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A morte de Saul

Pouco depois que os hebreus saíram do Egito, após os 430 anos de escravidão,
já no deserto, dois meses e pouco após iniciar o êxodo (aproximadamente 1.250
a.C.), os amalecitas os atacam, tentando, com isso, impedi-los de passar pelo
seu território. Sob o comando de Josué, o povo israelita, derrota Amalec (neto
de Esaú), e passa a fio de estada toda a tropa do inimigo.

Neste dia, Javé faz um juramento: “Escreva isso num livro como memória e diga
a Josué que eu vou apagar a memória de Amalec debaixo do céu”, por que ficou
completamente indignado com a ação dos amalecitas de fazerem guerra ao “povo
escolhido”, vindo a prejudicar a chegada dos hebreus à Terra prometida.

Entre os anos de l.030 a 1.010 a.C, no reinado de Saul, primeiro rei de
Israel, é que Javé resolve levar adiante seu plano de vingança, contra Amalec, e
determina Saul como Seu executor: “Assim diz Javé dos exércitos: Vou pedir
contas a Amalec pelo que ele fez contra Israel, cortando-lhe o caminho, quando
Israel subia do Egito. Agora, vá, ataque, e condene ao extermínio tudo o que
pertence a Amalec. Não tenha piedade: mate homens e mulheres, crianças e
recém-nascidos, bois e ovelhas, camelos e jumentos”.

Saul atende à determinação de Javé e ataca os amalecitas, passando a fio de
espada todo o povo. Mas, ao invés de matar, captura a Agag, rei dos amalecitas.
E, além disso, poupa o gado gordo e os cordeiros, só matando os que não tinham
valor.

Javé, pela boca do profeta Samuel, alega não ter gostado da atitude de Saul,
e diz: “Estou arrependido de ter feito Saul rei, porque ele se afastou de mim e
não executou as minhas ordens” (1 Sm 15, 11). E, apesar de Saul ter-se
justificado que o gado e os cordeiros que não tinha matado eram para se
oferecerem em sacrifício a Javé, e que o rei dos amalecitas fora capturado, não
aceita a justificativa, e diz: “Javé arranca hoje de você o reinado sobre Israel
e o entrega a outro mais digno do que você” (1 Sm 15, 28).

Os filisteus reuniram-se para atacar Israel. Diante disso, Saul ficou
desesperado, fazendo de tudo para saber o que lhe aconteceria diante da iminente
guerra. Consultou a Javé, e não obteve nenhuma resposta, resolve, então,
procurar uma necromante, indo até Endor. Junto à necromante, Saul pede para ela
adivinhar o futuro, evocando o espírito de Samuel, que morrera, havia algum
tempo. E Samuel se manifesta, por intermédio da necromante, e repete o que já
lhe havia dito quando vivo, ou seja, que Javé iria entregá-lo juntamente com
seus filhos e seu povo ao inimigo.

Mesmo depois disto, Saul entra em guerra com os filisteus. Foi uma fulminante
derrota, pois os filisteus ganharam a batalha, matando muita gente, entre eles
os filhos de Saul. Os arqueiros atingiram a Saul, e ele, não querendo cair vivo
nas mãos dos inimigos, pede a seu escudeiro que o mate com uma espada, como não
foi atendido, pois o escudeiro se recusou a matar o seu rei, não lhe restou
outra alternativa, pegou a própria espada e lançou-se sobre ela, morrendo em
seguida. Assim, a morte de Saul foi por suicídio.

A segunda versão diferente da morte de Saul, nós vamos encontrá-la em 2 Sm 1,
1-10, quando um homem dizendo-se amalecita relata a Davi a morte
de Saul e seus filhos, da seguinte forma: “Eu estava casualmente no monte Gelboé
e vi Saul apoiado em sua própria lança, enquanto os carros e cavalheiros se
aproximavam. Saul virou-se, me viu, e me chamou. …Então Saul me disse:
‘Aproxime-se e mata-me, pois estou agonizando e não acabo de morrer’. Então
eu me aproximei dele e o matei
, porque eu sabia que ele não iria mesmo
sobreviver depois de caído”.

