Anjos e Demônios
Todas as religiões têm tido, sob diversos nomes, anjos, quer dizer seres superiores à humanidade, intermediários entre Deus e os homens.
A crença nos anjos faz parte essencial dos dogmas da Igreja. Segundo ela, os anjos são seres puramente espirituais, anteriores e superiores à humanidade, criaturas privilegiadas devotadas à felicidade suprema e eterna desde sua formação; dotadas, por sua natureza mesma, de todas as virtudes e de todos os conhecimentos, sem nada haver feito para os adquirir. Eles estão na primeira classe na obra da criação; na última classe, a vida puramente material, e entre as duas a humanidade formada das almas, seres espirituais inferiores aos anjos unidos a corpos materiais.
Que haja seres dotados de todas as qualidades atribuídas aos anjos, disso não se poderia duvidar. A revelação espírita confirma sobre esse ponto a crença de todos os povos; mas ela nos faz conhecer ao mesmo tempo a natureza e a origem desses seres.
As almas ou Espíritos são criados simples ou ignorantes, quer dizer sem conhecimentos e sem consciência do bem e do mal, mas aptos a adquirir tudo o que lhes falta; eles o adquirem pelo trabalho; o propósito, que é a perfeição, é o mesmo para todos; eles aí chegam mais ou menos prontamente, em virtude de seu livre arbítrio e em razão de seus esforços; todos têm os mesmos degraus a percorrer, o mesmo trabalho a realizar; Deus não faz uma parte maior nem mais fácil para uns do que para outros, porque todos são seus filhos e sendo justo, não tem preferência por nenhum. Ele lhes disse: «Eis a lei que deve ser sua regra de conduta; ela sozinha pode conduzi-los ao objetivo; tudo o que estiver de acordo com esta lei é o bem, tudo o que lhe for contrário é o mal. Vocês são livres para a observar ou para a infringir, e serão assim os árbitros de sua própria sorte». De nenhuma forma Deus criou o mal; todas suas leis são para o bem; é o homem por si mesmo que cria o mal infringindo as leis de Deus; se ele as observasse escrupulosamente, não se afastaria jamais do bom caminho.
Mas a alma, nas primeiras fases de sua existência, como uma criança, tem falta de experiência; é por isso que é falível. Deus não lhe deu a experiência, mas os meios de adquiri-la; cada passo em falso no caminho do mal é para ela um retardo; disso sofre as conseqüências e aprende, às suas custas, o que deve evitar. É assim que pouco a pouco se desenvolve, se aperfeiçoa e avança na hierarquia espiritual, até que tenha chegado ao estado de puro Espírito ou de anjo. Os anjos são então as almas dos homens chegadas ao grau de perfeição comportado pela criatura e gozando da plenitude da felicidade prometida. Antes de haver atingido o grau supremo, gozam de um bem estar relativo ao seu adiantamento, mas esse bem estar não é nada na ociosidade; é nas funções que praza a Deus lhe confiar e que nas quais são felizes de preencher, porque que essas ocupações são um meio de progredir.
A humanidade não está de nenhuma forma ligada à Terra; ela ocupa os inumeráveis mundos que circulam no espaço; já ocupou aqueles que desapareceram, e ainda ocupará aqueles que se formarão. Deus criou por toda a eternidade e cria sem cessar. Então, muito tempo antes que a Terra existisse, tão no passado quando se queira supor, existiam sobre outros mundos Espíritos encarnados que percorreram as mesmas etapas que nós, de formação mais recente, percorremos neste momento, e que chegaram ao objetivo antes mesmo que tivéssemos saído das mãos do Criador. Por toda a eternidade, têm então existido anjos ou Espíritos puros; mas sua existência humanitária se perde no infinito do passado e é para nós como se eles tivessem sempre sido anjos.
Assim se encontra realizada a grande lei da unidade da criação; Deus jamais tem sido inativo; sempre tem tido Espíritos puros experimentados e esclarecidos para a transmissão de suas ordens e para a direção de todas as partes do universo, desde o governo dos mundos até aos mais ínfimos detalhes. Não tem então tido necessidade de criar seres privilegiados, isentos de encargos; todos, antigos ou novos, têm conquistado seus graus na luta por seus próprios méritos; todos, enfim, são os filhos de suas obras. Assim se cumpre igualmente a soberana justiça de Deus.
