As Mulheres Galiléias e o Início do Movimento Feminino
Ao sincretizar às tradições do judaís mo, elementos
mitológicos e lendários de tradições mais antigas, Moisés, o grande legislador
hebreu, precisava preservar, como ponto fundamental de sua doutrina, a crença em
Jeová, o Deus único.
Diferente das religiões pagãs politeístas, onde deuses e deusas,
representantes dos elementos masculino e feminino, em convívio harmônico,
dividiam o poder, ou o disputavam condições de igualdade quando a harmonia entre
ambos era rompida, Jeová, único e absoluto, não tinha nem admitia concorrentes
ao trono. Esse absolutismo deísta determinou a supremacia masculina sobre a
feminina em todas as sociedades que iam absorvendo essa crença, cujos
revérberos, ainda hoje, refletem-se na maioria das culturas humanas.
Mitos como o de Adão e Eva, extraídos de longínquas tradições mesopotâmicas,
ao serem incorporados ao judaísmo, precisavam ser modificados para adequá-los ao
espírito, aos costumes, e às crenças do povo hebreu.
Segundo a mitologia hebraica, ao criar Adão do barro, Deus soprou-lhe o
espírito vivificador, enquanto Eva, que fora criada de uma de suas costelas, não
recebeu do Criador o mesmo privilégio. Eva tornou-se, pura e simplesmente, um
subproduto de Adão, e a julgar pela lenda, nem mesmo espírito tinha, que ficou
sendo atributo exclusivo do homem: E formou o Senhor Deus o homem do pó da
terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma
vivente (Ge. 2,7). E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da
minha carne; esta será chamada mulher, porque do homem foi tomada (Ge. 2, 23).
Por serem estados geralmente teocráticos, a religião sempre determinou os
usos, costumes e tradições naquelas antigas sociedades, cujos avanços culturais
eram sempre atribuídos à inteligência e à ação do fator masculino, enquanto à
mulher cabia tão somente a função de geratriz. Na sociedade judaica esta
situação permaneceu estratificada por milênios seguidos, e jamais sofre alguma
ruptura.
Ao propor as bases de uma paz universal, através de uma convivência
igualitária entre todas as criaturas, regida por um Deus onipotente e
universalista, que transcendia as fronteiras políticas, geográficas e
sociológicas dos povos, Jesus Cristo tentou modificar os velhos conceitos da
supremacia do homem sobre a mulher, ao estabelecer no seio do Cristianismo,
condições de igualdade de trabalho entre os dois sexos.
Esse novo status social, trazido pelo Cristianismo infante, fez a mulher
compreender que até então vivera sob condição de serva absoluta. Esta nova
compreensão de sua condição de vida ensejou-lhe a vontade de experimentar o
trabalho fora do lar, mesmo que em caráter precário. Foi assim que aquelas
sociedades cristãs primitivas viram emergir em seu próprio ambiente, as
associações de mulheres piedosas, cujas principais atividades eram as de
serviços de amor ao próximo.
Embora com situação ainda muito desfavorável, face a atmosfera hostil que
respiravam, essas congregações femininas foram profícuas na dispensação de
favores materiais e espirituais dentro das comunidades cristãs. A primeira
dessas congregações surgiu na Galiléia, e era composta principalmente de
mulheres adúlteras, ou de vida duvidosa, e em seguida surgiram também as
associações de viúvas.
Essas associações de mulheres acompanhavam Jesus em seus deslocamentos, e
davam-lhe suporte assistencial nas vezes em que as aglomerações de pessoas se
tornavam imensas. Nesses momentos elas atendiam os mendigos, pedintes, coxos,
aleijados, com auxílios de amparo e de solidariedade.
Na crise do Calvário, que culminou na morte de Jesus, as mulheres galiléias
tiveram posição destacada, e estiveram presentes em todos os seus lances,
amenizando o quanto possível a crueza daqueles momentos. Ao descerem o corpo de
Jesus da cruz, foram elas que primeiramente o receberam em seus braços. Fora
também elas que ataviaram com linhos brancos o sepulcro onde depositaram o corpo
do Mestre. Em seguida compraram e prepararam aromas para embalsamá-lo e perfumar
o local. Enfim, deram-lhe um acompanhamento condigno. Sem a intervenção daquelas
mulheres pias, lideradas por Maria Madalena, aquelas horas teriam sido mais
tristes e pungentes do que realmente o foram, como relatam os evangelistas: As
mulheres que tinham vindo da Galiléia com Jesus, seguindo-o, viram o túmulo e
como o corpo fora ali depositado. Então se retiraram para preparar aromas e
bálsamos (Lc. 23, 55-56).
