Amílcar Del Chiaro
Dia dos pais. Mergulhamos num cismar profundo. Afinal, somos pai. Sim, somos pai. De forma estranha, mas somos pai. Há várias décadas casei com quem amava. Pouco mais de um ano e a triste notícia. A necessidade de uma operação para extirpar o útero e o ovário de minha esposa. Causa: um grande mioma uterino que lhe causava dores quase insuportáveis. Filhos estavam riscados da nossa vida, entretanto engravidei, ou melhor, engravidamos. Ambos engravidamos no coração. Veio-nos um menino loirinho, magro, e vomitando continuamente. Chegou com o nome de Francisco Carlos, mas cortamos o primeiro nome e ficamos apenas com o Carlos. Alguns amigos e familiares torceram o nariz. Disseram: é arriscado. Vocês não sabem quem são seus pais. Podem ter doenças hereditárias, taras. Respondemos que filhos biológicos também são um risco e podem ter doenças genéticas. Alguns responderam: é diferente. Será carne da sua carne. Respondemos: mas ele é alma da nossa alma. Passaram-se alguns anos e engravidamos novamente. Outra vez o coração ficou rotundo, prenhe de amor. Desta vez veio uma bolinha gordinha e chorona. Como chorava meu Deus. Novas observações de parentes e amigos. Não é que eles tinham razão? Mas o que nos importa. Minha bolinha fofinha teve sérios problemas ao nascer. Teve anóxia de parto. Faltou-lhe o precioso oxigênio nas células cerebrais e ele ficou retardado. Sim, minha bolinha fofa e bonita era um excepcional. Entretanto, como amava. Sim, amava, porque ele morreu. O meu menino de 31 anos morreu. O outro, o loirinho, cresceu, entrou na adolescência. Um dia contaram a ele que não era nosso filho. Não foi por maldade, mas desajeitadamente a pessoa disse que o pegamos para criar. Ele que já vinha com problemas emocionais, teve uma crise psíquica e desenvolveu ou se manifestou a esquizofrenia. Não foi fácil. Problemas, dificuldades, consultas, tratamentos, crises nervosas e seguimos assim durante muito tempo.
Era o desdobramento do nosso calvário. Assumi a minha cruz numa infância pobre, depois fomos crucificados inúmeras vezes.
Fomos crucificados pela lepra ainda na infância, e por inúmeras experiências dolorosas. Até que uma terrível manhã de quinta feira nos trouxe uma dor suprema. Mais uma vez os cravos longos da dor me pregava no madeiro infamante.
Gabinete dentário das Casas André Luís. Meu filho fazia tratamento lá porque são especializados. Quando ele entrou com muito medo, entregou o radinho de pilhas para a mãe, o radinho que estava constantemente em sua mão, sempre sintonizado na Rádio Boa Nova, e ele dizia às pessoas na rua, mostrando o radinho: meu pai fala aqui, e disse na sua linguagem peculiar: – Tó. Depois eu pega. Mas não pegou. Teve uma parada cárdio-respiratória durante o tratamento. Havia dois pacientes no gabinete. Houve movimentação estranha e minha companheira disse: É o Marcos. Aconteceu alguma coisa com o Marquinhos. A atendente saiu correndo e voltou com um médico e logo a seguir chegou uma maca rolante. Pouco depois o Marquinhos saiu na maca, parecia estar morto. Levaram-no para a UTI e minha mulher, praticamente correndo seguiu a maca, chamando-o desesperadamente.
Mais algum tempo e a Dra. Vera, na época diretora médica das Casas André Luís, nossa amiga particular veio dizer-nos que o ressuscitaram duas vezes, mas o coração parou novamente. Meu filho morreu…
O velório foi triste. Minha esposa chorou o tempo todo. Os amigos chegavam e nos abraçavam. Amanheceu o dia e minha companheira disse que não tinha forças para ir ao cemitério. Alguém se ofereceu para levá-la à nossa casa. Antes de sair ela colocou o radinho de pilha sob as mãos do Marquinhos e me pediu: não deixe ninguém tirá-lo.
Alguém disse que a administração do cemitério não permitiria. Tomei a decisão: quem quiser vê-lo e despedir-se faça-o agora, pois no cemitério não abriremos a urna. Não abrimos. Somente três anos depois os coveiros tomaram conhecimento ao ver a carcassa do pequeno rádio.
No ano de 1999 minha esposa morreu, vitimada por um câncer. Hoje somos eu e o loirinho, que está grande e gordo, e continua preso na sua cela mental. Temos também uma irmã e tia que vem diariamente nos ajudar, dar um jeito na casa e fazer o almoço.
No decorrer destes anos alguns conselheiros daquela primeira hora não chegaram a dizer, mas parecia que queriam falar: Eu não disse? Não foi por falta de aviso.
Não importa. Talvez eles não saibam o que é a emoção de engravidar no coração. Se nos fosse dado retornar ao passado, naquele ponto onde tudo começou, com certeza trilharíamos os mesmos caminhos.
Neste Dia dos Pais queremos homenagear a todos os pais de pessoas portadoras de deficiências, e de forma muito especial aos que engravidaram no coração e deram a luz a filhos excepcionais. Quando a dor for muito grande chore, pois não é nenhum desdouro chorar. Quando os espinhos ferirem suas carnes e os longos cravos penetrarem suas mãos e pés, cravando-os no madeiro do destino, quando você ouvir o bater repetitivo do martelo, qual cantilena de dor. Firme-se na certeza de que no reino de Deus não existem doentes ou excepcionais, são todos feitos da mais pura luz, como a que nos chega de Alcione ou Aldebarã. Ouçam o meu cântico de amor. Façam mais do que isto, venham cantar comigo. FELIZ DIA DOS PAIS.