Segundo o Espiritismo, nem os anjos nem os demônios são seres à parte; a criação dos seres inteligentes é una. Unidos a corpos materiais, constituem a humanidade que povoa a Terra e as outras esferas habitadas; desligados desse corpo constituem o mundo espiritual ou dos Espíritos que povoam os espaços. Deus os criou perfectíveis; deu-lhes por objetivo a perfeição e a felicidade, que é a sua conseqüência, mas não lhes deu a perfeição; quis que eles a atingissem por seu trabalho pessoal, afim de que disso tivessem o mérito. Após o instante de sua formação, progridem tanto pelo estado de encarnado, quanto pelo estado espiritual; chegados ao apogeu, eles são Espíritos puros ou anjos conforme vulgarmente chamados; de sorte que, desde o embrião do ser inteligente até ao anjo, há uma cadeia ininterrupta da qual cada elo marca um degrau no progresso.
Disso resulta que existem Espíritos em todos os graus de adiantamento moral e intelectual, conforme estejam no alto, em baixo, ou no meio da escala. Há, por conseqüência, em todos os graus, o saber e a ignorância, a bondade e a malícia. Nas classes inferiores, há os que ainda estão profundamente inclinados ao mal, e que nisso se comprazem. Podem ser chamados demônios, se o quisermos, porque são capazes de todos os delitos atribuídos a esses últimos. Se o Espiritismo não lhes dá este nome, é porque trás a idéia de seres distintos da humanidade, de uma natureza essencialmente perversa, devotados ao mal pela eternidade e incapazes de progredir no bem.
Segundo a doutrina da Igreja, os demônios foram criados bons, e se tornaram maus por sua desobediência: são os anjos caídos; eles tinham sido colocados por Deus no alto da escala, e decaíram. Segundo o Espiritismo, são Espíritos imperfeitos, mas que melhorarão; estão ainda embaixo na escala e subirão.
Estes por seu desleixo, sua negligência, sua obstinação e sua maldade permanecem mais tempo nas classes inferiores, sofrendo suas penas, sendo que o hábito do mal lhes torna mais difícil daí sair; mas chega a hora em que se cansam desta existência penosa e dos sofrimentos que são sua conseqüência; então, comparando sua situação com aquela dos bons Espíritos, compreendem que seu interesse está no bem, e procuram se melhorar, mas o fazem por sua própria vontade e sem serem a isso constrangidos. Eles estão submetidos à lei do progresso por sua aptidão de progredir, mas nada progredirão se não o desejarem. Deus lhes fornece sem cessar os meios, mas são livres para disso aproveitar ou não. Se o progresso fosse obrigatório, não teriam nenhum mérito, e Deus quer que sejam deles suas obras; ninguém é colocado na primeira categoria por privilégio, mas a primeira categoria está aberta a todos, e não se chega lá senão por seus esforços. Os anjos mais elevados conquistaram seu grau como os outros, passando pela rota comum.
Chegados a um certo grau de depuração, os Espíritos têm missões correspondentes ao seu adiantamento; eles cumprem todas aquelas que são atribuídas aos anjos de diferentes ordens. Como Deus criou por toda a eternidade, por toda eternidade eles têm se encontrado para satisfazer a todas as necessidades do governo do universo. Uma só espécie de seres inteligentes, submetidos à lei do progresso, basta então a tudo. Esta unidade na criação, com o pensamento de que todos têm um mesmo ponto de partida, a mesma rota a percorrer, e que se elevam por seu próprio mérito, corresponde bem melhor à justiça de Deus, que a criação de espécies diferentes mais ou menos favorecidas de dons naturais que seriam o mesmo que privilégios.
Satã
Segundo a Igreja, Satã, o chefe ou o rei dos demônios, não é apenas uma personificação alegórica do mal, mas antes um ser real, fazendo exclusivamente o mal, enquanto que Deus faz exclusivamente o bem.
O próprio Jesus falou de Satã, mas teria o termo em sua boca a mesma significação que nos dias de hoje? Teria falado de uma individualidade precisa? De nenhuma forma, Satã designa tanto uma doença, como um inimigo ou um acusador. Nitidamente ressalta que Jesus falou do diabo por acomodação*; com efeito, sua mensagem não se dirigia aos doutores da fé, mas às pessoas simples. Ele empregava por acomodação o termo de Satã para dizer que o mal existe e que sua mensagem e seu remédio para esse mal era «Amai-vos uns aos outros». Ainda mais, Jesus indica mesmo qual é a fonte do mal: «É do interior, do coração dos homens que saem as intenções malignas, o mau comportamento, roubos, homicídios, adultério, cupidez, perversidade, astúcia, devassidão, inveja, injúria, orgulho, irracionalidade.Todo esse mal sai do interior e torna o homem impuro». (Marcos, VII, 21 a 23)
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*Acomodação – Numa situação de comunicação, o ajustamento do discurso de um indivíduo à fala de seu interlocutor.