O testemunho daquele punhado de mulheres piedosas da Galiléia exemplificou
publicamente, e determinou para sempre, naquela hora, a consciência de amor ao
próximo, que foi o fulcro de todo o ensinamento que Jesus Cristo deixou aos
homens, e ajudou a decidir, com certeza, sobre o futuro vitorioso do
Cristianismo. Seu Mestre tornara-as livres. E essa liberdade elas haveriam de
preservar e testemunhar contra as injunções do mundo.
Com a morte de seu Mestre as mulheres galiléias retornam aos seus locais de
origem, e seus nomes saem para sempre da história do Cristianismo. Maria
Madalena, Joana de Cusa, Salomé, Maria Cleopas, Suzana, desaparecem nas sombras
do esquecimento. E, com certeza, tantas outras cujos nomes jamais foram
mencionados. Mas o seu exemplo frutificou. Seu trabalho foi retomado
primeiramente em Jerusalém, e depois espalhou-se a todas as regiões com a
propagação e o crescimento do Cristianismo, que possibilitou-lhes atividades
sadias, produtivas e decorosas (Atos 6,1).
Em Jerusalém, as mulheres organizavam- se em ordens, cujo objetivo era pedir
esmolas para depois distribuí-las aos mais pobres. Faziam reuniões em suas
próprias casas. As instituições de socorro ao próximo (centros mediúnicos), que
tiveram sua criação mais tardia, e as congregações de irmãs de caridade, foram
criações das mulheres que já não estavam mais sujeitas às atividades do lar, e
foram, no início, a força que movimentou a atividade cristã, quanto a
assistência ao próximo. A palavra “viúva” veio a ser sinônimo de mulher
religiosa, devotada a Deus (I Tim. 5,3). Com a criação do diaconato na igreja
Cristã de Jerusalém, as mulheres pias passaram a ser chamadas de “diaconisas”.
Uma das que muito se destacaram foi Maria, mãe de João Marcos, discípulo de
Pedro. De condição abastada, ela fez de sua casa um centro de atendimento aos
aflitos, como também proporcionava hospitalidade aos viajantes e pregadores
cristãos, que passavam por Jerusalém em seus trabalhos missionários.
O Cristianismo primitivo foi o primeiro movimento histórico que pretendeu dar
à mulher uma condição de “status” social igual a do homem. Sua liberalização
começou quando o exercício da atividade cristã tirou-a da servidão a que estava
jungida pelas imposições da lei e pelos compromissos do casamento. O trabalho
cristão de assistência ao próximo fê-la, pela primeira vez, ter consciência de
sua própria individualidade de mulher, que pensa, sente, ama e sofre.
Mas diz o rifão que “Deus põe e o homem dispõe”.
Com o passar dos anos o Cristianismo primitivo fracionou-se, e a única
vertente que sobreviveu e cresceu foi a de Paulo de Tarso. Diferentemente dos
apóstolos que ficaram em Jerusalém, que tinham o trabalho das mulheres em suas
comunidades “em grande conta”, o apóstolo dos gentios, formado nos rigorismos da
lei judaica, mesmo tendo operado em si grandes transformações íntimas com
relação aos costumes e tradições herdados de sua raça, ainda assim, após sua
conversão, não conseguiu desvencilhar- se de alguns de seus velhos costumes.
Paulo, solteiro, não via com bons olhos o trabalho das mulheres casadas nas
comunidades cristãs, a não ser que estivessem sempre acompanhadas de seus
maridos. Para ele, a colaboração da mulher nas igrejas deveria resumir-se às
solteiras: Há diferença entre a mulher casada e a virgem. A solteira cuida das
coisas do Senhor para ser santa. Porém, as casadas cuidam das coisas do mundo,
em como há de agradar ao marido (I Cor. 7,34). Com relação às atividades da
mulher fora do lar, Paulo é inflexível como a lei judaica: Da mesma sorte que as
mulheres, em traje decente, se ataviem com modéstia, não com cabeleira frisada,
com ouro, ou pérolas, ou vestuário dispendioso. E não permito que a mulher
ensine, e nem exerça autoridade sobre o marido, e que na igreja permaneça calada
(I Tim. 2, 9-13).
O que parecia no Cristianismo, ser o início de um processo de libertação da
mulher do jugo escravizador a que ela estava submetida pelas leis humanas,
processo esse desencadeado pelo próprio Mestre galileu, com Paulo, vê seus
avanços serem detidos por força da vontade do apóstolo, que ainda não conseguira
compreender, que a liberdade de consciência que ele apregoava, envolvia também
os anseios femininos.
Mas Paulo não foi insensível totalmente ao trabalho das mulheres. Em sua vida
de missionário ambulante, ele sempre contou com a colaboração valiosa de
valorosas companheiras de ideal, que ele apoiou e incentivou, e que lutaram
bravamente ao seu lado para levar em frente a bandeira de Cristo.
(Publicado no Correio Fraterno do ABC Nº 358 de Novembro de 2000)