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São Paulo – 450 anos

Carlos Alberto Iglesia Bernardo

Em 1953 Gilberto Freyre escreveu um prefácio para a obra “História e Tradições da Cidade de São Paulo”, de autoria de Ernani Silva Bruno, em que se referia a importância do seu conteúdo para a compreensão da cidade e de seu papel histórico. A obra seria editada a tempo do 4.o Centenário da cidade de São Paulo como contribuição da Livraria José Olympio Editora para as comemorações do evento. Em um trecho bastante interessante do prefácio ele escreveu:

“No excelente ensaio de historiador social que é o de Ernani Silva Bruno, o passado paulista surge aos nossos olhos, reconstituído não como a figura de um morto, cuja reconstituição apenas de ossos resultasse em simples curiosidade de museu, mas como umas daquelas figuras de mortos de que fala com um fervor quase de Espiritistas a sociologia dos Positivistas: mortos capazes de governar os vivos”.

Notável aos olhos do leitor atual constatar que já em 1954 o Espiritismo constituía-se em uma corrente de pensamento tão conhecida no Brasil que um pensador como Gilberto Freyre o usou, sem maiores necessidades de explicação, em uma bela imagem comparativa. O Espiritismo estabelecido desde os finais do século XIX já havia conseguido foros de cidadania em território brasileiro.

E dentro do território brasileiro, talvez com exceção da capital federal de então – a cidade do Rio de Janeiro – não poderia estar mais o Espiritismo a vontade que na grande capital Paulista. São Paulo quatrocentona era uma cidade com um grande número de espíritas, um conjunto razoável de grupos estabelecidos, periódicos e na época das comemorações saiu até um livro intitulado “Cumprindo-se Profecias – As Materializações de Espíritos em São Paulo”, de autoria de Mario Ferreira, com prefácio de Julio Abreu Filho e publicação pela Édipo (Edições Populares Ltda. da cidade de São Paulo).

Da mesma maneira a São Paulo que comemora 450 anos é hoje um importante pólo de divulgação e prática da Doutrina Espírita. Adeptos e simpatizantes fazem com que o Espiritismo seja hoje tão popular entre nós que referências como as de Gilberto Freyre são usadas na linguagem cotidiana sem maiores problemas. Quem nas conversas em rodas de amigos, no trabalho ou no lazer, já não ouviu referências bem-humoradas aos problemas atuais como conseqüências do mal que se fez em encarnações passadas, ou que na próxima encarnação se optará por outro gênero de vida? Quem não teve experiência com amigos que relataram a busca de orientação “Espírita” em situações difíceis da vida? Naturalmente há ainda muita incompreensão do que é ser “espírita” e da proposta completa do ensinamento trazido pela Codificação Kardequiana, mas por detrás de tudo isto já há um reconhecimento implícito de que o Espiritismo existe e exerce um papel importante na vida social.

Não poderia ser diferente na cidade de Batuíra – o da célebre “Rua Espírita” – que desde a virada do século XIX para o XX celebrizou-se por sua bondade e pelo atendimento mediúnico a sofredores de toda a espécie. Também é a cidade de Anália Franco, cuja obra educativa se tornou um marco na pedagogia brasileira e que foi combatida acirradamente por quantos não lhe toleravam as idéias progressistas auridas nas fontes puras da Doutrina dos Espíritos. É a cidade do Sr. José Gonçalves que entendendo os serviços sociais da Federação Espírita de São Paulo criou a Casa Transitória Fabiano de Cristo, obra modelo no atendimento assistencial as mães carentes, pioneiro na visão de ajudar a criança reestruturando-lhe a família.

Muito mais poderia ser escrito sobre os grandes nomes que o Espiritismo forneceu aos quadros da sociedade Paulistana, muito poderia ser dito das interações mútuas entre o Espiritismo e a cidade, de nomes ilustres como Monteiro Lobato, que vinha ao Tatuapé da época das chácaras participar de reuniões espíritas*.

Muito também poderia ser dito das tradições históricas – que os espíritos também as tem – narradas pelos amigos espirituais sobre a cidade e seus vultos eminentes. Tradições que ligam em uma continuidade de atividade os nomes de Anchieta e Fabiano de Cristo, Manoel da Nobrega e Emmanuel, João Ramalho e Batuíra, ligações difíceis de serem provadas cientificamente mas que tem seu lado racional junto a importância do Espiritismo para o progresso moral da cidade e da nação.

