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História do Cristianismo V

História do Cristianismo V

O Cristo nada escreveu. Suas palavras, disseminadas ao longo dos caminhos,
foram transmitidas de boca em boca e, posteriormente, transcritas em diferentes
épocas, muito tempo depois de sua morte. Uma tradição religiosa popular
formou-se pouco a pouco, tradição que sofreu constante evolução até o séc. IV.

Durante esse período de trezentos anos, a tradição cristã jamais permaneceu
estacionária, nem a si mesma semelhante. Afastando-se do seu ponto de partida,
através dos tempos e lugares, ela se enriqueceu e diversificou. Efetuou-se
poderoso trabalho e acompanhando as formas que revestiram as diversas narrativas
evangélicas, segundo a sua origem, hebraica ou grega, foi possível determinar
com segurança a ordem em que essa tradição se desenvolveu e fixar a data e o
valor dos documentos que a representam.

Não é senão do ano 60 ao 80 que aparecem as primeiras narrações escritas, a
de Marcos a princípio, que é a mais antiga, depois as primeiras narrativas
atribuídas a Mateus e Lucas, todas escritos fragmentários e que se vão
acrescentar de sucessivas adições, como todas as obras populares. Aliás, A.
Sabatier, diretor da seção dos Estudos Superiores, na Sorbona, em “Os Evangelhos
Canônicos”, pag.5, menciona que a Igreja sentiu dificuldade em encontrar
novamente os verdadeiros autores dos Evangelhos, daí a fórmula por ela adotada:
Evangelho segundo …

Foi somente no fim do séc. I, de 80 a 98, que surgiu o evangelho de Lucas,
assim como o de Mateus, o primitivo, atualmente perdido; finalmente, de 98 a
110, apareceu, em Éfeso, o evangelho de João.

O propósito dos Evangelhos é, antes de mais nada, proclamar e suscitar a fé,
que não teria origem em si mesma, mas viveria da realidade histórica de Jesus de
Nazaré. Os evangelistas contam uma “história” não para descrever quem era
Jesus outrora
, mas para proclamar quem é Jesus agora. Justamente por
isso, apresentam divergências cronológicas e geográficas relevantes aos olhos do
historiador. As indicações de tempo limitam-se a formulas genéricas (“depois”,
“naquela ocasião”, “então”, “poucos dias depois”), assim como as referências aos
lugares (“no caminho”, “de lá partiu”, “casa”, “lago”, “montanha”…), usadas
nos Evangelhos de maneira diversa e discrepante. Essa ausência de preocupação
histórica e crítica aparece também nas palavras e sermões de Jesus. Na medida em
que o Jesus terreno é, para a Igreja, também o Senhor ressuscitado, a sua
palavra assume, na tradição, as características do presente. Desse modo, ao lado
de uma indiscutível fidelidade à mensagem de Jesus, pode-se notar uma espantosa
liberdade na reprodução de suas palavras históricas. Cada palavra e cada gesto
de Jesus, relatados nos Evangelhos, refletem, antes de mais nada, o ponto de
vista teológico das próprias testemunhas.

Se os Evangelhos são aceitáveis em muitos pontos, é, todavia, necessário
submeter o seu conjunto à inspeção do raciocínio. Todas as palavras, todos os
fatos que neles estão consignados não poderiam ser atribuídos ao Cristo.

Ao lado desses evangelhos, únicos depois reconhecidos pela Igreja, grande
número de outros vinha à luz. No séc. III, Orígenes os citava em maior número.
Lucas faz alusão a isso no primeiro versículo da obra que traz o seu nome.

Por que razão foram esses numerosos documentos declarados apócrifos e
rejeitados? Muito provavelmente porque se haviam constituído num embaraço aos
que, nos séculos II e III, imprimiram ao Cristianismo uma direção que o devia
afastar, cada vez mais, das suas formas primitivas. Acrescentemos a estas tão
grandes dificuldades as que provinham da fragilidade dos pergaminhos, numa época
em que a imprensa era desconhecida; a falta de inteligência de certos copistas,
todos os males que podem fazer nascer a ausência de direção e de crítica, e
facilmente compreenderemos que a unidade de crença e de doutrina não tenha
podido manter-se em tempos assim tormentosos.