A terceira versão, da morte de Saul está narrada em 2 Sm 21, 12: “Então Davi
foi pedir os ossos de Saul e de seu filho Jônatas aos cidadãos de Jabes de
Galaad, que os tinham levado da praça de Betsã, onde os filisteus os haviam
enforcado
, quando venceram Saul em Gelboé”.

Até aqui ficamos sem saber como realmente Saul morreu: suicidou-se? A seu
pedido, um amalecita o matou? Ou será que foi enforcado? Três versões diferentes
para um mesmo episódio. Por isso, se dissermos que toda a Bíblia é de inspiração
divina, teremos que admitir que o próprio Deus tenha ditado as três versões, não
há como sair deste absurdo.

No primeiro livro de Crônicas (10, 1-12), é relatada a morte de Saul,
exatamente como a narrada em 1 Samuel, capítulo 31, primeira versão. Entretanto,
nos versículos 13 e 14, foi colocada como causa da morte de Saul, o seguinte:
“Saul morreu por ter sido infiel a Javé: não seguiu a ordem de Javé e foi
consultar uma mulher que invocava os mortos, em vez de consultar a Javé. Então
Javé o entregou à morte e passou o reinado para Davi, filho de Jessé”.

Nessa última narrativa, apesar de ela vir a coincidir com uma anterior, a
causa da morte de Saul não corresponde ao fato ali narrado. E vejam a que
conclusão nos leva essa narrativa. Por ela nós temos a impressão de que Saul
morreu porque não cumpriu a determinação divina de não evocar os mortos, fato
completamente contrário ao acontecido, pois acreditamos que a questão da
infidelidade de Saul que o cronista queria passar seria a de que Saul não tinha
exterminado os amalecitas exatamente como Javé tinha ordenado. Quanto à questão
de não ter consultado a Javé, está narrado que ele consultou-O. Nesse caso, deve
ter havido uma interpolação, para associar a morte de Saul ao fato de que ele
teria ido consultar a necromante, interpolação esta, com o objetivo de se fazer
da morte de Saul um castigo de Javé, por ele, Saul, ter-se comunicado com o
espírito Samuel, já falecido.

Quem quer que busque a verdade, encontrará essas e muitas outras incoerências
na Bíblia. Mas, ainda existem muitos que querem, a ferro e fogo, manter a Bíblia
como sendo toda ela de total inspiração divina. Não se apercebem de que, com
esse exagero, o número dos incrédulos aumenta cada vez mais. E esse número só
não é maior, porque ainda existem muitas pessoas que preferem serem
encabrestadas por líderes religiosos, os quais insistem, a todo custo, em fazer
com que, por medo de Deus, não se ponham a questionar alguns pontos da Bíblia,
sob o argumento de ser ela de “inspiração divina”, esquecendo-se de que foram os
homens que a escreveram e nela colocaram seus pensamentos conforme ao seu
conhecimento da época, incluindo nela lendas, coisas da mitologia antiga,
misturadas, é óbvio, as muitas revelações provindas de Deus. E é pelo “temor” de
desagradarem a Deus, que, quando buscam a verdade que possa estar contida na
Bíblia, não enxergam essas falhas dos seus autores. E isso, com a complacência
de muitos de seus dirigentes que, muitas vezes, apercebem-se dessas falhas, mas
preferem o silêncio – para manterem na ignorância interessada os seus fiéis – ao
esclarecimento deles, pois que tal esclarecimento poderia causar prejuízos aos
interesses particulares desses dirigentes.

Entretanto, temos por nós, que se Deus dotou o homem de inteligência, é para
que ele a use em plenitude, não podendo nós, pois, agir como se fôssemos
“avestruzes”, escondendo nossa “cabeça” diante da verdade!

Fev/2002.

Bibliografia:

  • Bíblia Anotada = The Ryrie Study Bible/Texto bíblico: Versão
    Almeida, Revista e Atualizada, com introdução, esboço, referências laterais e
    notas por Charles Caldwell Ryrie; Tradução de Carlos Oswaldo Cardoso Pinto,
    São Paulo: Mundo Cristão -, 1994
  • Bíblia Sagrada, Edição Pastoral, Sociedade Bíblia Católica
    Internacional e Paulus, 14a. impressão, 1995;
  • Bíblia Sagrada, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 8ª edição, 1989,
    para as datas.