O Outro Lado do Quadro-Negro
A escolha do título “O outro lado do quadro-negro” como tema desse trabalho
começou a se definir no interior da sala de aula, em decorrência de discussões
durante as aulas da Professora Drª Maria Lucia Marcondes Carvalho Vasconcelos,
sobre o discurso pedagógico.
A expectativa de nossa sociedade, quanto à educação, é a preparação de
cidadãos/alunos para a vida e sua formação para o exercício profissional, porém
observamos vários fatores que têm desmotivado professores e alunos nesse
processo, dentre os quais salientamos:
- a falta de condições materiais à escola, principalmente à escola pública de
1º e 2º graus; - o sentimento de impotência, gerado pela ideologia decorrente de um sistema
sócio-econômico baseado no desejo (ganância?) do lucro fácil e rápido, em
detrimento da qualidade e dos objetivos a que se propõe a educação; - a falta de condições instrumentais do professor, que lhe garantam a
capacitação adequada para o exercício profissional.
Em busca de soluções que levem modificações ao ensino, ressaltamos a
importância daquelas que possibilitem a valorização e o aperfeiçoamento do
professor, devido ao seu papel direcionador na relação pedagógica, de inegável
relevância política e social.
Dentro desse contexto, torna-se imprescindível a participação das
universidades, criando novas metodologias, levantando e discutindo propostas
para a melhoria da qualidade da educação, cabendo à sociedade a decisão quanto à
efetivação das mudanças.
Os valores e a realidade da educação variam conforme as tendências
sócio-históricas que a envolvem, podendo transformar a função de educar em um
simples ato mecânico, rotina de sala de aula. Conseqüentemente, o professor deve
manter-se atento à sua maneira de ser e agir enquanto profissional.
O reconhecimento da importância do professor no desempenho de seu papel de
educador não depende exclusivamente dele, mas principalmente da escola como
instituição social, o que somente se efetiva em decorrência dos valores
determinados pela sociedade.
2 OBJETIVO
Esta pesquisa tem como objetivo final analisar o discurso pedagógico. A
partir das reflexões realizadas em sala de aula, sobre o professor diante de sua
imagem profissional, o grupo partiu da premissa de que a auto-estima do
professor estaria diretamente ligada à questão salarial, motivo pelo qual a
mesma revelar-se-ia maior nos professores de 3º grau e iria diminuindo nos de 2º
e 1º graus.
De igual modo, buscamos investigar o discurso pedagógico enquanto reflexo do
desempenho do professor, procurando, através da análise do discurso e da melhor
compreensão dos problemas da área educacional, contribuir, ainda que
minimamente, para a melhoria da qualidade do ensino das escolas e universidades
brasileiras.
3 METODOLOGIA
A metodologia para a coleta de dados baseou-se na entrevista pessoal,
aplicada através de um questionário objetivo sobre a visão do professor a
respeito de sua própria carreira.
Essa entrevista foi realizada com 26 (vinte e seis) professores, de ambos os
sexos, da rede pública e privada, atuantes em qualquer área, pertencentes a
todos os graus, que tivessem no magistério uma experiência mínima de 05 anos.
O questionário não identifica o professor, nem a instituição para a qual ele
trabalha, conforme Anexo.
Os dados coletados foram submetidos a uma análise quali-quantitativa. A linha
básica para a realização da análise qualitativa foi calcada na análise do
discurso, especificamente o discurso pedagógico.
4 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
a) O DISCURSO PEDAGÓGICO
A teoria da Análise do Discurso que utilizamos para o estudo das falas dos
entrevistados segue a linha de tendência européia. Essa linha de tendência
apóia-se nos estudos de Bakhtin, que nos apresenta uma abordagem nova da
linguagem, ao afirmar que a matéria lingüística é apenas uma parte do enunciado
e que existe também uma outra parte, não-verbal, que corresponde ao contexto da
enunciação.
