A Justiça e os Dramas Humanos
Indaga-me jovem amigo se as sentenças podem ter alma e paixão.
O esquema legal da sentença não proibe que tenha alma, que
nela pulsem vida e emoção, conforme o caso .
Na minha própria vida de juiz, senti, muitas vezes, que era
preciso dar sangue e alma às sentenças.
Como devolver, por exemplo, a liberdade a uma mulher grávida,
presa porque trazia consigo algumas gramas de maconha, sem penetrar fundo na sua
sensibilidade, na sua condição de pessoa humana?
Foi o que tentei fazer ao libertar Edna, uma pobre mulher que
estava presa há 8 meses, prestes a dar à luz, com o despacho que a seguir
transcrevo:
“A acusada é multiplicadamente marginalizada: por ser mulher,
numa sociedade machista; por ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de
terra dos versos imortais do poeta; por ser prostituta, desconsiderada pelos,
homens mas amada por um Nazareno que certa vez passou por este mundo; por não
ter saúde; por estar grávida, santificada pelo feto que tem dentro de si, mulher
diante da qual este Juiz deveria se ajoelhar, numa homenagem à maternidade,
porém que, na nossa estrutura social, em vez de estar recebendo cuidados
pré-natais, espera pelo filho na cadeia.
É uma dupla liberdade a que concedo neste despacho: liberdade
para Edna e liberdade para o filho de Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir
o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para
que venha a este mundo tão injusto com forças para lutar, sofrer e sobreviver.
Quando tanta gente foge da maternidade, quando pílulas
anticoncepcionais, pagas por instituições estrangeiras, são distribuídas de
graça e sem qualquer critério ao povo brasileiro; quando milhares de
brasileiras, mesmo jovens e sem discernimento, são esterilizadas; quando se deve
afirmar ao Mundo que os seres têm direito à vida, que é preciso distribuir
melhor os bens da Terra e não reduzir os comensais; quando, por motivo de
conforto ou até mesmo por motivos fúteis, mulheres se privam de gerar, Edna
engrandece hoje este Fórum, com o feto que traz dentro de si.
Este Juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria todos os seus
princípios, trairia a memória de sua Mãe, se permitisse sair Edna deste Fórum
sob prisão.
Saia livre, saia abençoada por Deus, saia com seu filho, traga
seu filho à luz, que cada choro de uma criança que nasce é a esperança de um
mundo novo, mais fraterno, mais puro, algum dia cristão.
Expeça-se incontinente o alvará de soltura”.
João Baptista Herkenhoff é livre-docente da Universidade
Federal do Espírito Santo e autor do livro “Para onde vai o Direito”. (Do jornal
Gazeta do Povo-Curitiba- 23/01/98)
Mundo Espírita comenta:
Ao ler o despacho desse magistrado, a esperança de um mundo
novo e justo se desdobra à nossa frente.
Esperança de um dia as Leis Humanas se tornarem educativas e
não punitivas.
Esperança de ver as sanções proporcionais às faltas cometidas.
Esperança de, em um julgamento, ser levado em conta o passado
de cada ser, sua infância, as possibilidades que teve de educação , de saúde, de
carinho, de afeto.
Enfim, esperança de que a humanidade atente para as Leis de
Deus e nelas baseie as suas.
(Jornal Mundo Espírita de Março de 1998)