Homenagem ao Último Escravo que Vivera no Brasil
A escravidão no Brasil, como toda escravidão, é uma nodoa vergonhosa que ainda
não foi escrita em todos os seus detalhes e abusos arbitrários. O que tem vindo
à tona são os heroísmos de alguns brancos destemidos, ou mesmo de alguns mestiços,
como José do Patrocínio, Castro Alves e outros que não se sentiram bem diante de
tanta prepotência e cinismo e gritaram por justiça. Há, porém, no contexto desse
fato histórico brasileiro verdadeiras jóias lapidadas por negros que ficaram escondidas
na bruma do tempo. Cada uma dessas preciosidades precisam ser resgatadas pelos nossos
historiadores. Hoje trago para os leitores do Correio uma dessas belezas que descobri
em minhas singelas pesquisas.
A história registra que desde 1539 os colonos estabelecidos no Brasil reclamavam
da falta de mão-de-obra para o cultivo da cana-de-açúcar e o incremento dos engenhos,
rogando ao rei licença para adquirirem escravos. Em 1542, o donatário de Pernambuco
solicitou autorização para comprar escravos na Guiné, no Continente Africano, por
conta própria, alegando que a produção açucareira não poderia arcar com o soldo
de empregados. Somente em 1559, quando a incipiente indústria brasileira já estava
com suas bases assentadas, a coroa decidiu permitir o ingresso de escravos negros
no Brasil: cada senhor podia trazer 120 escravos do Congo. Com essa permissão começou
o tráfico negreiro oficial no Brasil, que se somou às aquisições isoladas existentes
em São Vicente e na Bahia.
Passados três séculos do início do comércio de escravos, em 1882, após longa
viagem, em que permaneceu amontoado em porões fétidos de um navio negreiro, entre
ampla leva de homens e mulheres famintos e desnutridos, estava um rapaz de 17 anos,
era mais um escravo sem nome. Fora comprado por um fazendeiro da região de Belo
Horizonte que lhe deu o nome de Valdomiro Silva. Esse jovem apressou-se em apreender
e a obedecer. Trabalhando de Sol-a-Sol descobriu, com os demais companheiros de
infortúnio, que a única maneira de garantir a ração diária e rústicas vestimentas
era trabalhar duro na enxada. Criaturas que nem mesmo sabiam porque haviam sido
capturadas e até por qual motivo teriam vindo ao mundo. Quantas divagações não lhes
tomavam o pensamento? “Será que o negro foi mesmo criado para sofrer?” Essas indagações
percorriam apenas por suas mentes. Pois se algum deles fosse surpreendido falando
em voz alta, o látego do feitor cortava seus lombos desnudos, mas não sem antes
do algoz esbravejar: “Trabalha negro!” Uma triste página de nossa história, escrita
com sangue, suor e lágrimas. Naquela época enorme contingente de espíritos encarnaram
com a esperança de redimir suas faltas e tão brilhantemente as venceram, legando-nos
exemplos dignificantes de dedicação ao trabalho e ao amor ao próximo.
A história registra grande número de escravos rebelados, agrupados em quilombos.
O quilombo mais importante foi comandado pelo negro Zumbi, em Palmares no interior
do Estado de Alagoas. Zumbi lutou até a morte para defender os direitos de seus
irmãos de raça, tornando-se um dos mais importantes heróis do movimento negro.
Há tempos o Correio expõe para o jornalista colaborador, como norma de conduta
esta máxima: “O jornalista faz a história, história feita de fatos”. Assim pensando
é que escrevi este artigo, baseado em fatos. Há tempos tencionava escrever sobre
a escravidão. Mas falar de Zumbi, quilombos, navio negreiro, abolicionistas etc,
temas sempre ricos, mas sobejamente explorados e diga-se em alto e bom tom: Brilhantemente,
por grandes mestres de nossa literatura, seria a meu ver desinteressante. Eis, porém,
que repassando recortes de jornais antigos, me deparei com um fato que me dava o
gancho ideal:
“RIO DE JANEIRO – sábado, 13 de setembro de 1986. Ex-escravo morre aos 121 anos.
Morreu ontem o último escravo que ainda vivia no Brasil. Valdomiro Silva, que acabara
de completar 121 anos, que chegou aqui num porão de um navio negreiro em 1882. Mais
adiante a nota acrescenta:” O corpo do ex-escravo foi velado na casa do empresário
Édio Costa, cujo avô paterno havia comprado Valdomiro no século passado. O bairro
onde ele morou, por mais de 100 anos, ficou de luto e o comércio fechou suas portas
em sinal de respeito ao extinto. Consta que quando Valdomiro chegou da África fez
por merecer (grifei) a consideração e amizade do filho do fazendeiro, o menino Durvalino
que tinha, naquela ocasião, apenas 10 anos de idade. Descontentes com os maus tratos
que os escravos recebiam, o negro Valdomiro e o menino Durvalino fugiram para a
cidade do Rio de Janeiro, onde se instalaram no subúrbio de Bangú. Anos depois Durvalino
fez fortuna e Valdomiro já era tratado como pessoa da família (grifei). Os sete
filhos de Durvalino foram cuidados por Valdomiro que se apegou especialmente ao
Édio, que iria se tornar conhecido como o empresário Édio Costa, uma das maiores
fortunas da Zona Oeste do Rio de Janeiro. “Ele era meu pai, meu avô e meu bisavô”-
desabafou o empresário…”.
Temos aí um belo exemplo de como uma criatura pode alcançar elevação moral e
espiritual. Escravizado, pego a laço, arrancado à força de sua terra e trazido para
outro continente, sofrendo toda sorte de humilhações e agressões, dando duro no
trabalho forçado sem, no entanto, se revoltar. Amou seu semelhante a ponto de ser
considerado pai, avô e bisavô. Faço ecoar em nossos dias as palavras de gratidão
de Durvalino. O negro Valdomiro não só amou as crianças que estavam sob sua responsabilidade,
mas também amou Belo Horizonte, Rio de Janeiro e o Brasil!
Eis uma atitude própria de espíritos de escol. Fora aprisionado um dia pelo laço
da ignorância. Ele, porém, usou o laço do amor e da bondade para prender a todos
nós, brasileiros, pois jamais esqueceremos essa figura dócil e exemplar. Obrigado
Valdomiro por ter ficado entre nós 121 anos distribuindo amor e dedicação, exemplos
que ficarão gravados na mente da maioria dos que agora vão ler este relato. Valdomiro,
sem saber, seguiu à risca o ensino de Jesus: “O meu mandamento é este: Que ameis
uns aos outros, assim como eu vos amei.” (João 15:12- 13). Ninguém apresenta mais
amor do que aquele que dá sua vida pelos amigos.
(Publicado no Correio Fraterno do ABC Nº 366 de Julho de 2001)