Ao ser atribuído valor ao contexto do enunciado, este passa a não ser mais
considerado ato individual, pois o indivíduo não estaria constituindo sozinho os
significados de seu discurso. Segundo Brandão, essa visão da linguagem como
interação social, em que o Outro desempenha papel fundamental para determinar o
significado do que se diz, posiciona a enunciação individual num contexto mais
amplo, revelando as relações intrínsecas entre o lingüístico e o social.
Para Bakhtin,
“a palavra é o signo ideológico por excelência, pois, produto da
interação social, ela se caracteriza pela plurivalência. Por isso é o lugar
privilegiado para a manifestação da ideologia; retrata as diferentes formas de
significar a realidade, segundo vozes, pontos de vista daqueles que a
empregam. Dialógica por naturaza, a palavra se transforma em arena de luta de
vozes que, situadas em diferentes posições, querem ser ouvidas por outras
vozes.” (Bakhtin, 1979).
O discurso seria lugar de conflito, de confronto de idéias, em que as
condições sócio-históricas passam a exercer papel fundamental na constituição
dos significados que são produzidos.
Para compreendermos o discurso pedagógico, torna-se necessário analisar o
contexto social que permite sua produção, o lugar que asociedade destaca para o
professor e como o professor nele se insere. Segundo Pêcheux, hános mecanismos
de toda formação social regras de projeção que estabelecem a relação entre as
situações concretas e as representações dessas situações no interior do
discurso.
Qual seria, portanto, a relação entre o discurso do professor e a sociedade?
A nossa sociedade concede ao professor o lugar de autoridade, e autoridade
que detém o saber. Esse contexto sócio-histórico permite que seja estabelecida
para o professor uma posição privilegiada em relação aos seus alunos, em que o
sujeito se pretende único, e porque entende-se dono do conhecimento, faz uso do
discurso autoritário. O sujeito que fala é um sujeito ideológico. “Sua fala é
um recorte das representações de um tempo histórico e de um espaço social. Dessa
forma, como ser projetado num espaço e num tempo e orientado socialmente, o
sujeito situa o seu discurso em relação aos discursos do outro.” (LUCKESI,
1994)
“Em geral, e a não ser numa minoria dos casos, parece que o senso comum
é o seguinte: para ser professor no sistema de ensino escolar, basta tomar um
certo conteúdo, preparar-se para apresentá-lo ou dirigir o seu estudo, ir para
uma sala de aula, tomar conta de uma turma de alunos e efetivar o ritual da
docência: apresentação de conteúdos, controle dos alunos, avaliação da
aprendizagem, disciplinamento, etc. Ou seja, a atividade de docência tornou-se
uma rotina comum, sem que se pergunte se ela implica ou não decisões
contínuas, constantes e precisas, a partir de um conhecimento adequado das
implicações do processo educativo na sociedade.” (LUCKESI, 1994)
A prática pedagógica diária pouco tem levado em conta a reflexão crítica
sobre o que vem a ser o conhecimento e o seu processo. O senso comum pedagógico
manifesta um entendimento idealista do que seja o conhecimento. É como se o
conhecimento não tivesse história e não tivesse acertos e erros. O que se diz é
assumido como se sempre tivesse sido assim. No entanto, o conhecimento tem
história, está eivado de desvios por interesses de uns ou de outros. O senso
comum interessa à situação conservadora da sociedade em que vivemos, em função
de que ela não possibilita o surgimento de uma “massa crítica” de seres humanos
pensantes e ativos na sociedade. O senso comum é o meio fundamental para a
proliferação da manipulação das informações, das condutas e dos atos políticos e
sociais dos dirigentes dos setores dominantes da sociedade.
