Segundo os anais espíritas fidedignos, Allan Kardec (1804 -1869), o Codificador do Espiritismo, foi a reencarnação de Jan Huss (1369 -1415).
Através dos grupos de estudos das sociedades espíritas e nos livros doutrinários, já sabemos alguma coisa sobre o mestre lyonês, que brilhantemente nos legou a veneranda Doutrina Espírita, juntamente com os Espíritos Superiores da Codificação. Mas quem foi Jan Huss? O que sabemos realmente dele? Quem foi aquele Espírito tão lutador que, de alguma maneira, não somente foi precursor da Reforma protestante, senão também foi precursor e modelador da personalidade do ínclito Allan Kardec, pseudônimo do insigne professor Hippolyte Léon Denizard Rivail? Qual a sua grande contribuição na História da Humanidade?
Nas próximas linhas procuraremos, sinteticamente, adentrar-nos na vida desse glorioso mártir, ainda que em poucas pinceladas extraídas de enciclopédias (1) e da literatura espírita doutrinária (2).
Jan Huss, ou Jean Hus foi sacerdote tcheco, mártir e precursor da Reforma protestante. Nasceu em Husinec (de onde tirou o seu nome), Boêmia, em 1369 (Allan Kardec desencarnou exatamente 500 anos após, em 1869) e morreu em Constança, em 6 de julho de 1415, queimado vivo pela Santa Inquisição.
Filho de pais camponeses, completou o seu curso na Universidade de Praga, onde se formou como bacharel em Teologia (1394) e em Artes (1396).
Assinava Jan de Husinec, e por abreviatura, Hus, que em tcheco quer dizer ganso ou pato.
Trabalhou na fixação da ortografia e na reforma da língua literária tcheca (lembremos, por um instante, do trabalho pedagógico e educativo desenvolvido pelo emérito professor Hippolyte Léon Denizard Rivail).
Em 1400 foi ordenado sacerdote e no ano seguinte passou a ocupar o cargo de Reitor da Universidade, quando se aproximou da obra do reformador inglês John Wycliffe, passando a considerar-se teologicamente seu discípulo. No ano seguinte (1401), tornou-se pregador da Capela de Belém, em Praga, capital da Boêmia, e tinha o apoio do Arcebispo.
DOUTRINA – Como Wycliffe, Huss não aceitava a supremacia papal, mas a doutrina de que o Cristo e não Pedro era o chefe e cabeça da Igreja, considerando o Evangelho como «única Lei». Seu pensamento sobre a Igreja era influenciado fortemente por Agostinho.
DISCÍPULO DE WYCLIFFE – Foi dito, há pouco, que Huss considerava-se teologicamente discípulo de Wycliffe. Mas, quem foi Wycliffe? John Wycliffe era professor da Universidade de Oxford, e atualmente é considerado um dos grandes sábios de sua época; foi discípulo de Ockham, adversário da supremacia do Papa.
Ele aproveitava habilmente as fraquezas do clero para ridicularizá-las. Apoiou o Parlamento, que recusou o tributo ao Papa, e a Lancastre, que propunha se retirassem os benefícios dos Bispos. Escreveu a obra De Domínio Divino, onde provava que a autoridade é Deus. Entre seus princípios estabelecia que as relações de Deus para com os homens eram diretas: não eram necessários os intermediários, e isso era um golpe contra Roma. Foi trazido à corte eclesiástica de S. Paulo e teve Lancastre a seu lado, como defensor. Achava mais, que os eclesiásticos deviam ser submetidos ao tribunal civil.
Atacou e ironizou os perdões, indulgências, absolvições, peregrinações, cultos de santos, etc. Mais hábil que João Huss, não se deixou apanhar em qualquer armadilha, e por isso Roma teve o desgosto de não o poder levar a fogueira. Morreu tranqüilamente, depois de um ataque de paralisia.
