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História do Cristianismo XI

História do Cristianismo XI

O Cisma entre Oriente e Ocidente
Panorama Sócio-cultural da Idade Média
Crenças Básicas e Práticas da Igreja
A Excomunhão e o Interdito
As Ordens Religiosas
A Inquisição
ANEXO – Heresias Medievais

1 – O Cisma entre Oriente e Ocidente

Na Teologia e na religião, o período macedônico não deu testemunho de
qualquer impulso de vigor criativo como o que as esplêndidas realizações
artísticas da época haviam demonstrado. Não houve novos sinais de intenso zelo
religioso que outrora dera origem a acerbas controvérsias doutrinárias, como as
que haviam participado arianos e monofisitas. Igualmente não houve tendência de
reforma puritana, como a que inspirara o não esquecido movimento iconoclasta.

De ampla importância, porém, era o movimento crescente entre eclesiásticos
bizantinos para desafiar a autoridade do Papado romano, rapidamente a aumentar.
O resultado foi um cisma de prolongada significação entre os ramos ocidental e
oriental da Igreja Cristã.

As circunstâncias que levaram ao cisma não eram novas. Uma fonte de disputa
nascia de certas diferenças de liturgia e costume eclesiástico, tais como o
desejo dos orientais de realizar os serviços religiosos em vernáculo e seu
desgosto pela estatuária “idólatra”. Outro aspecto centralizava-se nas
diferenças teológicas relativas à “processão do Espírito Santo”. Os orientais
ortodoxos sustentavam que o Espírito Santo procedia somente do Pai, ao passo que
a Igreja Romana acrescentara ao credo a famosa cláusula “filioque“, o que
significava que o Espírito Santo estava ligado não só a Deus Pai, mas também a
Deus Filho.

O ponto crucial, porém, estava em ver se o Patriarca de Constantinopla
(equivalente oriental do Papa) e seu clero continuariam a reconhecer a
supremacia espiritual do bispo romano, que já desafiara a autoridade temporal do
imperador. Essa questão fora suscitada durante o séc. IX por um ambicioso e
enérgico eclesiástico bizantino, o Patriarca Fócio, e a disputa que se seguiu já
quase produzira uma ruptura. Em 1054, um patriarca bizantino ainda mais
ambicioso, Miguel Cerulário, levou a discussão a ponto crítico e o resultado foi
a cisão definitiva entre os dois ramos da Igreja, com os partidários de cada
lado a se acusarem mutuamente. Excetuando-se breve período de trégua no
princípio do séc. XV, o cisma persistiu até hoje.

2 – Panorama Sócio-cultural da Idade Média

Sob muitos aspectos, o mundo católico do século XIII pode causar a impressão
de perfeita continuidade em relação aos séculos anteriores: a valorização
primacial da religião, que colore e impregna a maior parte do universo cultural
– a religião católica, exprimindo-se de forma quase semelhante; a estrutura
feudal da sociedade; a dificuldade em delimitar os domínios do poder civil e do
religioso; a supremacia do papa na ordem religiosa e a do imperador na ordem
civil; a disputa entre ambos pela hegemonia; e o caráter predominantemente
agrícola da economia.

Entretanto, numa observação mais cuidadosa, percebe-se que esses traços de
continuidade subsistem ao lado de processos de mutação profundamente atuantes.
Assim, se a religião católica se mantém no Ocidente e consegue mesmo ganhar
terreno sobre suas concorrentes em várias fronteiras, a unidade católica acha-se
seriamente ameaçada pelo aparecimento de novas heresias.