Os três Evangelhos sinóticos (o de Marcos, Lucas e Mateus), acham-se
fortemente impregnados do pensamento judeu-cristão dos apóstolos, mas já o
evangelho de João se inspira em influência diferente, talvez gnóstica. Nele se
encontra um reflexo da filosofia grega, rejuvenescida pelas doutrinas da escola
de Alexandria. Em fins do séc.I, os teoristas gregos sentiram-se impressionados
pela grandeza e elevação moral do Cristianismo. Daí uma aproximação, uma
penetração das doutrinas, que se produziu em certos pontos. O Cristianismo
nascente sofria pouco a pouco a influência grega, que o levava a fazer do Cristo
o verbo, o Logos de Platão.

Os Evangelhos, escritos em meio das convulsões que assinalam a agonia do
mundo judaico, depois sob a influência das discussões que caracterizam os
primeiros tempos do Cristianismo, se ressentem das paixões, dos preconceitos da
época e da perturbação dos espíritos. Cada grupo de fiéis, cada comunidade, tem
seus evangelhos, que diferem mais ou menos dos outros.

A fim de por termo a essas divergências de opinião, o papa Damaso confia a
Jerônimo, em 384, a missão de redigir uma tradução latina do Antigo e do Novo
Testamento. Esse trabalho oferecia enormes dificuldades. Jerônimo achava-se,
como ele próprio o disse, em presença de tantos exemplares quantas cópias. Essa
variedade ilimitada de textos o obrigava a uma escolha e a retoques profundos.
Desta forma, preocupado com a magnitude da tarefa e com suas conseqüências,
expõe ele ao papa: “De velha obra me obrigais a fazer obra nova. Quereis que,
de alguma sorte, me coloque como árbitro entre os exemplares das Escrituras que
estão dispersos por todo o mundo, e, como diferem entre si, que eu distinga do
que estão de acordo com o verdadeiro texto grego. É um piedoso trabalho, mas é
também um perigoso arrojo, da parte de quem deve ser por todos julgado, julgar
ele mesmo os outros, querer mudar a língua de um velho e conduzir à infância o
mundo já envelhecido.

Essa tradução oficial, que devia ser definitiva segundo o pensamento de quem
ordenara a sua execução, foi, entretanto, retocada em diferentes épocas, por
ordem dos pontífices romanos. O que havia parecido bom, do ano 386 a 1586, o que
fora aprovado em 1546 pelo concílio ecumênico de Trento, foi declarado
insuficiente e errôneo por Sixto V, em 1590. Fez-se nova revisão por sua ordem;
mas a própria edição que daí resultou, e que trazia o seu nome, foi modificada
por Clemente VIII em uma nova edição.

Entretanto, a despeito de todas essas vicissitudes, não se hesita em admitir
a autenticidade dos Evangelhos em seus primitivos textos. Ao lado, porém, dessa
potente destra, a frágil mão do homem se introduziu nessas páginas, nelas
enxertando débeis concepções, ligadas bem mal aos primeiros pensamentos e que, a
par dos arroubos da alma, provocam a incredulidade.

Para muitos, a história de Jesus não passaria de um drama poético,
representando o nascimento, a morte, a ressurreição da idéia libertadora no seio
do povo hebreu escravizado, de tal modo dando um corpo para satisfazer a
tradição que anunciava um salvador, um Messias. Aceita semelhante tese, os
Evangelhos deveriam ser considerados fábulas, invenções. Quais seriam, então, os
verdadeiros fundadores do Cristianismo? Os apóstolos? Eram incapazes de tais
concepções. Com exceção de Paulo, que encontrou uma doutrina já constituída, a
incapacidade deles é evidente. A personalidade de Jesus se destaca,
vigorosamente, do fundo da mediocridade dos seus discípulos. A menor comparação
faz sobressair a impossibilidade de semelhante hipótese. Assim é que, se as
Escrituras não fossem, em seu conjunto, um amontoado de alegorias, uma obra de
imaginação, a doutrina de Jesus não teria podido manter-se através dos séculos,
em meio das correntes opostas que agitaram a sociedade cristã.

