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O espírito de Roustaing

Anos atrás, fui convidado para fazer um trabalho doutrinário
numa federação espírita de um Estado brasileiro. Não, não haviam nos chamado por
simpatia. Tudo não passava de manobra, impetrada pelo presidente da casa e seus
auxiliares. Na época, o jornal A Voz do Espírito mantinha um representante na cidade
e ele denunciava constantemente a situação de penúria do movimento local. Isso irritava
os federativos que resolveram calar a boca do cidadão. Daí, armaram um delicado
esquema, para conseguir o fim daquilo que consideravam uma heresia.

Não vamos descer aos detalhes rasteiros da ação. Mas, a situação de atraso dos
centros espíritas, mostrava-se algo incomum. Era muito difícil identificar conceitos
verdadeiramente kardequianos em tudo o que se via. Algumas poucas casas do interior,
pareciam melhor orientadas. Mas no geral, o movimento espírita estadual, era uma
lástima. Uma coisa me chamou a atenção: o presidente da federação declarava-se abertamente
um seguidor de Roustaing. E assim pude conviver com o espírito do roustainguismo
por alguns dias.

Para quem não sabe, Jean Baptiste Roustaing foi um advogado da cidade de Bordeaux
(França), que viveu na época de Allan Kardec. Ele, e seguidores, constituíram-se
inimigos do Codificador. A coisa foi mais ou menos assim. Roustaing tinha um diploma
que lhe facilitava fazer idéia um tanto elevada da sua pessoa; coisa ainda muito
comum nos “mestres” do nosso tempo. Ao ver o grande interesse que o Espiritismo
despertava na sociedade da época, ele resolveu também participar. Mas escolheu o
caminho errado. Com a ajuda da médium Madame Colignon, ele conseguiu escrever alguns
livros, chamados hoje “Os Quatro Evangelhos de Roustaing”.

Até aí tudo bem. Cada um escreve o que quer. Mas, em termos de Espiritismo, a
coisa não é bem assim. Allan Kardec havia estabelecido normas cautelosas, para se
aceitar teses vindas do mundo espiritual.

Os livros de Roustaing eram o catolicismo disfarçado de Espiritismo. O advogado
apresentou suas teses ao Codificador, que não lhes deu a importância que o autor
julgava ter. Claro, não poderia ser diferente, tamanho o número de tolices que existiam
nos ditados dos Espíritos. Muito educado, Kardec não condenou a obra, mas afirmou
que os diversos volumes, poderiam ser resumidos a dois ou apenas um e que o futuro
dessas idéias estaria ligado ao que diria delas a universalidade dos ensinos dos
Espíritos. Isso foi como uma ofensa. Os tais escritos eram assinados pelos apóstolos
de Jesus, assistidos nada mais nada menos do que pelo profeta Moisés. Roustaing,
motivado pelo espírito de grandeza de sua personalidade, não suspeitou. Ele (ou
os Espíritos que o assistiam) deram o nome a seus livros de “Revelação da Revelação”.

As absurdas teorias de Roustaing vieram achar lugar no Movimento Espírita Brasileiro.
Foram e são divulgadas pela toda poderosa Federação Espírita Brasileira – FEB, a
“casa máter” no país, um respeitável “vaticano” dos que se dizem seguidores de Allan
Kardec. Com a ajuda de médiuns famosos (e até certo ponto inocentes) essas idéias
se espalharam no movimento, caracterizando-o por condutas semelhantes ao que se
vê na mentalidade católica. Hoje, o roustainguismo é o espírito de sistema, a que
muita gente de consciência, por conveniência (ou em nome da caridade) evita combater.

Certas federações, ligadas à FEB, comportam-se como verdadeiras dioceses. E,
seus dirigentes, como se fossem bispos. Nessa minha interessante visita federativa,
vi coisas incomuns. No momento em que o tal presidente anunciava a abertura da sessão
de estudos, todos se colocavam de pé. Depois, finda a prece, os presentes se sentavam.
Em algumas casas, havia hinários destinados à cantoria que se estabelecia antes
das reuniões públicas (prática que aos poucos se espalha no país). Nos trabalhos,
estando presente uma “autoridade federativa”, era ela quem primeiro dirigia a palavra
ao povo. Tudo como no misticismo católico, obedecendo a convenções estabelecidas
pelo sistema vigente. Nada a ver com as instruções de Allan Kardec.