A arte e a religiosidade popular conservam formas de expressão herdadas ao
passado. Apresentam, porém, ao mesmo tempo, uma inovação de sentido e de formas
extraordinariamente rica. Prevalece ainda a organização basicamente feudal da
sociedade. Esse mundo feudal já apresenta, contudo, uma extensa e definitiva
constelação de ilhas que lhe escapam e se lhe opõem: as cidades de organização
comunal autônoma (cidades francas ou livres). Em seus respectivos
campos de jurisdição, o papa e o imperador mantêm a primazia na cristandade.
Mas, em certas regiões, diversos grupos leigos contestam a autoridade da
hierarquia cristã. E a hegemonia política do imperador, na segunda metade do
século, é pouco mais que um simples direito de precedência honorífica entre os
príncipes cristãos.

Finalmente, embora no conjunto da Europa predomine a economia agrícola,
muitas áreas geográficas já apresentam acentuado desenvolvimento comercial e
urbano. O Ocidente cristão do séc. XIII caracteriza-se pelo encontro de dois
mundos: nele subsistem e se entrechocam a antiga civilização feudal, senhorial e
teocrática, e as formas que já elaboram uma civilização moderna, urbana e
laicizada.

As diversas manifestações dessa civilização nascente se entrelaçam e se
correlacionam. Uma delas, porém, constitui fator dominante: o desenvolvimento
industrial, comercial e urbano, processo fundamental do período que se
convencionou chamar “Baixa Idade Média”. Florescem nos centros urbanos novas
formas de expressão artística e religiosa, circulam idéias inovadoras, vêm à luz
diferentes modalidades de organização social e de poder político.

Na maior parte da Europa, o governo municipal é exercido desde o início por
um conselho administrativo, composto de representantes das diversas corporações.
A nobreza local não se integrou nas cidades, como aconteceu na Itália. Se de
início foi favorável a seu estabelecimento, e mesmo lhe concedeu privilégios,
passou a lutar contra suas pretensões de autonomia. Mas em geral as cidades
saíram vitoriosas. Estavam sob a proteção do poder central: dos príncipes da
Alemanha e dos reis nos demais países. Interessavam-se em favorecê-las para
limitar o poder da nobreza feudal. Dessa forma, as conseqüências do
desenvolvimento urbano foram paradoxais: a Itália esfacelou-se em pequenas
unidades soberanas; na Alemanha, os príncipes se fortaleceram em detrimento da
pequena nobreza e do imperador; nos demais países criaram-se monarquias
nacionais centralizadas. O feudo, a cidade e o rei tornaram-se, desde então, os
três focos do poder político: da aliança ou da hostilidade entre eles dependia a
evolução política da Europa.

A religiosidade popular do séc. XIII nasceu desse meio urbano em fase de
maturação. Assim como a arte das catedrais e a cultura das universidades,
mesclava elementos tradicionais e formas novas. O culto dos santos,
característico da piedade medieval, foi impulsionado: cada cidade e, no seu
interior, cada uma das corporações, tinha um ou mais patronos. Multiplicaram-se
as imagens dos santos nas fachadas das catedrais e a Igreja, por meio das
canonizações, acrescentou novos nomes à sua lista de santos tradicionais. Como
nos séculos anteriores, o culto dos santos se estende às relíquias que deles se
conservam e para as quais são construídos santuários especiais que atraíam
muitos peregrinos. A peregrinação é outra forma devocional herdada do passado e
que se mantém com o mesmo vigor. Mas, na impossibilidade de realizá-la, os fiéis
se consolavam com uma peregrinação abreviada: a procissão. Roma, a Terra Santa e
Santiago de Compostela continuam sendo os lugares mais concorridos. A eles
acrescentaram-se outros, como Cantuária – local do martírio de São Tomás Becket
– e o túmulo de São Francisco de Assis.

O culto de Maria, porém, foi o mais vivo e o que atraiu a sensibilidade
religiosa dos fiéis. Ao lado das representações iconográficas herdadas da época
romântica – Maria apresentada como rainha, em postura hierática – surgem outras,
que se tornarão clássicas na iconografia renascentista: as Madonas, de grande
doçura e naturalidade, portando ao colo o Menino Jesus. Ainda no séc. XIII são
as formas de devoção tipicamente mariais, como a recitação do rosário, de
extraordinária difusão popular.

