Enéas Canhadas
Geralmente, a curiosidade faz sair de dentro de nós a pessoa impulsiva. É como um saca-rolhas. Pode nos fazer tomar posse de algo que não nos pertence, por exemplo. Ou então, não permite esperar a “hora certa”, como se costuma dizer. De uma maneira geral, dizemos que deu uma “vontade incontrolável”, e não fomos capazes de resistir. É bom deixar claro, que os impulsos são movidos pelos nossos desejos, e não pela nossa vontade. A vontade é mais abrangente, uma força que dirige todo o ser e não se aplica aos muitos desejos que, impulsivamente, manifestamos todos os dias.
Contudo, frequentemente, depois que deixamos o desejo falar mais alto, somos assaltados pelas dúvidas. Devia ou não, acertei ou errei, melhor ter ido ou ficado, etc.
Os desejos põem em xeque a vontade; eles a estimulam a atuar em nosso favor. É a partir do desejo que a vontade é acionada, e vai enviar forças para que algo seja realizado. A vontade julga os conteúdos e conhecimentos do psiquismo e da mente. Isto é, colocamos a nossa vontade a serviço da realização de um desejo. Ainda não entrou em cena a moral do ato, propriamente dita. À medida em que o nosso Espírito estiver sendo consultado, a qualidade moral da ação será pesada e avaliada. Aí tem início um caminho à parte, pois sabemos o que nos convém e o que é bom e saudável. O que está em jogo aqui, é o conhecimento e a constituição do nosso código pessoal de valores com que ponderamos os princípios e preceitos morais já consolidados no espírito. Ficamos frente a frente com os princípios morais pessoais, quando uma decisão é necessária. Não estamos falando de virtudes já alcançadas, porque ainda não somos virtuosos no sentido amplo do termo, mas como um gesto indicativo de intencionalidade em determinada direção. O que evidencia o nosso código moral e de valores não é a vontade, por estranho que pareça. O que revela, fazendo cair o véu do nosso verdadeiro modo de ser e pensar é a dúvida. A dúvida evidencia um conflito, que nos faz refletir. Esta reflexão cria uma pequena brecha, por onde surge a oportunidade para darmos um pequeno passo no caminho da virtude.
Não nos transformamos em indivíduos virtuosos de repente. As dúvidas sinalizam também intenções de atitudes, que são, na verdade, opções. É aí que a vontade pode entrar e atuar. Neste instante, ela administra a nossa vida. “A vontade dirige todas os setores da ação mental. Harmoniza o Espírito, disciplina e administra”1.
Para que alguém tome posse de uma qualidade moral, são necessárias razões que justifiquem os nossos atos repetidos à exaustão com uma determinada intenção. Precisamos de motivos e boas justificativas para fazê-lo. O problema reside no fato de que uma boa justificativa, em geral, não é totalmente convincente. Ela é apenas boa. O objeto do desejo alimenta a dúvida quanto a possuí-lo ou não. Isto faz você julgar suas próprias atitudes. Atitudes pensadas significam atos voluntários, conscientes, mas não espontâneos e naturais. Ser moralmente desenvolvido implicaria em praticar atitudes virtuosas naturalmente sem pestanejar, sem pensar que o outro lado da questão existe. Assim como praticar o bem sem sequer pensar que o mal existe. Quando nos encaminhamos para atitudes virtuosas, vamos deixando, aos poucos, de ficar pensando nas escolhas, porque não temos mais dúvidas, apenas temos certas atitudes prontas dentro de nós. Não se trata mais de ações boas ou más. Apenas pratica-se a boa ação, de boa fé, naturalmente, como se pega uma uva no cacho.
Uma coisa esquisita chamada “desejo mimético”
A curiosidade não é um instrumento para avaliar desejos e intenções. A curiosidade, apenas nos incita a olhar ou constatar algo. A curiosidade nos permite descobrir, e não agir para tomar posse de alguma coisa. Por isso repreendemos as crianças quando dizemos que elas parecem ter olhos nos dedos, pois para as crianças a curiosidade se confunde com o ter. É uma armadilha que o nosso psiquismo arma para nós nesse momento. A curiosidade nos envolve e nos faz jogar com desejos nem sempre claramente assumidos ou desculpas para que os sentimentos não nos traiam. As nossas intenções são intensificadas pelos sentidos. O que os olhos não vêem o coração não cobiça. Depois que vemos, cobiçamos, desejamos. Isto foi explicado por um estudioso do assunto que chamou de desejo mimético2, é o mimetismo. Esse conceito nos ensina que todos somos possuidores do desejo de querer igual ao do outro, desejar um objeto já desejado e possuído por alguém. Podemos simplificar dizendo que trata-se da inveja. Então, se temos inveja, ainda não somos virtuosos e nossas escolhas ainda não são espontâneas. Torna-se necessário que façamos juízo do que desejamos. No fundo, muitas vezes, queremos para nós o que pertence ao outro.
Quando admiramos o relógio no pulso de alguém ou elogiamos a sua camisa, gostaríamos de ter comprado aquela camisa antes dele e também seria agradável ver como fica no meu pulso aquele relógio. Podemos até dissimular e negar tais interesses, mas sabemos que, no íntimo, isso é verdade. Não falamos de uma inveja corrosiva e que pode nos lançar no fogo eterno das expiações. Apenas somos muito apegados. O nosso instinto de posse é algo que nos aproxima muito do animal. É o nosso lado anímico que existe muito forte dentro de cada um de nós. Como nos ensina Emmanuel, caminhamos do instinto para a luz através da razão. Oscilamos entre posse e desapego movidos pela curiosidade de encontrar e descobrir impulsionada pelos desejos. Os desejos fazem funcionar a força da vontade para a empreitada das descobertas. A dúvida nos alerta e nos faz consultar o nosso código moral e de valores. A nossa inteligência nos ajuda a discernir e o nosso Espírito se aperfeiçoa pelo exercício de fazer escolhas mais sábias, muitas vezes desconsiderando até mesmo suas inclinações mais sinceras. As nossas atitudes são o resultado desse complexo processo. Em meio às dúvidas, administramos conflitos, dizemos sim ou não. Fazemos escolhas. Nos desapegamos e nos despojamos de cada coisa que não será mais necessária na caminhada evolutiva. Ou dizemos sim às posses, e ainda ficamos um pouco mais no exercício da dúvida para continuar o aperfeiçoamento moral.