Enéas Canhadas
Certa vez ouvi uma história que falava de um homem que julgava ter produzido a maior e melhor das invenções: uma máquina que, quando estivéssemos conversando com alguém, nos mostraria o que a outra pessoa estava pensando. Dessa forma, saberíamos se o que o nosso interlocutor está falando, é também o que ele está pensando naquele momento da conversa. Você já parou para pensar nas conseqüências disso? Mesmo quando estivermos jogando conversa fora, almoçando com uma pessoa amiga descompromissadamente, ou quando casualmente estamos num ônibus e começa uma conversa casual apenas para preencher o tempo enquanto não chega o nosso ponto de descer.
Imaginem vocês se numa conversa eventual do colega do lado no trajeto para o trabalho realmente falamos coisas que estamos pensando! Mais ainda quando uma séria discussão se instala entre algumas pessoas para falar de pontos de vista significativos, que coloquem em questão os nossos pontos de vista mais profundos, arraigados e mais bem formados a partir do que sentimos, pensamos e mediante os quais fomos educados. Mais ainda se estamos falando de questões íntimas ou de valores morais!
Nem é preciso dizer que na história contada acima, a invenção logo se mostrou desastrosa apenas e tão somente porque não havia coerência entre o que estava sendo falado e o que a pessoa, de fato, estava pensando. Certa vez assisti a um filme chamado “João e Maria” que contava uma história simples de um casal jovem que se conhece numa lanchonete e acabam ficando juntos. Surge uma cena no filme em que ambos queriam saber coisas um do outro enquanto tomavam café pela manhã juntos. Em meio a atitudes bem comportadas e gestos delicados e atenciosos tais como oferecer para passar manteiga no pão ou servir um pouco mais de leite quente, aparecia um diálogo em “off” sobre os verdadeiros pensamentos que lhes ocorriam naquela hora. Bom seria se isso fosse possível pelas leis da convivência e dos relacionamentos.
Quantas e quantas vezes falamos qualquer coisa para preencher um silêncio e que nada tem a ver com o que se passa nos nossos pensamentos! Uma pesquisa sobre a mentira demonstra que, numa conversa informal, de dez minutos entre duas pessoas, cada uma delas terá mentido pelo menos duas vezes! Esse dado parece exagerado, mas a pesquisa abrange todo tipo de mentira, desde aquela que praticamos ao responder a uma pergunta “e aí, tudo bem?” com a resposta “tudo bem!”. Você vai dizer que não precisamos mencionar algumas particularidades de certa manhã, por exemplo, em que algo nos desagradou ou irritou e assim por diante. O fato é que preservamos uma intimidade, com todo o direito, mas que não nos permite exposição para outra pessoa. Lucro e ao mesmo tempo prejuízo para os relacionamentos, em especial para os mais íntimos, deixando de vir à luz para melhorar a qualidade das relações humanas. Para fazer frente a isso nos comportamos como uma espécie de caixa fechada de segredos ou, como dizemos, uma caixa preta cujo conteúdo não pode ser verificado, senão sob condições.
A expressão “caixa de pandora” se aplica. Zeus enviou Pandora como presente a Epimeteu cujo nome significa (“aquele que pensa depois” ou “o que reflete tardiamente”). Epimeteu havia sido avisado por Prometeu para não aceitar nenhum presente dos deuses, mas, encantado com Pandora, desconsidera as recomendações do irmão. Pandora chega trazendo em suas mãos um grande vaso (pithos = jarro) fechado que trouxera do Olimpo como presente de casamento ao marido. Pandora abre-o diante dele e de dentro, como nuvem negra, escapam todas as maldições e pragas que assolam todo o planeta. Desgraças que até hoje atormentam a humanidade. Pandora ainda tenta fechar a ânfora divina, mas era tarde demais: ela estava vazia, com a exceção da “esperança”, que permaneceu presa junto à borda da caixa. A única forma do homem para não sucumbir às dores e aos sofrimentos da vida. Assim, essa narração mítica explica a origem dos males, trazidos com a perspicácia e astúcia “daquela que possui todos os dons”.
Pandora por não ter nascido como uma deusa é conhecida como uma semideusa. Dizem que foi por ambição que ela abriu a caixa. Ela queria se tornar uma deusa do Olimpo e esposa de Zeus. Deste mito ficou a expressão caixa de Pandora, que se usa em sentido figurado quando se quer dizer que alguma coisa, sob uma aparente inocência ou beleza, é na verdade uma fonte de calamidades. Abrir a caixa de Pandora, mesmo com boas intenções, significa que pode ser liberada uma avalanche de repercussões, principalmente negativas. Há ainda um detalhe intrigante a ser considerado sobre o por quê a esperança estava guardada na caixa entre todos os males. Dependendo da perspectiva em que levarmos em conta os pares de opostos, a esperança pode também ter uma conotação negativa pois pode minar as nossas ações nos fazendo aceitar coisas que deveríamos confrontar.
Nesse mito está uma boa explicação para o que nos leva a não dizer integralmente o que vai no nosso íntimo. Quem sabe precisemos manter a esperança viva para que os nossos pensamentos mais horrendos não se realizem e revelá-los poderia causar alguma desgraça. Portanto estaria aí a razão dos nossos medos. Por outro lado, dizer tudo o que vai no nosso íntimo ou no mais escondido dos nossos pensamentos, nos fará pensar ou levar em conta coisas que ainda não podemos ou pensamos não ser capazes. Outra vez é o medo que surge. Se a verdade é salvadora, o medo de revelá-la nos livra temporariamente de algum horrível e suposto mal. Acabamos optando por não ver o que realmente pode vir a acontecer.
Desta forma não dizendo a verdade, estamos sempre nos livrando de algum suposto grande mal, porém adiando uma verdadeira transformação interior. A reforma íntima é, na verdade da sua simplicidade, uma encruzilhada entre enfrentar o nosso íntimo em comparação com as conseqüências que tudo o mais possa trazer como a crítica dos outros, os julgamentos, as condenações, as ameaças e o mal que alguém poderá nos causar lançando sobre as nossas consciências uma condenação. A nossa alma acaba ficando aprisionada pelo medo do que podem nos fazer. Dizer a verdade, sim, porém até certo ponto ou dependendo das circunstâncias! O que vale dizer é que no nosso estágio atual de evolução ainda carecemos de conhecimento de nós mesmos e ao mesmo tempo de coragem íntima para cada um dos seres humanos, serem vencedores sobre si mesmos.