria eu, logo eu, que tenho o estudo e a pesquisa incorporados na alma, que iria contra esta orientação. Até porque, já ensinava o Mestre: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Porém, mesmo sendo um adepto do estudo e da leitura, preciso reconhecer que estes não são, de maneira alguma, o objetivo final de nossa estada aqui neste planeta.

Na casa espírita da qual faço parte, criou-se uma mentalidade de que o estudo sistematizado é o ponto inicial para qualquer, digamos, aprofundamento, em termos de espiritismo. Implantou-se uma orientação de que ninguém pode aspirar à prática mediúnica sem antes passar pelo que chamo de “Faculdade Espírita”. São cerca de quatro anos de Estudo Sistematizado mais um ano de Desenvolvimento Teórico da Mediunidade para, só então, o interessado chegar à mesa mediúnica. Uma das poucas virtudes que possuo, talvez a única, é a de entender e respeitar o ponto de vista alheio. Creio realmente que tal sistemática prepara os médiuns oferecendo-lhes embasamento teórico para enfrentar as dificuldades da lida mediúnica. O que não entendo porém, é o caráter obrigatório de tal orientação. Como explicar para o indivíduo que chega à casa espírita com a mediunidade aflorando que ele deve contê-la por cinco anos e só então retomá-la? O que fazer com aquelas pessoas que incorporam (é, eu sou do tempo do incorporar, sim senhor) em casa, no trabalho ou na rua e chegam na casa espírita em busca de socorro?

Respeito a opinião daqueles que entendem que o médium deva ter um diploma, porém não vejo como conciliar tal orientação, ainda mais em nível obrigatório, com a dinâmica do cotidiano.

Quando vejo alguém defender a obrigatoriedade de cinco anos de estudos para que um indivíduo se torne médium, imediatamente me lembro dos antigos rituais de iniciação, tão propalados pela história. Lembro-me de ler a respeito dos mestres que, juntamente com seus discípulos ou iniciados, fechavam-se nos templos e passavam então a lidar com forças ocultas, criando em torno de si uma aura de mistério e medo. E, pensando assim, surge-me a pergunta: será que nós espíritas, não estamos nos tornando monges modernos? Será que não estamos nos fechando demasiadamente nas nossas salas de estudos? Será que não estamos enclausurando o conhecimento entre quatro paredes tornando-o demasiadamente didático? Dia desses, questionei um amigo sobre tudo isso e ele não só concordava comigo como ainda lembrou das palavras do Cristo: “Não coloqueis a candeia debaixo do alqueire”. E aí, mais uma vez fiquei a pensar. Será que nós espíritas, com esta fascinação pelo estudo, não estamos colocando a candeia debaixo do alqueire? Se a mediunidade é condição inerente a todo o ser humano e se ela quer queiramos ou não, se manifesta, será lícito e possível obrigar o indivíduo a “sufocar” sua mediunidade sob a alegação de que ele não é um médium formado? E qual, afinal de contas o objetivo de tanto estudo?

Quando, na casa espírita que freqüento, converso com aquelas pessoas que defendem a idéia de que fulano só pode exercer a mediunidade após freqüentar a “faculdade espírita”, lembro da erisipela do meu pai.

Meu pai, sujeito criado no campo e muito franco, certa feita apareceu com uma pequena feridinha na lateral da perna, naquela região ao lado do calcanhar. Mercúrio daqui, água oxigenada dali e a tal feridinha não curava. Um Domingo de verão, dia bem quente, ele resolveu molhar os pés na beira do rio Guaíba. Como o rio não era despoluído, aumentou o problema. A tal feridinha veio a crescer e se transformar numa enorme erisipela.

Lembro que meu pai, preocupado e temendo que a erisipela fosse contagiosa e se estendesse para mim e para minha mãe, procurou um médico. O doutor o tranqüilizou dizendo que não era contagioso e receitou alguns medicamentos.