Este trabalho questiona esse senso comum, procurando esclarecer o papel do
professor e sua real importância para a sociedade.
b) O PAPEL DO PROFESSOR
“O trabalho alienado é aquele no qual o produtor não pode reconhecer-se
no produto de seu trabalho, porque as condições desse trabalho, suas
finalidades reais e seu valor não dependem do próprio trabalhador, mas do
proprietário das condições do trabalho. Como se não bastasse, o fato de que o
produtor não se reconheça no seu próprio produto, não o veja como resultado de
seu trabalho, faz com que o produto surja como um poder que o domina e o
ameaça”.(CHAUÍ, 1995)
O ser humano é prático, ativo, uma vez que é pela ação que modifica o meio
ambiente que o cerca. É um ser que age no contexto da trama das relações
sociais, que, em última instância, caracteriza-se pela posse ou não de meios
sociais de produção.
Segundo Luckesi, a ação humana exercida coletivamente sobre a natureza,
possibilita ao ser humano compreender e descobrir o seu próprio modo de agir. “A
ação prática sobre a realidade desperta e desenvolve o entendimento, a
capacidade de compreensão e a emergência de níveis de abstração mais
complexos”.(LUCKESI, 1994)
Paulo Freire associa o conceito de ação ao conceito de compromisso. Segundo
ele, compromisso é decisão lúcida e profunda do homem em usar sua capacidade de
agir e refletir para se inserir criticamente no mundo numa atitude objetiva de
compreensão da realidade, de luta para transpor os limites impostos pelo mundo,
e atuando sobre ele, transformá-lo. Essa inserção crítica produz efeitos no
exercício profissional que contribuem para o bem estar coletivo.
Porém, historicamente, o ser humano é dimensionado tanto pela complexidade,
sagacidade, inteligência, entendimento, quanto pela alienação, pelo afastamento
de si próprio, pois que ele é construído pelo trabalho que ao mesmo tempo
constrói e aliena. Não podemos separar esses dois elementos, o criativo e o
alienado. Esta é a enorme contradição, o trabalho que cria e aliena. Portanto,
torna-se normal nos discursos, a contradição. A personalidade humana é
contraditória como contraditória é a sociedade. “O ser humano não é o que ele
diz de si mesmo, mas aquilo que as condições objetivas da história possibilitam
que ele seja. A alienação surge, individualmente, pela alienação do produto do
próprio trabalho, da própria ação.” (CHAUÍ, 1995)
Qual seria, portanto, o papel do professor e como ele estaria enfrentando
essa dualidade de trabalho que constrói e aliena?
O professor, segundo Luckesi (1994), é um ser humano construtor de si mesmo e
da história através da ação, é determinado pelas condições e circunstâncias que
o envolvem. É condicionado e condicionador da história. Tem um papel específico
na relação pedagógica, que é a relação de docência.
Na práxis pedagógica, o educador é aquele que, tendo adquirido o nível de
cultura necessário para o desempenho de sua atividade, dá direção ao ensino e à
aprendizagem. Ele assume o papel de mediador entre a cultura elaborada acumulada
e em processo de acumulação pela humanidade, e o educando.
Ele exerce o papel de um dos mediadores sociais entre o universal da
sociedade e o particular do educando. Para tanto, o educador deve possuir
algumas qualidades, tais como: compreensão da realidade para a qual trabalha,
comprometimento político, competência no campo teórico de conhecimento em que
atua e competência técnico-profissional.
A ação docente tem sentido e significado crítico, consciente e explícito. A
alienação de seu trabalho ocorre quando ele ignora a realidade à sua volta, e
reduz seu trabalho a uma rotina de sala de aula, cujo objetivo restringe-se à
mera transmissão de informações, postura que não condiz com seu papel de
educador.
Educar é, segundo Freire (1979), completar, porque o homem é ser inacabado,
que sabe disso e por isso se educa. O saber se faz através de uma superação
constante, por isso não pode o professor se colocar na posição do ser superior
que ensina um grupo de ignorantes, mas sim na posição humilde daquele que
comunica um saber relativo (é preciso saber reconhecer quando os educandos sabem
mais e fazer com que eles também saibam com humildade).