Falando da importância do Espiritismo não há como deixar de relembrar o quanto esta São Paulo espírita influenciou a vida pessoal de seus cidadãos. Lembro-me do centro que meus avós freqüentavam no Brás e onde passei bons momentos de minha infância entre os anos 60 e 70 – União Espírita Cristã Beneficente Laudelino Novaes de Brito (fundada em 1928) – das sessões e dos eventos de confraternização que lá ocorriam. Cheguei a ter a oportunidade de assistir as quermesses, participar de festas para arrecadação de fundos e, infelizmente, não cheguei a assistir apresentações do grupo de teatro organizado havia muitos anos. O presidente e fundador do centro, o médium José Domingues Bueno, com grande sacrifício pessoal havia ao longo dos anos organizado grupos que arrecadavam mantimentos, grupos que se dedicavam a costura e acerto de roupas doadas, grupos de atendimento ao próximo. Ele mesmo dedicava-se ao receituário mediúnico e a orientação espiritual, sendo o espírito Antonio dos Santos responsável pelas consultas, e não poucas vezes distribuía os remédios – sempre homeopáticos, normalmente do laboratório “A Natureza” – com o dinheiro do próprio bolso.

José Domingues Bueno (1898 – 1976)Foto tirada em 1967

Imigrantes espanhóis, italianos, portugueses e seus descendentes constituíam boa parte dos freqüentadores do centro, bem como parte de sua equipe espiritual. Amigos espirituais como Laudelino Novaes de Brito, Quirubino de Almeida, Antonio dos Santos junto com diversos parentes desencarnados tornavam o contato com o plano espiritual tão próximo e tão familiar como nunca mais vi em minha vida. Na época, dois de meus parentes – uma irmã de minha avó, a Tia Inês, e um de seus cunhados, o Tio Paulo – participavam do grupo de médiuns que, em torno da mesa sempre coberta por toalhas brancas e recoberta de flores, transmitiam a palavra dos guias espirituais e socorriam os espíritos sofredores.

Sessão em comemoração ao aniversário do depto assistencial do grupo e de desencarnação de Querubino de Almeida – 1974

Como boa parte dos espíritas paulistanos, que tiveram a oportunidade de crescer junto aos grupos freqüentados por seus familiares, foi no Laudelino Novaes de Brito que comecei a vivenciar as grandes tradições fraternas da cidade de São Paulo e a conviver com sua cultura cosmopolita. Foi lá, junto a familiares e amigos, deste plano e do outro da vida – muito antes de ingressar na escola primária – que meu mundo se expandiu para fora do lar e onde comecei a ser cidadão paulistano.

Parabéns São Paulo! Parabéns por teu trabalho material que te transformou no sustento de tantas vidas e na oportunidade de progresso de tantos seres! Mas parabéns mesmo por teu ambiente espiritual, que tão bem acolheu a Doutrina Espírita, dando-nos a oportunidade inigualável de crescermos espiritualmente e nos colocarmos cada vez mais a teu serviço e ao do próximo!

Feliz Aniversário!

* Esta referência sobre Monteiro Lobato nos  foi passada pelo Milton Bonfante (LIHPE) a partir de informações que ele encontrou em um livro sobre a história do Tatuapé, inclusive nos prometeu  escrever um artigo a respeito.

Bibliografia

  • BRUNO, ERNANI SILVA. História e Tradições da Cidade de São Paulo. Prefácio de Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora. 1953.
  • FERREIRA, MARIO. Cumprindo-se Profecias – Materializações de Espíritos em São Paulo. Prefácio de Julio Abreu Filho. São Paulo: Édipo, 1955.
  • MONTEIRO, EDUARDO CARVALHO. Anália Franco – A Grande Dama da Educação Brasileira . São Paulo: Editora Eldorado Espírita, 1992.
  • ___. Batuíra – Verdade e Luz . São Paulo: Lúmen Editorial Ltda, 1999.
  • ___. Batuíra – O Diabo e a Igreja. São Paulo: Madras, 2003.
  • PEREIRA, MIGUEL. José Gonçalves Pereira – Apóstolo do Bem e Herói da Caridade. São Paulo: SEDAC, 1996.
  • RIBAS, MARIA JOSÉ SETTE. Monteiro Lobato e o Espiritismo – As sessões espíritas de Moneiro Lobato. São Paulo: Nova Luz Editora, 2 ed,1997.

(Publicado no Boletim GEAE Número 469 de 27 de janeiro de 2004)