2 – Fontes não Bíblicas sobre Jesus

A história de Jesus não está registrada em anais, nem nas atas oficiais do
Estado romano, nem tampouco numa obra de história judaica. As fontes não
bíblicas que o mencionam são poucas e lacônicas. A mais importante é uma notícia
de Tácito, historiador romano do início do séc. II, nos seus Annales.
Referindo-se à primeira perseguição aos cristãos, sob o imperador Nero (64
d.C.), Tácito dá a seguinte explicação à palavra “cristãos”: “Este nome lhes vem
de Cristo, que, sob o principado de Tibério, o procurador Pôncio Pilatos havia
condenado ao suplício” (Annales 15, 44). Na Vida do Imperador Cláudio,
o biógrafo imperial Suetônio (séc. II d.C.) diz que “Cláudio expulsou de Roma os
judeus que, por instigação de Crestos (Cristo?), não cessavam de provocar
tumultos” (Cláudio 25, 4). Trata-se de uma notícia duvidosa. Plínio, o moço,
numa carta ao imperador Trajano (110 d.C.), fala dos cristãos como
representantes de grosseira superstição e conta, entre outras coisas, que eles
se reuniam num determinado dia e cantavam um “hino à glória de Cristo, como em
honra de um Deus”. Em Flávio Josefo, cuja extensa obra Antiguidades Judaicas
apareceu por volta do ano 90 d.C., Jesus é mencionado apenas numa nota
ocasional, a propósito do processo e do apedrejamento de “Tiago, irmão de Jesus,
o assim chamado Cristo” (XX, 9, 1). Finalmente, o Talmud babilônico fala
de Jesus como de um mago, um sedutor e agitador público, que zombou das palavras
dos sábios, teve cinco discípulos e foi enforcado na véspera da Páscoa.

Todos esses textos não acrescentam nada ao nosso conhecimento da história de
Jesus. Confirmam apenas um fato: que os documentos redigidos na época da Igreja
primitiva, mesmo quando falam de Jesus, não o consideram um acontecimento de
alcance histórico, embora não neguem que ele tenha existido.

3 – Características da Moral Cristã

A moral cristã está centrada em um núcleo de amor, ao redor do qual gravitam
virtudes essenciais que, se conseguidas, levam inevitavelmente à fraternidade e
à paz de espírito: ser humilde, porque com humildade saberemos relevar as
dificuldades e aflições dos outros; perdoar as ofensas, porque aquele que perdoa
se eleva, implantando o reino da harmonia; ser caridosos, preocupados com o
bem-estar alheio, como se fosse o nosso.

Toda a moral de Jesus, assim, se resume na caridade e na humildade, isto é,
nas duas virtudes contrárias ao egoísmo e ao orgulho. Em todos os seus ensinos,
ele aponta essas duas virtudes como sendo as que conduzem à eterna felicidade.
Orgulho e egoísmo, eis o que não se cansa de combater. E não se limita a
recomendar caridade; põe-na claramente e em termos explícitos como condição
absoluta da felicidade futura.

Sendo caridosos e humildes estaremos vivenciando o Cristianismo no seu
sentido mais amplo que é a prática da lei do amor. A prática da caridade
significa benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos
outros e perdão das ofensas.

A caridade, segundo Jesus, não se restringe à esmola, abrange todas as
relações em que nos achamos com os nossos semelhantes, sejam eles nossos
inferiores, nossos iguais, ou nossos superiores. Ela nos prescreve a
indulgência, porque de indulgência precisamos nós mesmos, e nos proíbe que
humilhemos os desafortunados.

4 – Os Ensinamentos de Jesus

A atividade pública de Jesus, segundo o Evangelho de Lucas, iniciou-se no
décimo quinto ano do reinado do imperador Tibério, o que corresponde ao ano 28,
quando Jesus teria 32 anos de idade. Sua pregação foi antecipada por João
Batista, homem de vida ascética, ao qual muitos iam ouvir falar no deserto. O
ensino de Jesus está narrado nos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, chamados
Sinóticos (synoptykós, ‘visto como um todo’, em conjunto, paralelo) e
também no de João, que é diferente e pode ter fontes gnósticas.

Baseavam-se os ensinamentos de Jesus na tradição judaica do monoteísmo. De
modo algum contradisse Ele as crenças religiosas sancionadas pelo Antigo
Testamento. Como os profetas que o antecederam, não mudou a Lei, mas chamou os
homens a honrarem nela o espírito, e não meramente a letra.

Sua mensagem, contudo, não era a mesma dos antigos profetas e a diferença foi
suficiente para fornecer a base de uma nova religião. O que tornou único o
ensinamento de Jesus foi a importância suprema que Ele deu ao amor. Nunca antes
fora o amor feito base de um sistema de ética, aspecto essencial da boa vontade
de Deus para com os homens, nem seu sentido se mostrara tão amplo. Pois o amor,
como Jesus o entendia – ou caridade, ou fraternidade, ou bondade, que são outros
nomes para mesma virtude – não era um dever medido, mas uma dádiva alegre e
total de cada ato, feita a Deus e aos demais homens. Tal amor exigia que cada
qual abandonasse todo pensamento de si mesmo e submergisse o próprio ser a
serviço dos outros.