A figura de Jesus Cristo também foi objeto de uma devoção amplamente
difundida, em duas vertentes principais: culto do Jesus histórico, que se fundia
freqüentemente ao marial, e o do Cristo presente na Eucaristia. No decorrer do
séc. XIII a Igreja instituiu a festa de Corpus Christi com a respectiva
procissão.

Ao lado das expressões religiosas tradicionais, surgiram no séc. XIII novas
fórmulas de devoção e um espírito religioso renovador. Em primeiro plano estão
as associações e as confrarias: frutos do espírito corporativo que presidiu à
organização social das cidades e que não poderia deixar de exercer influência no
plano religioso. A vida da Igreja primitiva não se expressa no Novo Testamento
como um ideal comunitário? E a insistência no tema da caridade fraterna não é
uma constante no Evangelho, sobretudo no de João? Assim, os cristãos da época
retornam a esses textos com religiosa atenção e assiduidade. No plano da vida
religiosa, esses textos servem de orientação a várias novas ordens clericais,
sobretudo às mendicantes (franciscanos e dominicanos).

Entre os leigos nascem inúmeras associações religiosas e algumas enveredam
pelo caminho da contestação e da heresia. A maioria delas, porém, dinamiza a
vida cristã em todos os seus aspectos: obras de caridade, auxílio mútuo,
espiritualidade, colaboração com a hierarquia nas tarefas pastorais e
missionárias da Igreja, aprofundamento da instrução religiosa, ascese e
penitência. As ordens religiosas – dominicana, franciscana e do Carmo – oferecem
ao leigo a possibilidade de uma vivência cristã de profunda intensidade
espiritual e moral, sem afastá-lo de suas tarefas temporais. Sobretudo na última
década do século, surgem as associações de finalidade penitencial e devocional:
procura-se uma espiritualidade compatível com as condições de vida do laicato
urbano.

As confrarias e os quadros corporativos de mais de uma região européia
revelavam inspiração evangélica. Integravam, assim, a grande corrente de
renovação que movimentou a cristandade católica do séc. XIII e que se
caracterizou pela volta ao Evangelho. Esse evangelismo manifesta-se em todas as
expressões da vida religiosa: na arte, no culto, na espiritualidade, no
pensamento teológico e mesmo na apresentação exterior das igrejas. No culto e na
espiritualidade, esse evangelismo se traduz pela tendência acentuadamente
cristológica: procura-se no Cristo o modelo de vida. E certos valores do
Evangelho, como a pobreza, o despojamento, a humildade, o amor fraterno e o zelo
missionário, reencontram seu lugar de destaque na vida cristã.

3 – Crenças Básicas e Práticas da Igreja

Por toda a Era Medieval, a Igreja Católica Romana manteve o monopólio
religioso do Ocidente europeu. Pertencer à Igreja era conseqüência automática do
nascimento e não havia lei ou costume que permitisse a alguém renunciar a ela. A
dominação espiritual da Igreja não se estendia à Rússia ou aos Bálcãs, que
permaneciam no reino da Igreja Ortodoxa Oriental, mas em todo o resto da Europa
alcançava até onde iam as fronteiras da própria civilização.

É impossível compreender o papel e a influência da Igreja Católica Romana na
Era Medieval sem a compreensão de suas doutrinas religiosas básicas. Partiam
elas da premissa de que a raça humana suporta enorme carga de pecado. Este, em
parte, reside na herança que a humanidade recebeu da culpa de Adão; em parte, é
considerado conseqüência dos maus atos dos indivíduos em suas próprias vidas,
pois, embora Deus lhes tenha dado o conhecimento do bem e do mal e a liberdade
de escolher entre ambos, sem a assistência divina os homens sempre sucumbem às
tentações maléficas.