O discurso autoritário perde seu sentido na prática pedagógica. Segundo
proposta de Eni (1987), o discurso do professor deve se tornar polêmico, “efeito
de sentidos e não transmissão de informação”. Tornar o discurso polêmico é “ser
ouvinte do próprio texto e do outro”. A transformação do discurso pedagógico
possibilitará a revisão da práxis pedagógica, que sairá de dentro das escolas
para as ruas, invadindo a vida, o mundo. A postura do professor influencia a
postura do aluno, e o seu posicionamento de ouvinte, de aceitação da polêmica no
diálogo, abrirá o caminho para a crítica e a conseqüente discussão da realidade.
O discurso autoritário não cria contexto para a transformação. serve de
instrumento para a acomodação, porque condena o homem à repetição histórica,
impedindo a polêmica que questione o sentimento de impotência do homem frente à
sua realidade, impedindo o resgate da confiança de que o homem pode criar no
presente ações que concretizem um futuro novo, que rompa com a tradição do
passado.
O discurso autoritário é surdo. O debate que levanta sobre a realidade e os
problemas enfrentados só transfere responsabilidades, e por transferir
responsabilidades, não é capaz de mobilizar a sociedade. Se a discussão gira em
torno dos problemas educacionais, afirma que o problema é de responsabilidade do
aluno que não estuda mais, que não demonstra interesse pelas aulas, da direção
da escola que não orienta ou não apóia adequadamente os professores, dos
políticos que impõem diretrizes sem ouvir os profissionais da educação, ou dos
professores que não se preparam devidamente para exercer o magistério, etc. É um
discurso que impede a organização dos homens e sua visão crítica sobre os
problemas, impedindo ações eficazes.
O discurso polêmico inverte os efeitos do discurso autoritário. Ele assume a
responsabilidade individual pela transformação da realidade coletiva, ao
permitir que os homensse ouçam, que os problemas sejam discutidos racionalmente,
de forma objetiva, possibilitando a conscientização da realidade, e a enumeração
dos obstáculos. Amadurecida a compreensão dos problemas, as causas são
relacionadas e os homens podem então elaborar planos de ação conjunta, que
viabilizem ações que levem à real solução dos problemas encontrados.
O objetivo da prática pedagógica é promover o homem a sujeito de sua própria
educação. Despertar no homem a consciência de que ele não está pronto, despertar
nele o desejo de se complementar, capacitá-lo ao exercício de uma consciência
crítica de si mesmo, do outro e do mundo.
Segundo Jean Foucambert (1994), todo aprendizado é uma forma de resposta ao
desequilíbrio, portanto, desenvolver a consciência crítica acerca do nosso valor
como seres humanos e de nosso trabalho enquanto profissionais, é imprescindível
para o estabelecimento do equilíbrio na auto-estima humana. A baixa na
auto-estima impede o desenvolvimento das potencialidades do homem, reduz sua
capacidade de agir porque o faz desacreditar de seu valor e da importância de
seu trabalho, portanto se relaciona ao não aprendizado do valor de si mesmo. Por
outro lado, a auto-estima elevada se relaciona ao não aprendizado do valor do
outro, o que causa distanciamento entre os homens, impede a troca de
experiências, o crescimento conjunto, e a união de esforços para a solução de
problemas comuns, desvirtuando a finalidade real do trabalho, que é tanto servir
à promoção individual quanto ao bem estar coletivo.
5 ANÁLISE QUANTITATIVA DOS DADOS COLETADOS
Apenas 32% dos entrevistados reclamaram diretamente de má remuneração.
Entretanto, se somarmos a esse valor 6% dos professores que reclamam que se
reciclar custa caro e que outros 14% acreditam não serem reconhecidos
profissionalmente, temos o total de 52% de professores assumindo a fala de
mal-remunerados. Os outros 48% falam indiretamente em seus discursos sobre o
assunto.
Somando-se os 32% que consideram a profissão mal remunerada, os 18% que estão
decepcionados com a educação, os 14% que acreditam não haver reconhecimento
profissional e os 6% que lecionam em busca de um complemento salarial, chega-se
a um total de 70% de entrevistados que se posicionam como insatisfeitos
profissionalmente, fato reforçado pelas respostas à pergunta se o professor
recomendaria ou não a profissão para seu filho: 35% disseram sim, 46%, não, e os
demais 19% preferiram não responder, ou seja, 65% não recomendaram a profissão
aos seus filhos.