A luta pela liberdade religiosa
A Capela de Belém, onde Jan Huss pregava, fora fundada para que nela se falasse em tcheco. Antes disso somente podia falar-se em latim. A Igreja, então, ocupava lugar excepcional na Boêmia; a sua opulência e os privilégios de que gozava produziram o enfraquecimento das regras canônicas e da moral. Praga revoltou-se contra os abusos eclesiásticos. Destarte, as preocupações de uma reforma religiosa juntaram-se às reivindicações nacionais. Até na doutrina religiosa havia hostilidade entre alemães e boêmios.
Huss era francamente pela reforma e pela preponderância nacional da Boêmia, embora sem entrar em conflito com as autoridades eclesiásticas. Chegou, mesmo, a ser nomeado pregador sinodal, com o mandato de protestar contra os desregramentos do clero.
Mais tarde, ele desmascarava a velhacaria dos que atraiam a Wilsnack numerosos peregrinos, e, de acordo com o Arcebispo, publicou um tratado, onde desenvolvia a tese de que um cristão não deve correr atrás de milagres.
Pouco depois, suas relações com o Arcebispo começam a esfriar; o clero irritava-se contra as suas acusações e, afinal, retiraram-lhe o cargo de pregador sinodal.
A rainha Sofia, entretanto, gostava de ouvi-lo. Surge dai um conflito político e religioso, e João Huss aparece como o chefe do partido nacional.
Aos poucos, suas críticas ao clero foram evidenciando suas simpatias para com a doutrina de Wycliffe, e a oposição cresceu contra ele, sendo excomungado em 1410. O resultado disso foi um grande tumulto popular em Praga, quando Huss, com o apoio do rei Venceslau, foi festejado como herói nacional.
O rei Vaclav, filho de Carlos IV, decidira-se pela neutralidade entre os dois papas que, na época, pretendiam chefiar o mundo cristão. Pediu à Universidade uma decisão a respeito. Os alemães eram partidários de Gregório XII e possuíam três votos, como representantes de três nações polonesas, e a Tcheca um voto só. Por instigação de Huss, o rei modificou os Estatutos, ficando a Tcheca com os três votos e os outros com um. Mas, cerca de 5.000 alemães, professores e alunos, deixaram Praga. Huss foi, então, nomeado Reitor da Universidade, que se tornou inteiramente eslava.
Ora, o Arcebispo, que era por Gregório XII, acusou Huss de heresia wyclifita e transmitiu sua queixa a Alexandre II, eleito pelo Concílio de Pisa. O Papa, então, pela bula de 1409, exigiu a retratação dos erros wyclifitas, a apreensão dos livros de Wycliffe e a interdição de se pregar em igrejas que não fossem as antigas.
Huss apelou, mas o Arcebispo fez queimar os escritos de Wycliffe e excomungou os seus partidários. Mas o clero inferior, a Universidade, o povo e o rei ficaram com João Huss. Continuaram as prédicas na Capela de Belém, apesar da bula, e ninguém se incomodou com o interdito contra Praga. Numa segunda fase da luta, entra diretamente em cena o Papa João XXIII, que sucedeu a Alexandre V.
O tráfico das indulgências e a política guerreira do Papa escandalizaram Huss e seus partidários, embora alguns recuassem, com receio da autoridade papal. Huss, porém, sustentava que o perdão dos pecados só se poderia obter por contrição e penitência sincera, e nunca por dinheiro; que nem o Papa, nem qualquer sacerdote, poderiam levantar a espada em nome da Igreja; que a infalibilidade do Papa era uma blasfêmia.
Houve o discurso inflamado de Jerônimo de Praga, cortejos satíricos, onde se ridicularizava a Igreja Oficial. O rei de Nápoles estabeleceu a pena de morte para quem ofendesse o Papa, e logo três moços foram decapitados. Os hussitas os enterraram solenemente e Huss lhes fez o necrológio.
O Papa ameaçou a Boêmia de excomunhão, e Venceslau aconselhou Huss, novamente excomungado, a deixar a capital em 1412, ao que Huss obedeceu. Entrementes, o imperador Sigismundo, irmão de Venceslau, da Boêmia, entendia-se com João XXIII, para convocar o Concílio de Constança, de cujo programa constava a pacificação religiosa da Boêmia.