Tão grande é essa carga de pecado que os homens, por seus próprios e míseros
esforços, nunca a podem expiar. Como, porém, Deus é tão misericordioso quanto
justo, Ele mesmo possibilitou-lhes o perdão. Isso se verificou pelo sacrifício
de Jesus Cristo, cuja morte ajudou a remir os pecados dos homens. Essa Redenção
Divina, entretanto, não assegura aos homens a salvação; apenas torna possível
que a obtenham. Para isso, homens e mulheres, individualmente, devem reconhecer
seus pecados, arrepender-se e lutar para vencer a tentação de tornar a pecar.
Para se ajudarem a fazê-lo, devem submeter-se à administração, pelos sacerdotes,
dos sacramentos.

4 – A Excomunhão e o Interdito

A arma que os papas utilizavam para pôr de joelhos soberanos seculares era a
sentença de excomunhão. Esse severíssimo castigo podia ser imposto pelo Papa em
qualquer parte do mundo e pelo bispo dentro de sua diocese, atingindo o pecador
que recusasse fazer penitência de seus pecados e submeter-se à autoridade
eclesiástica. Uma pessoa assim condenada estava cortada da comunidade cristã.
Não podia entrar num templo nem receber os sacramentos e todos os cristãos
estavam proibidos de tratar com ela. Tornava-se logo um pária, um leproso
espiritual, cuja presença contagiava. Se morresse sem se arrepender, sua alma
estava condenada a sofrer os tormentos do inferno até o fim dos tempos.

Só com grave risco podia um rei persistir em disputa com um Papa, quando este
último recorria a essa arma. O próprio rei temeria por sua alma, se fosse
excomungado. E, mesmo se quisesse desconhecer o perigo que sua alma corria, não
podia ignorar a ameaça e seu poder secular. De fato, excomungado o rei, seus
vassalos ficavam libertos dos juramentos que lhe haviam feito e muitas vezes
isso era desculpa suficiente para que se rebelassem. Com o passar do tempo,
todavia, essa arma demonstrou-se menos eficaz. Famoso o triunfo do Papa
Inocêncio III sobre o Rei Filipe II, da França, que obrigou os subservientes
bispos a anularem o seu primeiro casamento, para que pudesse tomar em segundas
núpcias uma princesa dinamarquesa. O Papa revogou a anulação do primeiro
casamento e ordenou que o rei deixasse sua nova mulher, em favor da primeira.
Filipe fanfarreou, até que Inocêncio III lhe impôs a sentença de excomunhão.
Então, Filipe cedeu, a fim de impedir uma rebelião de seus vassalos.

Outra arma que o Papa às vezes utilizava – assim como alguns bispos – era o
Interdito. Essa sentença se impunha sobre uma comunidade inteira: aldeia,
cidade, província ou mesmo todo um reino. Significava que os edifícios da Igreja
ficariam fechados, nenhum ofício religioso se realizaria e nenhum sacramento se
administraria, exceto os que, como a extrema unção, eram considerados essenciais
à salvação da alma, quando estivesse iminente a morte. Às vezes, um bispo
impunha tal sentença quando um de seus vassalos se rebelava contra ele.
Ocasionalmente, o Papa a impunha – ou ameaçava fazê-lo – quando um rei desafiava
a autoridade papal. Sua eficácia vinha do fato de que a punição afetava não só o
governante, mas todos os que viviam em seu domínio; a população, aterrorizada
com o insólito silêncio dos sinos das igrejas e horrorizada por ver os templos
fechados, exerceria enorme pressão sobre o soberano para que se submetesse e,
assim, a livrasse do castigo que, por culpa dele, sobre ela pesava.

O mais famoso interdito da Era Feudal foi o lançado sobre o reino da
Inglaterra pelo Papa Inocêncio III, como conseqüência de uma disputa com o Rei
João sobre a nomeação para o arcebispado de Cantuária. Esse interdito permaneceu
em vigor por vários anos e só foi retirado quando João se submeteu humildemente.