6 ANÁLISE QUALITATIVA DOS DADOS COLETADOS
Transcrevemos a seguir trechos das falas dos entrevistados e suas respectivas
análises:
“Eu me considero (realizado), sim. faço exatamente o que gosto. não olho
as cifras.”
O discurso do sujeito reproduz a fala alienante sobre a questão salarial,
impedindo a conscientização do profissional acerca do valor de seu trabalho, que
necessita ser adequadamente remunerado, condição imprescindível para o
equilíbrio em sua auto-estima. Essa fala é ideológica, pois afasta do indivíduo
a possibilidade de reivindicação.
(Você recomendaria o magistério ao seu filho?) “…só se for muito
predestinado como eu.”
Ao afirmar sua predestinação ao magistério, o sujeito faz uso de um discurso
que destitui a escolha profissional de seu caráter de liberdade, não a
relacionando a uma opção consciente e crítica. É uma fala que procura manter a
ordem social, que estipula para o homem uma posiçãopredestinada, impedindo o
questionamento dessa ordem e sua mudança. Tal discurso causa um sentimento de
impotência frente ao presente e uma acomodação quanto ao futuro.
“Minha expectativa quanto à profissão, na época em que me formei, em
termos de ideal, acho que aumentou. Eu ainda acredito nesta profissão. É uma
pena que muitos não acreditem.”
Esse discurso vincula profissão a ideal, desconsiderando que professores são
profissionais, com direito à satisfação de suas expectativas, que dizem respeito
a salário e condições de trabalho adequados, não a ideais. É um discurso
eufórico, que exacerba a importância do trabalho, em detrimento da discussão
sobre as circunstâncias adversas em que esse trabalho é produzido, levando os
profissionais a adotarem uma atitude de abnegação, de resignação.
“Sim (considera-se realizado profissionalmente), só sonho em um dia poder
ganhar bem e fazer jus ao meu trabalho.”
O discurso acima revela um sujeito consciente de que seu salário não
corresponde ao seu desempenho profissional. o sujeito apresenta auto-estima
equilibrada, pois reconhece seu valor e de seu trabalho. a palavra sonho revela
que as dificuldades para a concretização do desejo de ganhar bem não podem ser
vencidas individualmente, mas dependem das circunstâncias históricas
determinadas pela sociedade, motivo pelo qual seu direito salarial encontra-se
reduzido a uma esperança salarial (o que é menor ainda que uma expectativa).
“As cinco profissões básicas são: o professor, o político, o advogado (o
homem das leis), o médico e o arquiteto. O professor já existia desde a Grécia.
Era o pedagogo. Sabia que o pedagogo era escravo naquela época? O professor
sempre teve isso de escravo. Começou daí.”
Ao comparar sua profissão à do escravo, o sujeito se coloca numa posição
hierarquicamente inferior na relação de poder (só recebe ordens e possui somente
deveres). Esse discurso revela uma ideologia alienante, na qual o sujeito se vê
sem liberdade de escolha, sem opção de mudança, portanto, acomodado, tendo em
vista que a realidade lhe é apresentada como fruto de um passado que tende a
perpetuar-se.
“Os tecnocratas estão lá em cima e dizem que tem de ser assim, mas eles
não têm a prática que o professor tem, e o professor nunca é consultado para
saber o que poderia ser feito. Nunca. Quando vem, vem a ordem e acabou.”
Esse é o discurso autoritário reproduzido pelo sistema, no qual os políticos
(tecnocratas) não ouvem a opinião do povo, nem a solicitam, tanto em relação à
educação quanto aos demais setores de interesse da sociedade. Esse comportamento
é fato social, reproduzido freqüentemente nas relações humanas, em casa, no
trabalho, na escola, impedindo a liberdade do sujeito de participar, criticar
sua própria atuação e a do outro, cobrar melhor desempenho de ambos e construir
mudanças que viabilizem uma sociedade onde haja oportunidade de crescimento para
todos os homens.