Sigismundo prometeu a Huss um salvo-conduto, se consentisse em comparecer ao Concílio de Constança (1414). Huss acedeu. Diante da promessa veio a Praga e se pôs em caminho. Em Constança recebeu o dito salvo-conduto onde se dizia que ele podia transire, stare, morari et redire libere.
Mas, com o pretexto de que ele queria retirar-se, prenderam-no e internaram-no no Convento dos Dominicanos, em infecto recinto. Instauraram-lhe um processo; o ato da acusação coube a Etienne Palec. Começara a sua via-crucis.
Ficou sob a guarda do Bispo de Constança, e o transferiram, como medida de maior segurança, para o torreão do Castelo de Gottlieben, onde foi encadeado, e assim perma-neceu dia e noite. Daí vai para o Convento dos Franciscanos.
O Concílio condena as teorias de Wycliffe. Depois, apresentam a Huss o seu tratado De Ecclesia; ele nem pode defender-se, porque vozes exasperadas o interrompem e abafam a sua.
Voltou-se ao exame do tratado De Ecclesia; Huss, porém, manteve a doutrina de que apenas o Cristo e não Pedro era o chefe da Igreja, e resistiu às promessas e ameaças que lhe fizeram. Logo João Huss percebeu a sorte que o aguardava; cheio de pena pelos inimigos, escreve cartas de reconhecimento pela amizade que lhe devotaram, e aos amigos, animando-os, por se terem conservado fiéis à verdade.
A 6 de julho de 1415 é proclamada a condenação de João Huss e logo executada. Foi degradado e lhe fizeram um chapéu de papel, onde se lia esta inscrição: Hic est hoere siarcha (Eis o herege). Conduzido a um terreno vazio, despiram-no, amarraram-no a um poste, ajuntaram lenha em torno e lhe puseram fogo. Ouviram-no cantar a litania – Christo, Fili Dei vivi, miserere nobis.
Quando ia entoar a segunda linha – pai natas es ex Maria –, foi envolvido inteiramente pelas chamas e pela fumaça e a voz morreu-lhe na garganta. Suas cinzas foram lançadas ao Reno.
E assim pereceu queimado, aos 46 anos, quem pregou contra a injustiça, a venalidade e a insinceridade, tendo enfrentado a morte com grande coragem.
Dizem os historiadores que ele era uma alma sensível, piedosa, pura, honesta, só se deixando dominar pelo que lhe parecia justo e verdadeiro. E, ainda, que sua vida anuncia uma era nova, onde se imporão os direitos religiosos da consciência individual.
Dava grande importância à lei do Cristo, pregando que a verdadeira Igreja era aquela de que o Cristo era o chefe autêntico. Como pregador, a clareza de sua inteligência e a lógica de sua argumentação (Allan Kardec tinha essas virtudes bem ressaltadas, sendo chamado, por Camille Flammarion, o bom senso encarnado) produziam uma forte impressão em todos os que o ouviam.
Um ano após o martírio de Jan Huss, um discípulo seu também era imolado na fogueira da Inquisição: Jerônimo de Praga (1416).
Para concluir, lembramo-nos, emocionados, duma passagem contada pelo prestigioso médium e orador espírita Divaldo Pereira Franco, sobre a morte de Jan Huss, extraída da sua conferência «Deus tem pressa», dizendo que, enquanto seu corpo queimava na fogueira, Jan Huss teria proferido a seguinte frase, antes de morrer cantando: «Hoje vós assais um pato, mas dia virá em que o cisne de luz voará tão alto, que as vossas labaredas não mais alcançarão. Séculos depois Jan Huss volta como Allan Kardec…»
Fontes:
1 – «Enciclopédia Britânica Mirador Internacional» e «Grande Enciclopédia Larousse Cultural».
2 – «A Missão de Allan Kardec», de Carlos Imbassahy, edição da FEP.
* FOTO – Gravura de Jan Hus extraída da Enciclopédia Britânica Mirador Internacional.
(Jornal Mundo Espírita de Janeiro de 1999)