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Ética, Sociedade e Terceiro Milênio

Luiz Carlos D. Formiga

Tendências do Trabalho, ( Editora Tama, Ltda ), 312 (agosto): 8-10, 2000.

“Um desafio para a universidade de uma maneira geral no terceiro milênio é resgatar um pouco alguns princípios humanísticos e éticos para a sociedade.”(5) Estas foram palavras da reitora eleita da Universidade do Estado do Rio de Janeiro no final de 1999, último quartel do milênio.

Ensino, pesquisa e ética tem estado nas nossas cogitações (4) desde quando encontramos, ainda como aluno, um professor a quem homenageamos anteriormente pelo seu exemplo de integridade profissional (3). Por isso acreditamos que resgatar valores ético-morais para a sociedade é desafio de urgência.

Permitam-me recordar o Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, ocorrido em 1994, no seu Artigo 13. A ética transdisciplinar recusa toda atitude que recusa o diálogo, a discussão, seja qual for sua origem – de ordem ideológica, científica, religiosa, econômica, política ou filosófica. O saber compartilhado deverá conduzir a uma compreensão compartilhada baseada no respeito absoluto das diferenças entre os seres, unidos pela vida comum sobre uma única e mesma Terra . (1)

Vamos a um exercício prático. Deve-se aceitar o aborto para “salvar a vida” da gestante HIV-positiva, grávida pelo estupro? Antes de responder gostaria de voltar ao Congresso de Transdisciplinaridade.

Artigo 1 – Qualquer tentativa de reduzir o ser humano a uma mera definição e de dissolvê-lo nas estruturas formais, sejam elas quais forem, é incompatível com a visão transdisciplinar.

Artigo 2 – O reconhecimento da existência de diferentes níveis de realidade, regido por lógicas diferentes é inerente à atitude transdisciplinar. Qualquer tentativa de reduzir a realidade a um único nível regido por uma única lógica não se situa no campo da transdisciplinaridade. (1)

Aética visa mais o bem a ser conquistado e garantido que ao mal que deve ser evitado. A bioética é a ética aplicada aos novos problemas que se desenvolvem nas fronteiras da vida. vem em salvaguarda do ser humano: na singularidade da individualidade, mas também na universalidade da sua humanidade. não pretende ser restritiva, mas tem a tarefa de colocar limites éticos a fim de salvaguardar a pessoa humana, sua vida e humanidade.

O progresso tecnológico da biomedicina levanta problemas éticos, que requerem da bioética uma reflexão prática. a questão “o que posso fazer?” deve estar acompanhada das perguntas do imperativo ético “o que devo fazer? o que é bom fazer? qual é o bem a ser preservado e o bem a ser promovido”. (2)

Artigo 12 – A elaboração de uma economia transdisciplinar é fundada sobre o postulado de que a economia deve estar a serviço do ser humano e não o inverso. (1)

A ética ao falar de valores e agir humano, parte do pressuposto que todo ser humano age por uma motivação em vista de uma finalidade. é sabido que entre a motivação e a finalidade não existe uma transparência que determine ser todo ato bom e responsável. vários fatores psicológicos, sociais e culturais podem influenciar estes atos. Um ato humano, mesmo os atos médicos e científicos, podem ser maus e irresponsáveis se as motivações forem egoístas ou se a finalidade for a ganância de fama, poder ou riquezas.

A reflexão ética visa identificar os valores humanos e a elaboração de normas de comportamento, para a garantia do bem humano e social. A bioética identifica a vida como um bem, e quer compreendê-la melhor, identificando os valores que a acompanham e favorecem como um bem. Busca também a elaboração de normas de comportamento que garantam este bem. Normas que são regidas pela humanidade presente em cada um de nós. Esse progresso depende da educação.

O projeto de declaração sobre o genoma humano, do comitê internacional da UNESCO, proclama a necessidade do ensino: art.16: os estados se comprometem a promover um ensino específico concernente às implicações éticas, sociais e médicas da biologia e da genética humana.

É um ensino que deve permitir a todos exercerem responsabilidades próprias ante as novas situações derivadas do avanço das ciências da vida. Os novos e diferentes desafios precisam ser apreendidos em toda a sua complexidade. (6,7)

Produzir profissional qualificado, implica em aquisição e produção de conhecimento; de capacidade técnica e de atitudes profissionais. Assim existe a necessidade de contínua informação, atualização técnica e formação permanente. Ser informado das novas técnicas implica em saber executá-las, mas também em saber posicionar-se diante dos problemas éticos que dela decorrem.

O salto de qualidade no ensino será o da informação para a formação de uma nova consciência profissional, integrada a um universo biomédico com a sua especificidade humana, capaz do diálogo, da clareza de percepção dos problemas éticos e da objetividade de apresentação destas questões em vista da decisão a ser tomada em conjunto com outros envolvidos naquele ato biomédico, seja ele um atendimento ou uma pesquisa.

Em síntese: um profissional ético, com consciência crítica, livre, criativa e responsável, capaz do diálogo.

Artigo 3 – A transdisciplinaridade é complementar à aproximação disciplinar : faz emergir da confrontação das disciplinas dados novos que as articulam entre si; oferece-nos uma nova visão da natureza e da realidade. A transdisciplinaridade não procura o domínio sobre as várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as ultrapassa. (1)

O método por excelência da reflexão bioética é o diálogo, o debate interdisciplinar que permite um maior conhecimento e compreensão dos diversos aspectos que envolvem a vida humana.

