Alguns Argumentos Contra o Suicídio (III)
“Eloquente é também o epílogo do drama que foi a vida do grande escritor
português Camilo Castelo Branco. Obsidiado, pessimista, médium que jamais deu
valor ou prestou atenção às suas faculdades mediúnicas, nem mesmo aos notáveis
fenômenos ocorridos na sua desregrada existência, ele próprio preparou o seu
triste fim.
Dispondo de grande cultura, um tanto habituado aos trambolhões da vida, que
ele nunca soube bem viver, velho hepático e não menos dispéptico, foi atingido
por um mal de olhos que o levou gradativamente às fronteiras da cegueira
completa.
Sempre esperançado de melhoras ou cura, foi passando o tempo, até conseguir
consultar-se com um abalizado especialista, que o foi examinar na própria
residência e de que esperava a última palavra decisiva sobre o mal. Isso em
junho de l890. Tratava-se de um caso perdido, de irremediável cegueira. Ouvindo
a terrível revelação, Camilo Castelo Branco, que já pensava diversas vezes em
suicídio, deu um tiro na cabeça meses depois.
Eis sua carta de despedida:
“Em 26 de novembro de l890.
10 horas da noite.
Os inenarráveis padecimentos que se vão complicando todos os dias levam-me ao
suicídio – único remédio que lhes posso dar. Rodeado de infelicidades de espécie
moral, sendo a primeira insânia de meu filho Jorge, e a segunda os desatinos de
meu filho Nuno, nada tenho a que me ampare nas consolações de família. A mãe
desses dois desgraçados não promete longa vida; e se eu pudesse arrastar minha
existência até ver Ana Plácida morta, infalivelmente eu me suicidaria. Não
deixarei cair sobre mim essa enorme desventura – a maior, a incompreensível à
minha grande compreensão da desgraça. Esta deliberação de me suicidar vem de
longe, como um pressentimento. Previ, desde os trinta anos, este fim. Receio
que, chegando o supremo momento, não tenha firmeza de espírito para traçar estas
linhas. Antecipo-me à hora final. Quem puder ter a intuição das minhas dores,
não me lastime. A minha vida foi tão extraordinariamente infeliz que não podia
acabar como a da maioria dos desgraçados. Quando se ler este papel, eu estarei
gozando a primeira hora do repouso. Não deixo nada. Deixo um exemplo. Este
abismo a que me atirei ‚ o “terminus” da vereda viciosa por onde as fatalidades
me encaminharam. Seja bom e virtuoso quem o puder ser”.
Mergulhado por esse trevoso salto no insondável abismo do suicídio, o incauto
e orgulhoso literato, defrontou-se com as terríveis e irrecorríveis realidades
do Além-Túmulo, onde o Espírito se choca com a muralha inderrocável das leis
eternas que regem a verdadeira vida.
Longe de encontrar o repouso que vaidosamente a si próprio anunciara e
prometera, o pobre escritor encontrou sofrimento, remorso, dores, cárcere de
visões aterradoras, um cenário de expiações dolorosas.”
O Vale dos Suicidas(5)
“…região composta por vales profundos, com gargantas sinuosas e cavernas
sinistras, no interior dos quais uivavam demônios enfurecidos, Espíritos que
foram homens dementados pela intensidade e estranheza, verdadeiramente
inconcebíveis, dos sofrimentos que os martirizavam. O solo coberto de matérias
enegrecidos e fétidos, lembrando a fuligem, sendo imundo, pastoso, escorregadio
e repugnante. O ar é pesadíssimo, asfixiante, gelado, coberto por um forte
nevoeiro. Os Espíritos que ali habitavam vivem sufocados como se matérias
pulverizadas, nocivas mais do que a cinza e o cal lhes invadissem as vias
respiratórias. Os raios solares jamais chegam a esse lugar. É um local onde não
existem paz, consolo e a esperança. Tudo é marcado pela desgraça, miséria,
assombro, desespero e horror. Quem ali habita são grandes vultos do crime e
falanges de suicidas. (…)
De outras vezes, tateando nas sombras, lá íamos, por entre gargantas, vielas
e becos, sem lograrmos indícios de saída… Cavernas, sempre cavernas – todas
numeradas -; ou longos espaços pantanosos quais lagos lodosos circulados de
muralhas abruptas, que nos afiguravam levantadas em pedra e ferro, como se
fôramos sepultados vivos nas profundas tenebrosidades de algum vulcão! Era um
labirinto onde nos perdíamos sem podermos jamais alcançar o fim! Por vezes
acontecia não sabermos retornar ao ponto de partida, isto é, às cavernas que nos
serviam de domicilio, o que forçava a permanência ao relento até que
deparássemos algum covil desabitado para outra vez nos abrigarmos. Nossa mais
vulgar impressão era de que nos encontrávamos encarcerados no sub-solo, em
presídio cavado no seio da Terra, quem sabia se nas entranhas de uma
cordilheira, da qual fizesse parte também algum vulcão extinto, como pareciam
atestar aqueles imensuráveis poços de lama com paredes escalavradas lembrando
minerais pesados?! (…)
Cada um de nós, no Vale Sinistro, vibrando violentamente e retendo com as
forças mentais o momento atroz em que nos suicidamos, criávamos os cenários e
respectivas cenas que vivêramos em nossos derradeiros momentos de homens
terrestres. Tais cenas, refletidas ao redor de cada um, levavam a confusão à
localidade, espalhavam tragédia e inferno por toda a parte, seviciando de
aflições superlativas os desgraçados prisioneiros. Assim era que se deparavam,
aqui e ali, forcas erguidas, balançando o corpo do próprio suicida, que evocava
a hora em que se precipitara na morte voluntária. Veículos variados, assim como
comboios fumegantes e rápidos, colhiam e trituravam, sob suas rodas, míseros
transloucados que buscavam matar o próprio corpo por esse meio execrável, os
quais, agora, com a mente “impregnada” do momento sinistro, retratavam sem
cessar o episódio, pondo à visão dos companheiros afins suas hediondas
recordações! Rios caudalosos e mesmo trechos alongados de oceano, surgiam
repentinamente no meio daquelas vielas sombrias: – era meia dúzia de réprobos
que passava enlouquecida, deixando à mostra cenas de afogamento, por arrastarem
na mente conflagrada a trágica lembrança de quando se atiraram às suas águas!…
Homens e mulheres transitavam desesperados: uns ensangüentados, outros
estorcendo-se no suplício das dores pelo envenenamento, e, o que era pior,
deixando à mostra o reflexo das entranhas carnais corroídas pelo tóxico
ingerido, enquanto outros mais, incendiados, a gritarem por socorro em correrias
insensatas, traziam pânico ainda maior entre os companheiros de desgraça, os
quais receavam queimar-se ao seu contacto, todos possuídos de loucura coletiva!
E coroando a profundeza e intensidade desses inimagináveis martírios — as penas
morais: os remorsos, as saudades dos seres amados, dos quais não tinham mais
notícias, os mesmos dissabores que haviam dado causa ao desespero e que
persistiam em afligir!… E as penas físico-materiais: a fome, o frio, a sede,
exigências fisiológicas em geral, torturantes, irritantes, desesperadoras! a
fadiga, a insônia depressora, a fraqueza, o delírio!”
(Publicado no Boletim GEAE Número 334 de 2 de março de 1999)