José Herculano Pires – Desvendando o Grande Desconhecido
José Herculano Pires, o maior
escritor espírita brasileiro, decididamente não se conformava com o que via: de
um lado o Espiritismo sendo duramente atacado, e por outro, apaixonadamente
defendido. O problema estava num aspecto comum entre os atacantes e defensores:
em sua maioria desconheciam o próprio Espiritismo.
“Os adversários partem do preconceito e agem por precipitação. Os espíritas
formularam uma idéia pessoal da Doutrina, um estereótipo mental a que se
apegaram”
(Introdução à Filosofia Espírita).
Guardo comigo a convicção de que se baseie nessa análise (que podemos também
desfrutar no Curso Dinâmico de Espiritismo) a sua maior motivação para o extenso
e vigoroso trabalho que desenvolveu.
Herculano escreveu muito, num trabalho extenso e intenso. Abarcou os mais
variados temas relacionados ao Espiritismo. Filosofia, educação, ciência,
religião e movimento espírita eram seus temas prediletos. Este último foi motivo
de muitas e fundadas polêmicas (nunca fugiu delas). No movimento espírita e fora
dele, Herculano defendeu o Espiritismo com a energia de um Don Quixote.
Os
livros e artigos que escreveu, além dos debates do qual participou, construíram
uma estampa única de defesa pública e destemida do Espiritismo, marcada pelo
compromisso com a verdade e a lógica, mais do que com pessoas e instituições. Os
“padres mágicos” (que chegavam a inventar experiências televisivas para “provar
as fraudes dos espíritas”) e os pastores dedicados a atacar o Espiritismo
tiveram cada um de seus argumentos ou simples acusações respondidos, na imprensa
escrita, no rádio, na televisão. A sintaxe utilizada era a da exposição objetiva
de fatos e argumentos. A semântica preferida era a do desenvolvimento lógico e
racional.
No âmbito interno do movimento espírita foram igualmente combatidos as
práticas espíritas que condenava (como as aplicações inadequadas da mediunidade)
e conceitos espíritas equivocados (como o da reforma íntima). Inconformado com
as inúmeras distorções que se aplicavam ao Espiritismo no próprio meio espírita,
sobretudo pela Federação Espírita Brasileira, com sua inexplicável defesa de
teses de Roustaing, Herculano não se fazia calar. Chegava mesmo a ferir
susceptibilidades: o amor só tinha sentido e lugar se amparado na verdade.
Não tenho dúvidas de que Herculano era apaixonado pelo Espiritismo. Os seus
estudos científicos, por exemplo, sempre recheados com uma infinidade de
informações levantadas à exaustão junto a pesquisadores do mundo inteiro, e
fortemente calcados na base e na metodologia kardequiana, chegavam a conclusões
profundamente otimistas sobre os resultados conseguidos pela pesquisa espírita.
Em Mediunidade chega a afirmar que a tese espírita da existência de energias
espirituais típicas já havia sido comprovada cientificamente.
A conclusão talvez
seja discutível, haja vista a relutância ainda vigente nos dias atuais aos
métodos e conclusões da pesquisa espírita, mas o que mais chama a atenção nesses
estudos é a profunda capacidade de correlacionar informações diversas de maneira
a cercar um problema e suas causas potenciais, lembrando e complementando o que
faziam Bozzano e Kardec: a razão nos diz que não basta encontrar uma causa para
um fenômeno, é necessário buscar a causa de um conjunto consistente de
fenômenos.
Na discussão científica, o defensor também mostrou sua face. Em A Pedra e o
Joio dedicou-se a combater as teorias científicas que se constroem entre os
espíritas sem base sólida. Para Herculano, Kardec é a base fundamental. O método
kardequiano, apoiado na razão e na universalidade de informações, e os conceitos
fundamentais do Espiritismo, seriam para ele a estrutura sólida para o
desenvolvimento das pesquisas espíritas. A destruição gratuita dessa base
poderia colocar em risco todo o conjunto.