Jesus
A questão da natureza do Cristo tem sido debatida desde os primeiros séculos do cristianismo, as opiniões são formadas mais sobre abstrações do que sobre fatos, tem-se buscado, sobretudo, o que o dogma da natureza divina do Cristo podia ter de plausível ou de irracional, e se tem geralmente negligenciado, de um modo ou de outro, em ressaltar os fatos que poderiam lançar uma luz decisiva sobre a questão.
Segundo a Igreja, a divindade do Cristo é principalmente estabelecida por milagres, como testemunha de um poder sobrenatural. O Espiritismo veio demonstrar que as faculdades de Jesus se encontram, em diferentes graus, entre os magnetizadores, curadores, videntes, médiuns, etc.… e que estes são fenômenos naturais, que puderam aparecer como « milagres » outrora, mas que hoje perderam seu caráter maravilhoso.
Não tendo Jesus deixado nada escrito, seus únicos historiadores foram os apóstolos. Não existe sobre sua vida e sua doutrina nenhum documento além dos Evangelhos; então é preciso procurar somente aí a chave do problema.
Tudo demonstra nas palavras de Jesus, seja em vida, seja após sua morte, um profundo sentimento de sua inferioridade e de sua subordinação com relação ao Ser supremo. Por sua insistência em afirmar isso espontaneamente, sem ser constrangido nem provocado por quem quer que seja, ele parece querer protestar antecipadamente contra a função que previa lhe atribuiriam um dia. Qual autoridade maior pode-se encontrar que não as próprias palavras de Jesus? Quando diz categoricamente: eu sou ou não sou tal coisa, quem ousaria se arrogar o direito de lhe dar um desmentido, mesmo que fosse para o colocar mais alto do que ele colocava a si mesmo? Quem é que pode razoavelmente pretender ser mais esclarecido que ele sobre sua própria natureza?
Quais interpretações podem prevalecer contra as afirmações tão formais e tão multiplicadas como estas: «Eu vou ao meu Pai, porque meu Pai é maior que eu. – Porque me chamam vocês de bom? Não há ninguém a não ser Deus que seja bom. – Minha doutrina não é minha doutrina, mas a doutrina daquele que me enviou. – Eu não posso nada fazer por mim mesmo. – Eu não busco minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. – Eu lhes tenho dito a verdade que tenho recebido de Deus. – Meu Pai, entrego minha alma em suas mãos. – Eu vou para meu Pai e seu Pai, para meu Deus e seu Deus».
A única passagem dos Evangelhos que parece afirmar implicitamente uma idéia de identificação entre Deus e a pessoa de Jesus, e sobre a qual os teólogos têm argumentado, é esta: «E o verbo se fez carne e habitou entre nós».
Essas palavras são de João, não de Jesus, e afirmam o misticismo habitual do apóstolo. Mesmo aceitando-as tais quais estão, elas não decidem de nenhuma forma a questão no sentido da divindade, porque elas se aplicariam igualmente a Jesus, criatura de Deus.
Com efeito, o Verbo é Deus, porque é a palavra de Deus. Jesus tendo recebido esta palavra diretamente de Deus, com missão de a revelar aos homens, a assimilou; a palavra divina da qual Ele estava penetrado encarnou nele; Ele a levava no nascimento, e é com razão que Jesus pode dizer: O Verbo se fez carne, e habitou entre nós. Jesus pode então ser encarregado de transmitir a palavra de Deus, sem ser Deus ele mesmo, como um embaixador transmite as palavras de seu soberano, sem ser o soberano.
Vale a pena anotar:
Nem os anjos, nem os demônios são criaturas à parte. Todos os Espíritos têm sido criados simples e perfectíveis.
Para saber mais:
- O Livro dos Espíritos de Allan Kardec (2ª parte, cap. I, O mundo dos Espíritos)
- O Céu e o Inferno de Allan Kardec (1ª parte, cap. VIII, Os anjos)
- O Céu e o Inferno de Allan Kardec (1ª parte, cap. IX, Os demônios)
- Obras Póstumas de Allan Kardec (3ª parte, Estudo sobre a natureza do Cristo)
- Após a morte de Léon Denis (4ª parte, cap. XXXVII, O inferno e os demônios)
- Jesus o Cristo segundo o Espiritismo de Roger Perez (fascículo)
- Historia mítica de Satã de Charles Lancelin