“Eu não queria sair do magistério. em termos de remuneração era superior
(o outro emprego), mas quando nos tornamos efetivos a gente se torna mais
estável, e naquela época tinha acabado de passar no concurso.”
O discurso revela uma prática social: usar a estabilidade no emprego para
compensar o baixo salário pago ao profissional, visando mantê-lo trabalhando,
mesmo estando insatisfeito profissionalmente.
“Às vezes eu passo no corredor, vejo os professores dando aula, tenho
vontade de entrar na sala e me intrometer, porque as meninas têm dificuldades de
lidar com os alunosindisciplinados. Eu grito e ai do demônio que continuar
bagunçando. Pelo menos é assim que eu faço com os meus. Olha, eles aprendem
muito mais que os outros alunos das outras classes, e todos os pais me adoram.”
O sujeito se utiliza de um discurso autoritário que estabelece para si uma
posição privilegiada em relação ao aluno e aos demais profissionais da escola, e
o faz com a aprovação da comunidade em que está inserido. Esse discurso reproduz
a ideologia que aliena os envolvidos no processo educacional, ao impedir que o
homem se posicione como sujeito no mundo, capaz de criticar tanto sua atuação
quanto a do outro.
“Há 20 anos o aluno era compenetrado, responsável e queria aprender.
Atualmente existe uma nova clientela, por isso é necessário o professor se
atualizar para se adequar à nova realidade. Hoje o professor tem que encontrar
diferentes formas para conseguir passar sua experiência. As relações entre as
pessoas estão mais frias em conseqüência do número grande de alunos na sala de
aula. O professor tem que se adaptar a essas novas mudanças.”
Nesse discurso o professor é situado numa posição hierarquicamente superior
ao aluno. O significado constituído por esse discurso é ideológico, pois nele o
aluno é apresentado como receptor da experiência do professor e é
responsabilizado pelas dificuldades atuais enfrentadas por ele ao tentar
“passar” sua experiência. O discurso afirma que devido ao fato do aluno não ser
mais compenetrado, responsável e nem querer aprender, o professor precisa se
atualizar para se adequar à nova realidade e a essa nova clientela. O efeito
dessa ideologia é levar o indivíduo a conviver com o problema, sem questionar
suas causas, e conseqüentemente, sem encontrar a solução.
“A escola pública é um laboratório. Ela me permitiu errar.”
O sentido implícito na afirmação de que a escola pública permite errar é o de
que a escola da rede privada não o permite, ou seja, o desempenho do
profissional varia de acordo com o público alvo de seu trabalho. o sujeito que
fala é ideológico, e essa sua fala é recorte de um contexto social que pratica
discriminação social nas relações de trabalho. esse comportamento, consentido
pelo discurso, mantém ideologicamente a divisão e a discriminação das classes
sociais, alimentando as injustiças.
“(…) Eu seguiria o mesmo processo, com o mesmo entusiasmo,
principalmente com o construtivismo. Eu ainda não entendi direito o que é, mas
se pudesse recomeçar, eu aplicaria isso na sala de aula.”
Esse discurso é ideológico. Seu objetivo é impedir a consciência da
necessidade de ser exercitada a capacidade crítica do indivíduo e sua
conseqüente participação social. Essa ideologia leva o profissional à alienação
e ao descompromisso, pois não lhe confere a responsabilidade na construção dos
procedimentos pedagógicos, nem mesmo o questionamento daqueles que são adotados
pelo sistema educacional, o que pode levá-lo à aceitação dos métodos porque ” a
ordem veio e acabou” ou porque está na moda (é elogiado por outros).
“… ao final de cada mês me sinto decepcionada e frustrada, não somente
por ser professora, mas também pelos dirigentes do país que não têm seriedade
por aqueles que os formaram e os colocaram no poder.”