Essa concepção do amor era o que se encontrava por trás do ensinamento de
Jesus, de que todos os homens são irmãos e de que o amor de Deus tanto se dirige
aos pecadores como aos justos. Assim, Jesus elevou os pobres e desprezados,
dignificando-os como filhos de Deus e abençoando-os como os mais capazes de
entrar nos Céus.

O verdadeiro amor não tem espaço justificado para o egoísmo e não conhece
reservas, nem mesmo diante do inimigo. Porque Deus é pai “dos maus e dos bons,
dos justos e dos injustos” (Mateus 5, 45;21, 28-32). A afirmação do amor sem
limites entre os homens desperta a consciência do valor absoluto da pessoa
humana e serve de base para a crítica e a contestação de situações sociais
injustas e para a construção de um mundo verdadeiramente fraterno.

Sendo o amor o primeiro e o maior dos Mandamentos, a moralidade (ou o modo de
vida baseado no amor aos demais) era bem mais importante do que os ritos de
culto. Uma exibição exterior de religião sem o íntimo devotamento ao princípio
de caridade não passava de hipocrisia, e esta era um dos piores pecados.

Àqueles que o ouviam, Jesus trouxe a mensagem de que o Reino de Deus estava
próximo e de que Ele próprio era o seu arauto. Ensinou que este mundo de pecado
e aflições em breve chegaria ao fim e que os filhos de Deus entrariam num novo
reino de justiça e paz, onde estariam na própria presença de Deus. A morte e a
ressurreição de Jesus pareceram a seus seguidores simbolizar a salvação dos
homens e a transição para a nova era de bem-aventurança.

O ensino de Jesus ainda estava circunscrito ao quadro tradicional do
Judaísmo. Foi-lhe possível falar, segundo um costume liberal judeu, nas
sinagogas. Mas Jesus ao mesmo tempo introduz uma nova realidade, que o indispõe
com as autoridades e, algumas vezes, com o próprio povo. Ao referir-se à Lei
antiga dos judeus, acrescenta um elemento desafiador: “Eu, porém, vos digo”.

Através de discursos, e principalmente parábolas, Jesus usa uma série de
imagens para estabelecer o que entende pelo reino. São parábolas, pequenas
histórias, com o objetivo de levar o ouvinte a tomar decisão. Nas ‘parábolas do
reino’ (Mt 13) , Jesus anuncia um reino diferente do do ideal político.
Destaca-se o processo da ação divina, a que o homem teria que se submeter,
cooperando. O reino não depende de valores morais que o homem constrói. Antes é
como a semente que cresce secretamente, sem assistência humana, e se transforma
numa árvore. Ou como o fermento que leveda toda a massa. Ou, ainda, o tesouro
oculto que um homem encontra escondido num campo. As metáforas sempre se
reportam a uma ação misteriosa que produz libertação e poder, revelando um mundo
novo. Esse mundo novo contrasta com o reino de Satanás, que simboliza todas as
formas de opressão que circundam a situação humana, tanto em caráter individual,
quanto como povo. Supera a toda imaginação humana, e nesse sentido é
supranatural e supra-histórico.

O ensino de Jesus, tão diferente da mentalidade do homem de seu tempo, entra
em choque com as autoridades constituídas. Ao compromisso religioso-moralista
opõe uma vida real, uma justiça maior. Aos que temem o futuro e a morte, ele
mostra os lírios do campo e as aves do céu. Para garantir o seu presente, o
homem cerca-se de riquezas e ansiedades. Mas é inútil encher os celeiros de toda
sorte de bens, porque naquela noite mesma “a tua vida será tomada” (Lc
12,16-20). É inútil conservar a aparência das coisas, escondendo sob capa de
moralidade ou comportamento formal a injustiça: “Ai de vós, escribas e fariseus
hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do funcho e do cominho, mas
transgredis os pontos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a
fidelidade” (Mt 23,27). Desse modo, o reino inverterá os critérios e os papéis
estabelecidos, o que já era anunciado profeticamente no Magnificat:
“Derrubou de seus tronos os poderosos e elevou os humildes, saciou de bens os
famintos e aos ricos despediu de mãos vazias”.

TEXTOS EXTRAÍDOS DE:

  • SAVELLE, Max. História da Civilização Mundial, vol. 1.
  • DENIS, Léon. Cristianismo e Espiritismo.
  • Atlas da História Universal.
  • Apostila da FEB. Aspecto Religioso.
  • Curso de Aprendizes do Evangelho – vol. I – FEESP
  • Enciclopédia Britânica.

(Publicado no Boletim GEAE Número 413 de 20 de março de 2001)