Depois de seguir as recomendações do médico e não obter melhora, meu pai procurou outros médicos. Lembro que ele carregou aquela ferida na perna por alguns anos. Nada do que ele usava era capaz de melhorar a tal erisipela. Os medicamentos receitados até secavam a ferida, mas bastavam alguns dias e ela recomeçava a sangrar e purgar. Como disse, foram anos. Como muitas outras histórias parecidas, meu pai desistiu dos médicos e começou a seguir então o conselho de pessoas ainda de mais idade. Iniciou-se então a fase de colocar café, passar esta ou aquela erva, lavar com um tipo de chá especial. Lembro que ele fazia uma infusão de álcool e arnica e aplicava na ferida diariamente. Tudo em vão.

Um dia, não sei bem como nem porque, meu pai descobriu que na rua ao lado da nossa havia uma senhora de idade que era tida como benzedeira. Não saberia dizer quantas vezes meu pai foi até a casa daquela velhinha, mas foram menos de dez vezes. Algo como uma vez por semana durante, mais ou menos, umas quatro semanas. Ele ia até lá, a velhinha o recebia bondosa, sentava-se na frente dele, mandava ele levantar a bainha da calça e ela então pegava um maço de ervas e começava a passar no sentido da cruz sobre a ferida e a dizer palavras bem baixinho de forma inteligível. Meu pai saia de lá e sempre, eu disse sempre, perguntava o quanto devia. A velhinha respondia todas as vezes que não era nada. Lembro da alegria do meu pai ao saber que estava curado e que a tal erisipela havia secado e – conforme pudemos todos constatar – não voltara nunca mais.

Não posso lembrar deste fato sem relacionar a outras tantas curas que tomamos conhecimento habitualmente. Nós espíritas sabemos que – no ato de benzer – existe ali um médium dotado de força magnética e que age, com boa vontade e fé de maneira simples, por vezes até ingênua, e que cura de verdade. Mas e o estudo? Será que aquela benzedeira que curava e não cobrava, que ajudou a meu pai e a muitas dezenas de pessoas mais, será que ela havia feito o estudo sistematizado por cinco anos? Se ela não fez, como podia aquela bondosa velhinha saber tanto a respeito de reforma íntima, de “daí de graça”, de magnetismo, de fé e outras tantas questões? Ou, se invertermos o raciocínio: quantos espíritas diplomados no estudo sistematizado tem condições e conhecimentos suficientes para reproduzir as curas daquela velhinha? Alguns espíritas dirão que, a velhinha pobre e semi-analfabeta era um espírito vivido, inteligente e de boa vontade que se apresentava sob um corpo primitivo e sem cultura. Alguém em quem a mediunidade aflorava de forma visível, capaz de curar, devido à mediunidade que possuía, unida a fé e a boa vontade que demonstrava ao auxiliar os semelhantes.

É bem possível que tudo isso seja verdade. Porém, fico imaginando aquela velhinha chegando numa casa espírita hoje e dizendo que faz umas curas, pedindo um espaço para auxiliar quem precisasse. Conheço espíritas que dariam um sorriso e diriam a ela que isso não podia ser, e que se ela quisesse realmente auxiliar os outros, deveria esquecer aquela coisa de benzedura, se matricular no estudo sistematizado, e, – depois de quatro anos – estaria apta a fazer um curso de passe. Depois, e só depois, poderia começar a ajudar alguém.

Não quero emitir juízo de valor sobre certo e errado, mas posso dizer que, se aquela velhinha tivesse tolhido sua mediunidade a espera de completar a faculdade de espiritismo que alguns apregoam como imprescindível, meu pai , se estivesse ainda na Terra, por certo ainda estaria sofrendo daquela miserável erisipela.

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E estes sinais acompanharão aos que crerem: em meu nome expulsarão demônios; falarão novas línguas; pegarão em serpentes; e se beberem alguma coisa mortífera, não lhes fará dano algum; e porão as mãos sobre os enfermos, e estes serão curados.” – Jesus

Antonio Carlos

(Publicado no Boletim GEAE Número 434 de 2 de abril de 2002)