O discurso acima coloca o professor numa posição hierarquicamente inferior na
relação de poder. Apesar de formar o outro e elegê-lo, o professor não continua
participando do processo (do poder). Esse discurso é ideológico e assujeita o
indivíduo, pois não possibilita a consciência de sua capacidade de transformar,
de continuar participando do poder, provocando no profissional um sentimento de
impotência que afeta sua auto-estima, fato agravado pela insatisfação financeira
e profissional, marcadas implicitamente no texto pelas falas: “ao final de cada
mês” e “não somente por ser professora”.
7 CONCLUSÃO
“Peço desculpas aos professores que, em condições assustadoras, tentam
voltar contra a ideologia, contra o sistema e contra as práticas que os
aprisionam, as poucas armas que podem encontrar na história e no saber que
ensinam. são uma espécie de heróis. mas eles são raros, e muitos (a maioria)
não têm nem um princípio de suspeita do trabalho que o sistema (que os
ultrapassa e esmaga) os obriga a fazer, ou, o que é pior, põem todo o seu
empenho em engenhosidade em fazê-lo de acordo com a última orientação (os
famosos métodos novos!). Eles questionam tão pouco que contribuem, pelo seu
devotamento mesmo, para manter e alimentar esta representação ideológica da
escola, que faz da escola hoje algo tão natural e indispensável e benfazeja a
nossos contemporâneos como a igreja era natural, indispensável e generosa para
nossos ancestrais de alguns séculos atrás”. (Althusser, 1992)
A pesquisa constatou que os professores estão preocupados em investir em sua
formação, revelando sua vontade de melhor se prepararem para o exercício
profissional, necessitando que sejam melhoradas suas condições financeiras e
técnicas para que tal aperfeiçoamento seja possível.
A nossa premissa de que a auto-estima estaria diretamente relacionada ao
fator remuneração e que iria decrescer do 3º para o 1º grau não se confirmou. A
insatisfação do professor com o não reconhecimento de seu trabalho (gerando
baixa na auto-estima) esteve presente indistintamente em todos os graus,
relacionada não somente ao salário, mas também às circunstâncias atuais da
educação no Brasil.
A importância da contribuição da análise do discurso para esta pesquisa
partiu dos seus pressupostos teóricos, que afirmam ser a matéria lingüística
(verbal) apenas parte do discurso, e que o contexto social (não verbal) também
participa do processo de constituição dos sentidos no discurso.
Foi a análise do contexto social (em que as falas dos entrevistados foram
produzidas) que nos levou a reflexões que contribuíram para a compreensão da
realidade brasileira quanto à situação da educação, do valor do trabalho e do
exercício da nossa capacidade crítica.
Concluímos que uma sociedade democrática se constrói através da participação.
Para isso se tornar possível, nosso discurso deve se tornar polêmico, permitir
que os outros sejam ouvidos e que a validade dos sentidos constituídos possa ser
questionada.
Constatamos que a não participação favorece o desequilíbrio na auto-estima e
o não aprendizado do valor de si mesmo e do outro, valorização essa que não é
utópica, nem ingênua, mas capaz de constatar as imperfeições em ambos.
Assim, as falhas que observamos no desempenho do profissional, enquanto
reflexos do contexto social em que ele está inserido, serviram para a
constatação das deficiências em nossos próprios procedimentos pedagógicos,
contribuindo para a correção de nossos valores e a melhoria em nosso trabalho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Janeiro : Graal, 1992.
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso.
Campinas : Editora da UNICAMP, 1995.
CHAUI, Marilena. O que é ideologia. 39.ed São Paulo :
Brasiliense, 1995.(Coleção primeiros passos)
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro : Paz e
Terra, 1979.
FOUCAMBERT, Jean. A leitura em questão. Porto Alegre : Artes
Médicas, 1994.
LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da educação. São Paulo :
Cortez, 1994.
ORLANDI, Eni P. A linguagem e seu funcionamento. São Paulo :
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