Enéas Martim Canhadas
Alguém disse, com sabedoria, que as dores são obrigatórias, mas os sofrimentos não. Suponho que uma frase como esta, represente bastante bem, o estado de espírito com o qual devemos encarar as dificuldades e os sofrimentos.
Sabemos, pelos conhecimentos científicos atuais, que a dor é, ao mesmo tempo, um problema para os seres humanos e um termômetro indispensável para a nossa proteção dos perigos, riscos, acidentes e mesmo das doenças. Que paradoxo! Pensar que o mesmo sintoma que indica uma doença é também a nossa salvação. A dor informa.
E, do ponto de vista espiritual, a dor transforma. No entanto, tal transformação vai depender de como vivemos a dor.
Se não fosse a dor não saberíamos, por exemplo, quando estamos machucados. Você poderia ter o seu dedo esmagado por um martelo e não sentiria nada. Num acidente automobilístico, você poderia sangrar até a morte sem perceber que foi ferido.
Vamos refletir sobre o sofrimento, quando ele se constitui numa armadilha para nos destruir, para arrebatar a nossa auto-estima e para nos fazer ficar com muita pena de nós mesmos. É quando corremos o risco de ficarmos perdidos pelo caminho que pode nos levar à destruição. Se comungamos com a Doutrina Espírita, que as nossas provas são proposições nossas, para um aprendizado quando encarnados, precisamos entender melhor o que é sofrer, o que é sentir dor e o que é sacrifício. A dor está, invariavelmente, ligada a aspectos físicos. A dor é física. Mas o sofrimento é moral. Um dos agravantes, é que moralizamos o sofrimento, conferindo-lhe conotações de virtude, santificação e até mesmo o sentido sacrificial.
Sobre os sacrifícios, falaremos mais adiante. O sofrimento, do ponto de vista moral, torna-se uma espécie de penitência, e, quanto maior for a capacidade de suportação do sofredor, maior será a sua recompensa, melhor será o seu lugar no céu imaginário da sua consciência, e mais rápida dar-se-á a sua salvação. O sofrimento então, é tido como uma espécie de passagem para a felicidade. Em algumas crenças ele é, literalmente, a passagem para o paraíso, como vemos noticiados nos jornais e na mídia em geral, todos os dias, sobre os homens e mulheres bombas.
Mas, você poderá estar se perguntando: quando estamos passando por dificuldades, como uma doença prolongada, ou quando a prova parece dura demais, essa pessoa não está sofrendo? No senso comum, chamamos a isso sofrimento ou dor. No sentido psicológico ou emocional, o que temos, é alguém com muito medo, ansiedade, angústia, baixa estima, depressão e outros termos para designar que, emocionalmente a pessoa está mal ou com problemas. Do ponto de vista espiritual, temos alguém que não está transcendendo a dor, e então perde a fé, duvida, desespera-se, e desesperar-se é, literalmente, desesperançar-se, ficar sem esperança. Daí decorrem a revolta ou a procura de um culpado. Geralmente é nesse momento que Deus entra na história dessas pessoas, não como a Providência mas como o responsável ou injusto por não acudir aquela alma em meio a tanto sofrimento.
Se a pessoa transcende a dor, abandona os seus desejos pessoais e contempla a determinação e a esperança que vem da fé. Digo que os desejos, nessa hora, precisam ser abandonados, por que a fé permanece, independente dos desejos realizados ou não. Quando há coincidência entre os nossos almejos e a fé, parece que chegamos quase à plenitude de um estado de espiritualização. Assim, parece que confirmamos que Deus ouve as nossas preces e está do nosso lado. Quando não temos as expectativas atendidas, resta-nos a fé para compreender o que aconteceu e prosseguir na trajetória evolutiva de compreensão e superação das frustrações, ou do vazio que se abre uma vez que, a felicidade que não veio após a dor.
Assim sendo, se você pensar com a tão propalada fé raciocinada, vai compreender que a dor é o fenômeno físico, mas o sofrimento é uma maneira de dizer que estamos com dor ou uma forma aviltada de pensar que o sofrimento é algo que nos é imposto junto com a dor. O sofrimento passa a existir, profundo e sem solução, quando não compreendemos a dor.
