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Livre Arbítrio e Livres-Arbítrios

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Enéas Canhadas

 Estamos vivendo uma época em que se ouvem muitos comentários de perplexidades ou surpresas que acontecem a todo o momento frente a acontecimentos assustadores, inéditos, mórbidos, estranhos ou simplesmente curiosos. Difícil está de se ver algum acontecimento que podemos chamar de comum.

Tornou-se praticamente uma regra o uso do livre arbítrio, não para que os humanos assumam os próprios atos, mas sim para apontar ou indicar o outro com a absoluta certeza de que foi ele o causador, seja lá o que tenha acontecido. Os advogados entram em cena não para buscar e defender a verdade, mas sim para argumentar em prol de pontos de vista e provar o que poderia ter sido e não o que foi. Os investigadores se perdem, não nos fatos constatados, mas sim nas hipóteses que podem ser cridas para as explicações que se queira dar a um ou outro acontecimento. Saudades das habilidades de dedução lógica, meticulosa e aguçada percepção dos fatos de Sherlock Holmes! A lembrança do Frei Leonardo Boff nos socorre dizendo “todo ponto de vista é a vista de um ponto” (A Águia e a Galinha – Edit. Vozes). Quisera a natureza humana fosse mais capaz de levar em conta os pontos de vista diferentes! Valha-nos o conselho de Dante Alighieri “Quem és tu que queres julgar, com vista que só alcança um palmo, coisas que estão a mil milhas?

Os supersticiosos podem chamar de azares ou males que se fazem os seres humanos uns aos outros. Os mais religiosos bradam repetidos gritos com fé rouca as profecias bíblicas e que, afinal de contas, já estavam preconizadas há séculos, se não há milênios. Os beatos estão rezando e pensando enquanto vêm se aproximar e concretizar o final dos tempos. Os futurólogos não hesitam quanto às interpretações na busca dos códigos e do que possa existir de lógico em números cabalísticos e leituras simbólicas. Os místicos interpretam os seus instrumentos que tudo podem predizer. Os que vêm o futuro vão buscar no passado as mais corretas, absolutas e incontestáveis raízes para os males que se abatem no mundo atual. Os astrólogos têm nos seus cálculos muitas explicações tanto para o presente como para os futuros próximos ou remotos. As catástrofes já não parecem mais obras da natureza que segue sempre o seu curso, transformadas em castigos do planeta aos que o desrespeitam há milênios. Os desastres já não têm mais o nome de acidentes para serem consideradas produções dos desvairados, mas sim em razão de alguma conjunção de sincronicidades. Raul Seixas já disse em sua música que nos livros da estante todos têm as explicações. E por fim, embora esteja, provavelmente, esquecendo de mencionar grupos, pensamentos ou tendências, as pessoas envolvidas nos tais fatos estranhos ou inéditos atribuindo a outrem os seus atos, como a imitar ou reproduzir as idéias dos seres humanos afirmando que isto causou aquilo, mas que não têm nada a ver com o que aconteceu.

O Rabino Newton Bonder em seu livro “Código Penal Celeste” lança uma luz sobre o pecado original de Adão que bem poderia ter usado o seu livre arbítrio para assumir a sua responsabilidade ao comer o fruto proibido da árvore da ciência do bem e do mal que ficava no centro do jardim, e no entanto o fez pra explicar ao Senhor que Eva o havia induzido. Daí para frente, mitologicamente o primeiro homem, ao usar o livre arbítrio o fez para iniciar uma nova regra qual seja a de apontar o outro como responsável pelos atos que praticou. Mas, já não teria acontecido antes, quando o símio mais próximo da condição humana teria culpado o seu mais próximo do bando pra culpá-lo do filhote roubado da fêmea que ainda amamentava? Ou será que um humanóide ainda mal se apoiando nas pernas trazeiras não teria tentado culpar alguém do seu bando por ter falhado no uso da lança?  Resta-nos um último espanto se não o maior, quando nos deparamos com o fato de termos nos afastado para tão longe de uma propriedade essencial do ser humano, qual seja a responsabilidade intransferível pelos seus atos quando praticados.

O ser si-mesmo faz-nos dever o custo de ser dotado de responsabilidade. Do latim “responsum” que significa “responder por” tornou-se uma coisa muito dolorosa e assustadora no mais das vezes. O que o Ser pratica de formas e maneiras simples é equivalente ao natural e o mais perto da verdade, como sopra a brisa para varrer as folhas que caem da árvore. O livre arbítrio tornar-se-ia desnecessário, respeitado fosse o agir espontâneo do ser humano. Lembrando Andrè Comte-Sponville “quando o amor existe, para que o dever?” uma vez que “somente quem ama não precisa mais agir como se amasse” e podemos acrescentar conforme o uso do livre arbítrio, como se o outro se tornasse detestável ou odiável, antes quem fora tão bom aos nossos olhos. Falando de amor Sponville ainda acrescenta “o amor é essa alegria que se soma ao prazer e que o ilumina, que o reflete como no espelho da alma e o anuncia, o acompanha ou o segue, como uma promessa ou um eco de felicidade”.  Desta forma os nossos livres-arbítrios nos encaminham para a prática de um sentimento inverso ou avesso ao do amor e que sabemos que é amor quando o possuímos, não de outra forma. Você pode estar se perguntando que o autor deva saber o que é o amor. Não temos tal pretensão, mas uma coisa podemos assegurar: quando nos aproximamos de um ser indefeso, dependente e frágil, e o pegamos com todos os cuidados dos nossos dedos para tocá-lo, então sabemos que nenhuma atitude iria sair de nós de modo a agredir ou desrespeitar a vulnerabilidade daquele ser.

Quantas possibilidades existem nos nossos livres-arbítrios, mesmo contraditórios saindo de dentro de um mesmo ser, impossibilitado de ser íntegro, ainda, debatendo-se entre o que deseja, o que pode e o que deve fazer. Que exemplo mais altissonante poderíamos ouvir do que os versos de Chico Buarque e Ruy Guerra no poema da música Fado Tropical retratando o conflito entre as mãos e o coração que perfeitamente nos dão a imagem da razão do fazer em conflito com o sentimento do perdão… “… Mesmo quando as minhas mãos  estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora…  Meu coração tem um sereno jeito  E as minhas mãos o golpe duro e presto  De tal maneira que, depois de feito  Desencontrado, eu mesmo me contesto  Se trago as mãos distantes do meu peito  É que há distância entre intenção e gesto  E se o meu coração nas mãos estreito  Me assombra a súbita impressão de incesto  Quando me encontro no calor da luta <br /> Ostento a aguda empunhadura à proa  Mas o meu peito se desabotoa. E se a sentença se anuncia bruta  Mais que depressa a mão cega executa  Pois que senão o coração perdoa”