O que caracteriza o routainguismo em qualquer lugar que se apresente, é a ausência
de regras fundamentadas na Codificação ou no mais elementar bom-senso. O misticismo
e o domínio de Espíritos inferiores impera. As pessoas têm certa noção do que é
o kardecismo, mas não o seguem em espírito e verdade. Todo este atraso é de responsabilidade
de federações coniventes e da própria FEB, que faz de conta que tudo está muito
bem. E, não se pode deixar de imputar responsabilidades aos oradores e médiuns conhecidos,
que ajudam alimentar as fantasias, dizendo sempre que tudo está maravilhoso; que
os Espíritos disseram isso e aquilo; que deve se seguir assim e que o futuro será
brilhante. E por aí vai.

Isso me lembra uma ocasião em que conhecemos um dirigente de centro espírita
(30 anos de atividades), que colocou na cabeça a idéia de que substituiria Chico
Xavier. Segundo inspiração do “Alto”, o médium iria desencarnar e esse companheiro
continuar a tarefa. Bem, em alguns meses, já estava treinando psicografia, usando
paletó e penteado iguais aos do médium mineiro. O Espírito responsável pela coisa,
assinava José de Anchieta, um padre como o de Chico. A fascinação era evidente.
Tudo fizemos para convencer o sujeito de que era uma armadilha, mas ele insistia
dizendo que estávamos obsediados, querendo atrapalhar o que julgava ser um grande
feito. E os seus trinta anos de Espiritismo lhes davam a doce ilusão de que tinha
experiência suficiente para dispensar conselhos amigos.

Bem, não havia outra saída. Como estava fascinado por Chico Xavier, tentamos
um último recurso: fazê-lo falar com Chico sobre o tal trabalho. Ora, todo mundo
pensa que médiuns famosos estão em contato constante com Espíritos esclarecidos
e o que dizem pode ser tomado como verdadeiro. Infelizmente, isso não é verdade.
No caso de Chico, por exemplo, muitas coisas que disse ao longo da sua vida monástica,
foram tomadas como verdades irretocáveis por alguns fanáticos seguidores; ainda
que contrariasse frontalmente princípios da Codificação. É assim também, com Divaldo
Pereira Franco e similares. E lá se foi nosso amigo, em direção à cidade mineira
de Uberaba. Depois de esperar naquela interminável fila, ouviu do médium, que estava
tudo bem e que deveria continuar o trabalho. Era o que queria.

Evidentemente, não deve ter contado detalhes da história para Chico. E, nem que
quisesse isso seria possível. Verdadeiras feras cercavam o médium, arrastando literalmente
quem se detivesse por mais de 20 segundos ao seu lado. O resultado foi terrível.
A fascinação destruiu a vida dessa criatura que, em termos espirituais, ficou enfermo
até o final de sua vida. Como dizem os conciliadores chiquistas: devia ser algum
resgate de outras vidas. É, pode ser… mas, prefiro a sabedoria popular: “pimenta
nos olhos dos outros é refresco”.

Dias atrás, um leitor escreveu falando do orador que visitou sua casa espírita
e fez uma palestra dizendo que Jesus nunca havia encarnado; que seu corpo era fluídico
e que ele jamais conhecera o pecado. Certamente deve ter afirmado também, que Maria
(a mãe do Mestre) era virgem; que a carne é suja e outras tolices próprias do catolicismo
e do roustainguismo. Uma amiga do nordeste, teve a mesma desagradável surpresa.
A pedido da federação local, abriu a casa que dirige para um expositor da Federação
Espírita Brasileira, que visitava a cidade. Foi horrível. Ele resolveu ensinar às
pessoas, catolicismo misturado com Espiritismo. Isso é, a doutrina de Jean Baptiste
Roustaing.

Tudo o que vimos acima, condutas, procedimentos, conselhos e conseqüências, chama-se
roustainguismo. É a doença do movimento espírita e que se espalhou por outros países,
onde a FEB e emissários distribuem a semente daninha. Dirigentes e grupos sérios,
que se orientam pela doutrina de Allan Kardec, não devem permitir que tais conceitos
sejam divulgados entre o povo; mesmo que os oradores sejam ligados a federações.
Isso, de maneira alguma garante a qualidade do que dizem. Aconselha-se conversar
com convidados desconhecidos, antes de proferirem palestras. É melhor prevenir,
do que remediar. Se você puder, leia Os Quatro Evangelhos de Roustaing. É muito
importante saber de onde nasceram os problemas que atormentam os centros espíritas
da atualidade. E, se tiver tempo, não deixe de conhecer a lendária obra, “Brasil:
Coração do Mundo, Pátria do Evangelho”. Elas vieram da mesma fonte espiritual.

06/08/99