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Epidemia de obsessão

José Marcelo Gonçalves Coelho

Em março do ano de 1857, a comuna de Morzine, situada na Alta Sabóia, leste da França, com aproximadamente 2.500 habitantes, encontrava-se, segundo os noticiários da época, sob a influência de uma desconhecida epidemia, que iniciava sua escalada.

Em novembro, daquele mesmo ano, os atingidos já totalizavam vinte e sete; em 1861, alcançava o máximo de cento e vinte.

Demonstrando intensa preocupação com a patologia, o governo francês designou um certo Dr. Constant, para que desenvolvesse criteriosa investigação sob os rigores da ciência médica.

Durante alguns meses o pesquisador teve o ensejo de presenciar diversas crises que periodicamente acometiam os pacientes — meninas, em sua grande maioria — tendo elaborado farto relatório, cujos trechos mais significativos transcrevemos:

“Em meio a mais completa calma, raramente à noite, de repente sobrevêm bocejos, espreguiçamentos, tremores, pequenos solavancos nos braços; pouco a pouco, em curto espaço de tempo, como por efeito de descargas sucessivas”

“Elas batem nos móveis com força e vivacidade, começam a falar, ou antes a vociferar”.

“No estado de crise as moças têm uma força desproporcional à idade, pois são precisos três ou quatro homens para conter, durante a mesma, meninas de dez anos”.

“Sabemos que deram respostas exatas a perguntas feitas em línguas por elas desconhecidas”.

“Durante a crise, o caráter dominante destes momentos terríveis é o ódio a Deus e a tudo a que a ele se refere (…) após, as meninas não têm qualquer lembrança do que disseram ou fizeram…”.

Sob a ótica espírita, certamente não hesitaríamos em identificar, nos relatos acima, claras evidências de um legítimo enredo obsessivo; no entanto, assim concluiu o Dr. Constant:

“Tudo o que se viu em Morzine, sobretudo aquilo que se conta, poderá parecer para certas pessoas um sinal manifesto de uma possessão demoníaca, mas é, muito certamente, o de uma moléstia complexa que recebeu o nome de histero-demoniomania”(grifei).

Tratar-se-ia, segundo o diagnóstico proposto, de uma intrigante histeria coletiva, agravada pela fixação na figura demoníaca.

Em função da impotência da terapêutica médica convencional para solução da insólita problemática, julgou-se conveniente recorrer aos tradicionais procedimentos de expulsão demoníaca, a cargo das autoridades religiosas.

Pensaram, então, em reunir na Igreja local todos os “doentes” de Morzine, com vistas a implementar um exorcismo coletivo. Todavia, para desespero dos sacerdotes ali presentes, todas as jovens entraram em crise ostensiva simultaneamente, derrubando e quebrando o mobiliário do templo, lançando-se ao chão entre homens e crianças que, em vão, tentavam contê-las.

Em vista da desastrada experiência, optou-se, a partir de então, por se implementar o exorcismo a domicílio, a qualquer hora do dia ou da noite, o que também não surtiu melhores efeitos.

À época, a Doutrina Espírita já se apresentava ao mundo, principalmente através de suas duas primeiras obras basilares, O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns, suficientes para a elucidação da estranha epidemia que atingia os moradores do modesto vilarejo. Entretanto, o interessante fenômeno coletivo fez com que Kardec solicitasse orientação específica ao Espírito São Luiz, que assim se expressou:

“Os possessos de Morzine estão realmente sob a influência dos maus Espíritos, atraídos para aquela região por causas que conhecereis um dia, ou melhor, que vós mesmos reconhecereis um dia. O conhecimento do Espiritismo ali fará predominar a boa influência sobre a má fé, isto é, os Espíritos curadores e consoladores, atraídos pelos fluidos simpáticos, substituirão a maligna e cruel influência que desola aquela população. O Espiritismo está chamado a prestar grandes serviços: será o curador dos males cuja causa era antes desconhecida e ante às quais a ciência continua impotente; sondará as chagas mortais e lhes ministrará o bálsamo reparador; tornando os homens melhores, deles afastará os maus Espíritos, atraídos pelos vícios da humanidade. “Se todos os homens fossem bons, os maus Espíritos deles se afastariam porque não poderiam os induzir ao mal (…)”(grifei).

Transportando os acontecimentos desencadeados em Morzine para a nossa realidade, percebemos o quanto eles se mostram atuais, pois que, hoje, uma verdadeira epidemia de obsessão assola a humanidade terrestre, que se curva extremamente passiva ante as sugestões do mal, oferecendo franco repasto às Inteligências umbralinas que sobrecarregam a psicosfera do planeta.

Também oportuna a citação de Kardec, eternizada no Capítulo XIV, item 45, da quinta obra basilar, A Gênese, em que ele, corroborando a afirmação de São Luiz, deduziu:

“Pululam em torno da Terra os maus Espíritos, em conseqüência da inferioridade moral de seus habitantes”.

Urge, portanto, que, diante de tão elucidativas afirmações pertinentes à temática da obsessão, nos abstenhamos de responsabilizar os Espíritos momentaneamente imersos nas sombras por todos os dissabores e infortúnios que nos visitam a existência, reconhecendo que processo obsessivo é fenômeno de sintonia, sobretudo mental, em que ondas semelhantes se entrelaçam, fazendo com que os afins se atraiam, ainda que circunstancialmente.

Dispostos, enfim, ao entendimento ampliado que a Doutrina Espírita nos permite alcançar, conscientizemo-nos da realidade de que somente nos faremos imunes a todo o mal que nos circunda, quando houvermos debelado todo o mal que nos habita. Assim procedendo, certamente estaremos nos dedicando à única terapia de fato libertadora ao nosso alcance, que se denomina…Reforma Íntima.

josemarcelo.coelho@bol.com.br

Referências bibliográficas:

  • Kardec, Allan, A Gênese, capítulo XIV, item 45.
  • Kardec, Allan, Revista Espírita (ano 1862-nº de abril e dezembro; ano 1863-nº de janeiro, fevereiro, abril e maio)
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