O Mundo Sem Fim
Fernando Guedes de Mello
Nas proximidades do ano 1.000 corria o boato de que mundo estava prestes a acabar. Num mosteiro, os monges consultavam ansiosamente as Escrituras. Como se trata de vida comunitária, havia o monge bibliotecário, o monge cozinheiro, o monge jardineiro e assim por diante. O monge jardineiro, mais velho, era tido por todos como santo. Um belo dia, enquanto cuidava do jardim, eclodiu uma correria geral dos monges para a capela.
– O que está acontecendo?, perguntou ele a um jovem monge que participava da correria.
– O senhor não está sabendo? O Frei Fulano (autoridade máxima em Escrituras) chegou à conclusão que o mundo vai acabar dentro de meia hora. O senhor não vem rezar na capela?
O velho monge ficou em silêncio por alguns instantes e respondeu:
– Não, vou esperar o fim do mundo aqui mesmo cuidando das minhas rosas!
Não se pode falar de um fim sem ter em mente um início. Tudo que começa, acaba; e tudo que acaba é porque teve um começo. Assim, de acordo com o velho paradigma, se no passado Deus criou esse mundo, então ele acabará um dia no futuro. No entanto, o termo hebraico bereschit para criação, usado no Gênesis, tem um duplo significado: na Septuaginta, que foi mais utilizada pelos cristãos, o in principio tomou o sentido de “um começo no tempo”, o instante zero da história; mas em hebraico significa “fundamento”, “base”, um princípio atemporal. Na medida em que a primeira interpretação começou a prevalecer entre os cristãos, surgiram as preocupações apocalípticas. Afinal de contas, tudo que tem um começo tem também um fim. Com a idéia de um universo criado por Deus no tempo não haveria de ser diferente.
Vale a pena comparar essa imagem de Deus com a visão hinduísta da Trindade. De acordo com os hindus, são três os aspectos do Supremo: Brahma, o Criador; Vishnu, o Preservador; e Shiva, o Destruidor/Reconstrutor. Os cristãos sempre tiveram a maior dificuldade em aceitar um aspecto destruidor de Deus, ligado ao pecado, à decadência e à morte. Preferem delegá-lo a um “agente do mal”, esquecendo-se de que ele também é criatura de Deus e, como tal, tem o importante papel de “promotor da corte celeste”. Para os hindus, trata-se de um aspecto fundamental para o equilíbrio da vida no mundo. Shiva destrui para renovar.
A partir do sentido de atemporalidade de beréschit, poderíamos concluir que: (1) não existe um começo (e nem um fim) para o universo; (2) o mundo surge de uma “autocontenção” do Absoluto (auto-sacrifício cósmico); (3) o universo é recriado a cada instante e segue leis que lhe são intrínsecas (nenhuma necessidade de um Deus antropomórfico ficar intervindo em sua própria obra); (4) existe um processo de complexificação / conscientização crescente da vida no universo (ver Teilhard de Chardin); (5) com o aparecimento do homem, torna-se possível a eclosão da autoconsciência no mundo (o universo transformando-se no grande espelho em que Deus se vê, o objetivo mesmo da Criação). Nessa visão, nada impede que tenha havido um “big-bang” há bilhões de anos e que haverá o seu reverso, um “big-crunch”, daqui a outros tantos bilhões de anos. Um universo pulsante, com “big-bangs” e “big-crunches” se sucedendo uns aos outros, de acordo com a ciência e a cosmologia hindu. Um caleidoscópio cósmico! À cada volta, uma nova configuração. A própria dança de Shiva Nataraj, o deus-dançarino cósmico.
Portanto, o melhor é ver o universo como uma criação contínua, começando e terminando a cada instante, sem preocupações com um “fim do mundo” ou “juízo final”. O presente é o único tempo real em que Deus se manifesta. Quando Jesus, em resposta aos judeus, afirmou: Em verdade, em verdade vos digo: antes que Abraão fosse, Eu Sou (Jo.8,58), não estava fazendo autopromoção e sim formulando algo muito sutil. Ao contrário do que se imagina, os judeus não entenderam sua sutileza (e parece que os cristãos ainda hoje também não). Apenas soou-lhes como algo herético. A frase gramaticalmente correta seria: “Antes que Abraão fosse, eu era”, mas como está no Evangelho não faz sentido ao senso comum. Na verdade, Jesus estava formulando o que o Zen chama de koan, visando quebrar o raciocínio lógico e linear de seus interlocutores. Os judeus na narrativa estavam se referindo orgulhosamente ao seu glorioso passado de povo eleito. Com sua resposta, Jesus jogou-os de cara no presente, único tempo em que Deus pode realmente se manifestar.
Cristo fez-se homem para nos tornarmos o que, no fundo, sempre fomos – Cristos: Mas, eu já não vivo: é Cristo que vive em mim (…) Meus filhinhos, sofro de novo por vós como dores de parto, até que o Cristo seja formado em vós (Gal.2,20; 4,19). Isto não se dará num futuro remoto, mas no presente. A anunciada segunda vinda de Cristo não será exterior e ostensiva, mas interior e íntima. Não depende de um “final dos tempos”. É agora ou nunca!