Na questão científica é também fundamental notar uma outra contribuição
importante de Herculano: ele estabelecia em seus estudos a discussão explícita
entre o Espiritismo e os diversos segmentos da pesquisa psíquica, do americano
Rhine ao russo Vassiliev, do psicanalista Freud ao engenheiro Bozzano. Ao
contrário de muitos, que timidamente preferem dogmatizar a Doutrina, discutindo
apenas a sua lógica interna, Herculano expunha e desta forma mostrava a força da
visão e do método espírita.
No que se refere ao tema educação, o seu trabalho foi, e continua sendo,
ímpar. Numa única frase – “o educando é um espírito encarnado” – resumiu
filosoficamente a contribuição do Espiritismo à educação. Propôs e estruturou a
Pedagogia Espírita, fortemente calcada nos princípios da imortalidade e da
evolução do espírito. Criou e dirigiu a revista Educação Espírita, que a
despeito do pequeno número de edições (quantos realmente a apoiaram?), mantém-se
ainda hoje como uma das mais importantes contribuições ao tema na nossa
literatura. Também nesta área encontramos marcas de sua energia e seu
entusiasmo. Afinal, quem além dele poderia se debruçar sobre um projeto de
Faculdade de Espiritismo, com processo pedagógico diferenciado e com
detalhamento da estrutura organizacional e do currículo?
A educação espírita
ganha identidade e corpo nas mão de Herculano, mas a sua meta não é apenas
influenciar os currículos escolares: o alcance da Pedagogia Espírita transcende
a esta vida. Coerente com a visão kardequiana de que a consciência da
imortalidade, a proposta de Herculano se resume atribuir transcendência aos
atores e ao processo educacional. Em Educação para a Morte fica claro que o
papel educacional do Espiritismo não está focalizado estritamente numa das duas
facetas da vida (a encarnada ou a desencarnada), mas sim na sua totalidade. Visa
o espírito integral.
Herculano foi jornalista e trabalhou vários anos nos Diários Associados.
Escrever foi realmente a sua vida. O que chama mais a atenção, no entanto, é que
seu estilo não se pautou estritamente na objetividade jornalística. Era
fundamental a discussão, a análise, às vezes até a divagação por caminhos longos
que no retorno davam nova feição ao ponto original. Não há dúvida de que
Herculano foi acima de tudo um filósofo do Espiritismo.
Para seu amigo argentino
Humberto Mariotti, em Herculano Pires: Filósofo e Poeta, ele era um filósofo e
pensava sobre o mundo e o ser com evidentes profundidades metafísicas. Ao
publicar a sua Introdução à Filosofia Espírita, Herculano enfrentou o problema
da análise do Espiritismo como doutrina filosófica, discutiu a teoria do
conhecimento espírita, e propôs uma Filosofia Espírita da Existência, que chamou
de Existencialismo Espírita: a busca na realidade concreta da essência possível,
partindo dela para as induções metafísicas. Ao invés de partir da essência
impalpável, e nela ficar, o Espiritismo parte dos fatos, dos fenômenos, do real,
da vida. A discussão da existência leva à essência, não o contrário.
Ao propor uma concepção existencial, Herculano permite-nos também compreender
o processo dialético vivido pelo espírito ao nascer, viver, morrer e renascer.
Analisando mais especificamente o trabalho de Kardec percebemos que toda a
teoria espírita se construiu a partir da observação dos fatos. A visão
existencialista permite ver o papel de Kardec e dos demais elaboradores do
Espiritismo na sua construção. O maior kardeciólogo que o mundo já viu também
buscou, a cada instante, compreender, interpretar e avaliar o papel de Kardec.
Talvez seja possível resumir o que buscou continuamente Herculano: desvendar
o grande desconhecido, ou seja, compreender e discutir visão de mundo do
Espiritismo, analisar sua contribuição ao conhecimento humano, detalhar seu
método, avaliar o papel de Kardec e dos Espíritos na sua elaboração, e mostrar a
todos tudo o que descobriu.
Mauro Spinola é Engenheiro, Doutor em Engenharia de Computação, Professor
Universitário, participante do CPDoc (Centro de Pesquisa e Documentação
Espírita) e do Centro de Estudos Espíritas José Herculano Pires, de São Paulo,
Capital.