Pequenos Cristos Crucificados
Meu amigo passava por uma rua de calçadas sujas, numa daquelas regiões que se
diz que são pouco recomendáveis, por ser ponto de tráfico e de uso de drogas, e
viu um menino raquítico, aparentando uns 10 anos, (mas poderia ter mais), caído
na sarjeta, dormindo profundamente, após fumar a droga chamada craque, uma das
maiores abjeções produzidas pelo homem.
Essa droga tem um efeito fulminante. Em poucos segundos chega ao cérebro e
ativa as funções nervosas, dando, por alguns instantes, euforia e bem estar. Daí
a necessidade crescente, do dependente fumar mais, e num menor intervalo de
tempo.
Meu amigo olhou os cabelos negros empastados pela sujeira, a roupa suja e
puída, o tênis quase em frangalhos do garoto. Apesar de encardido pela sujeira,
possivelmente há muito tempo não tomasse banho, se ornava com pulseiras e
brincos ordinários. Teria casa? família? Provavelmente não. Se teve algum dia,
com certeza perdeu o endereço.
Meu amigo, um sentimental incorrigível, viu-se tentado a tomar o menino ao
colo e acariciá-lo, chamá-lo filho, cuidá-lo como um pai faria, mas desistiu de
ajudar, porque outros menores e adultos marginalizados, se aproximaram
ameaçadores. Enquanto isso o pragmatismo humano acelerava os automóveis, e os
pés passavam apressados e ao largo daquele pequeno corpo caído na calçada, tais
quais, um sacerdote e um levita, de uma história contada há dois mil anos, por
um moço galileu.
Poucos dias depois, meu amigo passou por ali novamente, e viu o menino
desperto. O garoto se aproximou pedindo numa cantilena repetitiva: – Tio, dá um
dinheiro pra mim comer? Dá, tio. Tô com fome. Tô com fome… Tio, me dá um
dinheiro. Tô com fome…
Meu amigo ficou pensando. Será que ele tem fome apenas de comida? Será que
não é, também, fome de amor, de carinho, de aceitação? Dizem que eles fumam
craque para enganar o estômago, enganar a fome… Com certeza eles tentam
enganar, também, o coração, pois enquanto estão entorpecidos, não se lembram do
carinho, do amor que perderam, ou que nunca tiveram. Será que essa criança não
foi desejada? Será que a gravidez não foi consciente.
Meu amigo quis levá-lo a um restaurante, desses que servem refeições no
balcão, mas o garoto não quis. Um outro amigo, ao saber do caso, afirmou:
– Lógico, ele queria dinheiro para comprar mais uma pedra de craque.
Será mesmo? Questionou o primeiro amigo. Talvez ele já tenha sofrido abusos
de adultos e por isso não confia. Além do que, disse meu amigo, a fome de
amizade, de amor, de compreensão, de sentir-se aceito, que eu li em seus olhos
eram indisfarçáveis, mas ali estavam também a desesperança, o medo, e a morte.
Com uma tristeza imensa, meu amigo contou que levou uns três meses para
reunir coragem física e moral, para voltar àquele lugar. Quando voltou, não viu
o menino no seu ponto habitual. Reuniu coragem para perguntar a um outro garoto
bem maior, e a resposta foi lacônica:
– morreu.
Essa história verídica nos faz pensar sobre a necessidade de se fazer algo
pelos nossos meninos e meninas de ruas, já presos nas malhas do vício, sem
família, sem endereço, com fome física, mas também com fome de amor, de
compreensão, de aceitação, crucificados como pequenos “cristos” pela nossa
indiferença. Quantos mais precisarão morrer? Felizmente, existem muitos fazendo
alguma coisa, em nome da solidariedade, em nome do amor, contudo, ainda são
poucos.