5 – As Ordens Religiosas

As múltiplas atividades da Igreja ficavam, ordinariamente, a cargo dos
clérigos que faziam parte do clero secular. Caracteristicamente, portanto, o
clero regular levava vida retirada do mundo exterior – mesmo dos negócios do
governo da Igreja.

Na história do clero regular, a Era Feudal é pródiga pelo desenvolvimento de
diversos grupos monásticos e pela fundação das novas ordens de frades
mendicantes. Após os inícios do monasticismo, surgiram certas tendências que não
haviam sido previstas e que produziram graves problemas. Leigos muitas vezes
faziam dádivas a mosteiros, pois os monges eram tidos como possuidores de
santidade superior, e gradualmente os mosteiros vieram, assim, a ter grandes e
ricas posses de terras e outras riquezas. Forneciam estas uma receita que
libertava os monges da necessidade de trabalhar na terra para sustentar-se. Os
monges que pertenciam a mosteiros tão prósperos estavam ainda sujeitos ao voto
de pobreza, pois a riqueza não lhes pertencia, mas aos conventos. Logo, porém,
tornou-se difícil ver que espécie de sacrifício esse voto de pobreza envolvia,
já que os monges viviam em conforto e abastança. Sem duvida, nem todos os
mosteiros ficaram ricos, ainda que moderadamente; mas alguns dos que acumularam
grandes dotes caíram vítimas de escandalosos abusos, notórios pela indolência,
imoralidade e dissipação geral de seus membros.

Por outro lado, livres da necessidade de trabalhar, em alguns conventos os
monges dedicaram-se à manutenção de escolas, bem como ao trabalho de copiar
manuscritos, numa época em que todos os manuscritos, sagrados e profanos, eram
produzidos em cópia pelos monges.

6 – A Inquisição

Durante os primeiros séculos da Era Feudal, as heresias virtualmente
desapareceram, por ser a vida intelectual dos “Tempos Obscuros” por demais fraca
para produzir grandes disputas teológicas. Mas, na última parte da Era Feudal,
apareceram várias heresias, algumas das quais se tornaram grave ameaça para a
Igreja. Eram elas de duas espécies: heresias anticristãs, que atacavam as bases
da religião cristã, e heresias anti-clericais que discutiam o papel tradicional
do clero, embora não a fé cristã básica.

O evangelismo do séc. XIII aparece freqüentemente aliado a formas heterodoxas
de religiosidade, determinando uma atitude de desconfiança por parte das
autoridades da Igreja. Elemento comum a esses movimentos foi a afirmação
extremada da auto-suficiência do leigo, como reação à autoridade avassaladora da
hierarquia. De forma paradoxal, esse laicismo se prende historicamente a
iniciativas da própria Igreja, durante a querela das investiduras: para fazer
frente ao poderio do imperador, ela incentivara os fiéis a reclamarem o direito
de participar nas eleições episcopais.

A mais famosa das heresias anticristãs foi a dos cátaros, ou albigenses.
As mais importantes entre as heresias anti-clericais foram as dos valdenses,
dos hussitas e dos lolardos.

A cristandade ocidental reagiu de três maneiras à ameaça representada pela
heresia. De início, tentou liquidar o problema militarmente, quando em 1208 após
ter sido assassinado o legado pontifício, Pedro de Castelnau, o papa Inocêncio
III apelou à Cruzada, convocando os príncipes cristãos e garantindo aos que dela
participassem os mesmos benefícios espirituais e temporais ligados à Cruzada de
libertação da Terra Santa. Nessa campanha, os interesses políticos e econômicos
tiveram nítida predominância. Ela terminou pela vitória dos cruzados, que logo
se apoderaram dos territórios dos albigenses e dos senhores feudais que os
protegiam. Mas o resultado não foi o esperado pelo papa, pois a heresia
continuou a progredir: apoiava-se em causas religiosas e sociais bastante
profundas. Depois, utilizou-se de pregadores para persuadir os hereges: foram
escolhidos os monges cistercienses, de comprovado saber teológico, recebendo o
título de legados pontifícios. Mas o êxito dessa pregação foi bastante limitado.
Além de ter seus movimentos cerceados pela conivência dos senhores feudais, os
prelados não conseguiam utilizar uma linguagem que realmente atingisse a
população. Embora saíssem vitoriosos dos debates públicos, a heresia continuava
seu caminho. Finalmente, o papa recorreu à pressão judicial, estabelecendo a
Inquisição.