Mas, falando de sofrimento e dor, temos que falar também em sacrifício. É outra confusão que fazemos. Os sacrifícios constituem uma outra forma de moralizar a dor, no sentido de conferir-lhe sentido moral, isto é, julgar a dor se boa ou má, merecida ou não, em especial quando não estamos suportando. O sacrificado morre pelos outros, entrega-se. Morre no lugar dos outros. Viver sacrificando-se, tem o sentido de fazê-lo por alguém, ao invés desse alguém passar pelo sofrimento que lhe cabe. O gesto da pessoa que diz estar fazendo um sacrifício por alguém, afasta-o da razão do por quê está fazendo o que faz. Se eu me sacrifico por você, a razão verdadeira da minha intenção, que daria sentido ao que estou fazendo ou quero fazer para você, fica enviesada. Não me sacrifico pelo meu filho, mas faço por consciência e prazer da tarefa que abracei um dia. Não me sacrifico pela minha família, mas trabalho e me canso na tarefa de ser participante de uma construção que se faz a dois. O projeto do casamento é uma tarefa que se realiza pela dedicação de todos os seus componentes, pais e filhos, e não o sacrifício exclusivo de alguém, nem tão pouco o sacrifício de todos. Em outra situação, não me sacrifico por alguém que não conheço, até por que esse desconhecido, não reconhece a minha dedicação por ele pois, na nossa trajetória evolutiva, ainda não estamos capacitados a tal ponto que nos tornasse capazes de tamanha doação. Se fazemos por nós mesmos, pelo dever fazer, pela honra de ter o privilégio e de aproveitar a oportunidade de querer fazer, se fazemos por que julgamos justo, e se fazemos porque temos consciência do que é preciso fazer, então por quê o sacrifício? Se há honra, justiça e o dever moral de fazer, por quê desejo agradar e servir a você, então onde o sacrifício? Trata-se aí de dedicação, de ato de amor por alguém, e não de sacrifício.
Quer dizer que, se eu não precisasse fazer algo por você, então eu não o faria? Então trata-se de obrigação, dever ou coerção, e em nenhum desses casos cabe o conceito de sacrifício. O sacrificado é o bode expiatório. É aquele que carrega a carga dos outros. Os sacrifícios que o ser humano pratica ao longo da história da humanidade, são atos simbólicos. Derramar o sangue ou imolar a vítima escolhida para o sacrifício, evocará os favores divinos para os fiéis, seja alcançando graças ou aplacando a ira dos seus deuses, inclusive do Deus de Israel de que fala a Bíblia. Por isso os sacrifícios com animais sempre escolhiam um animal puro, sem mancha como diz a Bíblia no Velho Testamento e quando se tratava de sacrificar pessoas, geralmente eram crianças ou adolescentes para preservar também a pureza. Esses atos que hoje nos parecem horrendos, simbolizavam a limpeza e remissão de erros e pecados. A vítima do sacrifício não recebia nada em troca, a não ser a própria morte. Aquele que sacrifica-se por alguém o faz por ser virtuoso, não espera nada em troca a não ser os favores divinos. É uma prova de amor, e o sacrificado para realizar o verdadeiro sacrifício tem que ser perfeito de modo que não exista nele nem o mal e nem erro algum. Nós Espíritos encarnados, ainda na infância espiritual, não temos, nem de longe, as condições para ser vítima de sacrifício, muito menos em favor de alguém. O sofrimento do sacrificado não é sofrimento, mas sim o caminho natural daquele que possui a força necessária e suficiente, para passar pelas adversidades ou pelos problemas, segundo a proposição que deve ter feito quando do seu projeto reencarnatório.
Assim sendo, vamos ficar combinados que, ao sentir alguma dor, física ou moral, possamos compreendê-la no seu real significado e dimensão de aprendizado para as nossas vidas. Desta forma, seremos capazes de superá-la, mas sem a distorção do sofrimento (que muito facilmente nos faz vítimas ou cúmplices) ou do sacrifício (que impropriamente nos transforma em falsos redentores).
17/02/2004