Pelo holismo espiritualista o homem é um ser criado, de natureza bio-psico-socio-espiritual, dotado de historicidade e de livre arbítrio, encontrando-se em contínuo processo evolutivo, sendo parte integrante do universo com o qual interage constantemente.(4)

Artigo 5 – A visão transdisciplinar está resolutamente aberta na medida em que ela ultrapassa o domínio das ciências exatas por seu diálogo e sua reconciliação não somente com as ciências humanas mas também com a arte, a literatura, a poesia e a experiência espiritual.(1)

“Deus! o terrível problema! quando a ciência chega aqui, ou emudece ou blasfema.”

Qual o caráter do homem ético? É um homem de bem, inspirado por Deus. pode-se reconhecê-lo por seus atos e palavras.

Qual é o tipo mais perfeito, que Deus ofereceu ao homem para lhe servir de guia e de modelo? A resposta deve falar de altos níveis no dominio cognitivo e afetivo, mas sobretudo no patamar mais alto do nível de consciência, o da Consciência Cósmica. Nome indiscutível entre nós – Jesus.

Artigo 9 – A transdisciplinaridade conduz a uma atitude aberta com respeito aos mitos, às religiões e àqueles que os respeitam em um espírito transdisciplinar.

Artigo 10 – Não existe um lugar cultural privilegiado de onde se possam julgar as outras culturas. O movimento transdisciplinar é em si transcultural. (1)

As mudanças no desenvolvimento moral são irreversíveis, a pessoa nunca mais voltará a um estágio inferior. Jesus sabia e por isso dialogou com a mulher, que não foi apedrejada, fazendo o reforço da ação pedagógica. Ela nunca mais pode esquecê-lo. Foi também assim com Saulo de Tarso.

Artigo 7 – A transdisciplinaridade não constitui uma nova religião, uma nova filosofia, uma nova metafísica ou uma ciência das ciências. (1)

A autoridade da sentença está na razão da autoridade moral do juiz que a pronuncia.

Melhor a coroa de espinhos na fronte do que as brasas na consciência!

Deve-se aceitar o aborto para “salvar a vida” da gestante HIV-positiva, grávida pelo estupro?

Artigo 14 – Rigor, abertura e tolerência são características fundamentais da atitude e da visão transdisciplinar. O rigor na argumentação, que leva em conta todos os dados, é a barreira às possíveis distorções. A abertura comporta a aceitação do desconhecimento, do inesperado e do imprevisível. A tolerância é o reconhecimento do direito às idéias e verdades contrárias às nossas. (1)

Um profissional ético certamente diria que esta é uma matéria sem resposta definitiva, sobre à influência da sorologia positiva no processo gestacional e da própria saúde do feto. Não existe ainda nenhum argumento ético, jurídico ou técnico, capaz de fundamentar a interrupção de uma gravidez numa mulher soro-convertida ou já doente de AIDS, a não ser que suas condições de saúde sejam agravadas pela gestação, que cessada a gravidez cesse o perigo e que não haja outro meio de salvar-lhe a vida.

Para aqueles que não vão se contentar em parar por aqui gostaria de sugerir duas leituras adicionais: A Aids e o Aborto que apresenta a doutora Susie A. Nogueira demonstrando a possibilidade de crianças nascerem sem a contaminação pelo vírus da Aids, embora suas mães sejam soro-convertidas. O texto foi colhido do Jornal quinzenal da Seção Sindical dos Docentes da UFRJ/Andes-SN, Ano VII, 05 de Junho de 2000. Pode ser encontrado em artigos no site http://zap.to/neurj, home-page no NEU-RJ. Neste mesmo endereço faço a segunda sugestão, embora seja discussão mais longa, o opúsculo que recebeu o nome de Antes de Votar Pergunte ao Candidato Sobre o Aborto.


Este artigo foi elaborado com base em palestra proferida, “Ética: educação para o terceiro milênio”, durante o Primeiro Congresso Interativo Sobre Educação Para o Terceiro Milênio. “A Educação da Alma é a Alma da Educação”. Centro de Convenções do Barrashopping, 06-09 de dezembro de 1999.

Luiz Carlos D. Formiga PhD.
Professor Adjunto do Departamento de
Microbiologia Médica do Instituto de
Microbiologia Prof. Paulo de Góes, da UFRJ.


Referências Bibliográficas

1. Carta Transdisciplinar adotada pelos participantes do Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade. Convento de Arrábida, 6 de novembro de 1994.
2. Costa Júnior, A.S. Bioética. Cadernos de Saúde e Meio Ambiente. Cuibá, UNIC., 1: 155-177. 1997.
3. Formiga, L.C.D. Ensino, Pesquisa e Ética em Microbiologia Médica.Sociedade Brasileira de Microbiologia – SBM-Notícias, 21(julho): 3-4, 1998 (disponível no site http://zap.to/neurj).
4. Formiga, L.C.D. Ciência e Microbiologia com Amor. Sociedade Brasileira de Microbiologia – SBM-Notícias, 22 (outubro): 3-4, 1998.Discurso proferido durante a solenidade de formatura da primeira turma do curso de Bacharel em Microbiologia e Imunologia do IM/UFRJ, em dezembro de 1997(disponível no site http://zap.to/neurj).
5. Freire, N. Formação é prioridade para nova reitora da UERJ. UERJ Em Questão, VII (66): 6-7, 1999.
6. Setenta e dois alunos de graduação recebem Prêmio de Iniciação Científica. UERJ Em Questão, VII (66): 02, 1999. 7. Lenoir, N. Promover o ensino de Bioética no mundoBioética, 4: 65-70, 1996.

 

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