Essa instituição apareceu primeiro em 1203, quando o Papa Inocêncio III
mandou especiais juízes papais “inquirirem” casos de heresia em certos locais em
que os tribunais dos bispos pareciam incapazes de colocar-se à altura de sua
rápida difusão. Essas novas cortes mostraram-se muito mais eficazes do que os
tribunais episcopais efetivos e, em conseqüência, em 1229, foram transformadas
em instituição permanente para o fim específico de lidar com a heresia.

Por essa razão, o Papado retirou dos bispos locais a responsabilidade
principal de suprimir a heresia. Não só se estabeleceram novos tribunais, com
juízes diretamente responsáveis ante o Papa, como os governos seculares foram
induzidos a tomar medidas mais severas em apoio à campanha contra a heresia, e
meios cruéis, incluindo o uso da tortura, se empregaram para descobrir hereges e
infundir terror nos corações dos que se inclinassem a aderir a movimentos
heréticos.

O auge da Inquisição papal foi alcançado nos princípios do séc. XIII. Os
tribunais da França do Sul e da Itália do Norte eram os mais atarefados, mas a
instituição espalhou-se pela maior parte do continente e os processos
continuaram durante toda a Era Feudal, e principalmente na Espanha, onde tomou o
nome de Santo Ofício, criou fortes raízes e tornou-se instituição
poderosíssima, que deixou lúgubres recordações, a que estão ligados os nomes dos
dois grandes inquisidores Torquemada e Ximenes.

Até cerca de 1500, a Igreja conseguiu reprimir pelo menos as manifestações
públicas de todas as heresias importantes. A religião da Europa Ocidental, a
Cristandade Romana, era uma unidade, na doutrina e na prática, assim como na sua
organização hierárquica. No século que se seguiu à morte de João Huss,
entretanto, as divergências religiosas se multiplicaram e se tornaram difíceis
de suprimir. Com a obra de Martinho Lutero (1483-1546), que desafiou a
autoridade doutrinária e eclesiástica da Igreja pouco após a passagem do séc.
XVI, essa impressionante unidade foi destruída; a Cristandade ocidental
partiu-se em muitos fragmentos.


(1) Monofisitas – Adeptos da doutrina que admitia em Jesus Cristo uma
só natureza.
(2) Liturgia – O culto público e oficial instituído por uma igreja;
ritual.
(3) Vernáculo – O idioma próprio de um país.


TEXTOS EXTRAÍDOS DE:

  • Enciclopédia Barsa.
  • Enciclopédia Britânica.
  • SAVELLE, Max. História da Civilização Mundial. Vol. II
  • Atlas Histórico e Geográfico.
  • Dicionário Prático Ilustrado. Lello & Irmãos Editores, Porto.

ANEXO
Heresias Medievais

CÁTAROS OU ALBIGENSES – A seita Cátara não pode ser considerada
propriamente uma heresia cristã. Foi, antes, o ressurgimento do Maniqueísmo na
Europa – doutrina originária da Pérsia. Eram chamados de Cátaros em razão de uma
palavra grega que significava purificados e, às vezes, de albigenses,
em razão de sua preponderância na cidade de Albi, na França Meridional. O culto
teve seu surgimento mais notável na Europa Ocidental do séc. XII.

A doutrina do catarismo derivou da velha concepção religiosa persa de um
dualismo entre os espíritos do bem e do mal. De acordo com essa concepção, dois
poderes ou princípios cósmicos estavam envolvidos em gigantesca luta em todo o
universo. Um era o princípio do bem, identificado com o reino do espírito. O
outro era o princípio do mal, identificado com o mundo material. Sua luta se
reproduzia na existência de cada ser humano, pois a alma do homem pertencia à
força do bem, ao passo que o corpo humano era posse da força do mal. Essa
doutrina implicava uma ética da mais austera renúncia da carne. Em rigorosa
lógica, o suicídio seria a mais meritória das ações humanas, representando o
completo triunfo do espírito sobre a carne.

No ápice do movimento, que se verificou no início do séc. XIII, os cátaros
tinham uma completa organização, com padres e bispos. Mas seu clero não formava
uma casta rigidamente separada, acima dos leigos.

VALDENSES – Outras heresias surgiram do protesto de homens pobres e
humildes contra a pompa, o orgulho e a riqueza ultra-gritantes da hierarquia
eclesiástica. Uma das mais importantes heresias anticlericais foi a dos
valdenses, ou “os pobres de Lião”. Seu nome vem do seu fundador, Pedro Valdo, de
Lião, na França. Como Francisco de Assis, era ele um homem de posses que
experimentou profunda conversão religiosa, a qual o levou a distribuir sua
riqueza e a começar a pregar à gente comum.

Sua doutrina expressava simplesmente a opinião de que o clero se preocupava
menos com a religião do que com a riqueza e o orgulho de sua posição. Logo,
porém, o clero estabelecido declarou herético o movimento, com base em que ele
permitia pregação aos leigos, e assim implicitamente negava o monopólio
sacramental dos padres ordenados. Com o correr do tempo, além disso, os
valdenses vieram a sustentar certas práticas e idéias que estavam em clara
oposição aos ensinamentos da Igreja. Por exemplo, confessavam seus pecados uns
aos outros, e essa prática vinha ferir a doutrina sacramental de que a confissão
devia ser feita a um padre ordenado, como condição de receber a penitência. Os
valdenses, também, mantinham a idéia, comum a várias seitas heréticas, de que os
ritos sacerdotais não tinham qualquer efeito, quando o próprio padre estivesse
em pecado. Esta era uma idéia que a Igreja não podia admitir, pois negava o
princípio de que os sacramentos são um milagre, realizado por força sobrenatural
e não pelo poder do padre como homem.

LOLARDOS – Os lolardos eram membros de um movimento herético inglês
inspirado nos ensinamentos de um notável sacerdote inglês, João Wyclif (aprox.
1324-1384). Embora padre, autor de uma tradução inglesa da Bíblia, Wyclif passou
a maior parte de sua vida denunciando a corrupção, a riqueza e a arrogância
clericais. Sua mais antiga prescrição para reforma da Igreja era privar os
eclesiásticos de toda e qualquer propriedade. Quando seus adversários argüiram
que o clero devia ter uma posição de especial dignidade por ser encarregado de
especiais poderes sacramentais, Wyclif pôs em dúvida a validade dos sacramentos,
incluindo mesmo a Eucaristia. Os poderes sacramentais concedidos ao clero,
ensinava ele, estavam na dependência da pureza de vida do clérigo. Apesar da
ousadia de suas concepções, o próprio Wyclif não foi molestado, pois dispunha de
poderosa proteção leiga.

HUSSITAS – Os hussitas eram membros de um movimento herético que
floresceu na Boêmia, parte da ex-Tcheco-Eslováquia. Seu mestre foi João Huss,
sacerdote de Praga, que foi queimado na fogueira em 1415, como punição por haver
difundido doutrinas heréticas. As idéias de Huss e seus seguidores eram tão
semelhantes às de Wyclif e seus discípulos lolardos na Inglaterra, que podem ser
encaradas como praticamente idênticas. O movimento hussita teve significação
política, além de religiosa, pois tornou-se expressão do nascente nacionalismo
boêmio dirigido contra o domínio alemão na Boêmia.

(Publicado no Boletim GEAE Número 418 de 29 de maio de 2001)