Filosofia da Ciência Espírita – IV – O Espiritismo
No século XIX, como foi discutido no estudo anterior (Outubro), havia um
movimento cultural bem definido. A Filosofia estabelecera-se como o ramo da
reflexão humana, buscando as conseqüências dos fenômenos e, por análises
sucessivas, remontar às causas. A Ciência tinha surgido inicialmente com Galileu
ao propor um método de observações, repetições e, acima de tudo, interpretação
matemática dos fenômenos. Mais tarde, muitos pensadores, “cientifizaram”
diversas áreas do conhecimento, tornando-as de interpretação quantitativa. O
Positivismo, uma corrente filosófica do século XIX, mostrara-se como uma
“crença” de que todos os problemas humanos (sociais e morais) podem ser
resolvidos apenas pela ciência e que as religiões, ainda grosseiramente
não-racionais, deveria abandonar sua função consoladora para as ciências.
Os positivistas, porém, em sua maioria, eram bastante orgulhosos para mudar
radicalmente seu padrão de idéias (paradigmas). Mas algo, no século XIX, abalou
todos pilares conceituais da Ciência. Em 1848, enquanto a Europa estava em
guerras nacionalistas internas, os Estados Unidos da América estavam em euforia.
Nesse ano, foi descoberto ouro na Califórnia, acentuando o movimento migratório
de pessoas de diversas áreas para o Oeste, além da imigração de estrangeiros. A
família metodista Fox, John D. Fox (pai), Margareth (mãe), descolando-se do
Canadá, mudara-se para a cidade de Hydisville, em busca de prosperidade. Ficaram
em uma casa conhecidamente “mal-assombrada” pelos moradores locais. Pancadas e
ruídos nos móveis, movimentos espontâneos de objetos, arremessos, tremores e
trepidações eram freqüentes pela casa. Então, em 1848, as filhas do casal
citado, as irmãs Margareth e Catherine, “desafiaram” a causa da perturbação,
travando um diálogo codificado pelas pancadas. O inteligência identificando-se
concordou em reproduzir suas pancadas em público. Mais tarde, toda a sociedade
pensante nos Estados Unidos estavam investigando o fenômeno.
Alguns europeus interessados, mesmo sem presenciar o fenômeno, negaram a
explicação oriunda da América de que as almas dos mortos eram a causa dos
movimentos inteligentes espontâneos. Tentaram reproduzir o “espetáculo” da
América com sucesso. Irradiando da França e da Alemanha, o estranho fato das
“mesas girantes” ou “dança das mesas” tornou-se uma “febre” nos salões da
Europa. Entreteve, por algum tempo, a curiosidade dos frívolos, até estes
descobrirem outra moda. Contudo, as demonstrações desafiavam profundamente os
positivistas. Como um corpo pesado poderia mover-se de tal forma, sem sequer
alguém tocá-lo? Como soar batidas de dentro do móvel quando não há suspeita de
fraude alguma? Como conceber pancadas combinando-se e produzindo respostas
inteligentes, estranhas, desconhecidas e contraditória às idéias dos
pesquisadores? Como aceitar que um corpo sólido atravessa outro? Como acreditar
em aparições tangíveis de pessoas mortas formadas por “concentrações” de uma
substância fluídica secretada de determinadas pessoas? E, o que mais confundia a
negação dos positivistas, era a reprodução desses fenômenos diversos em
diferentes lares e instituições, de diferentes países, de diferentes
continentes, sob a sombra do Positivismo e da Ciência do século XIX
racionalista.
Muitas explicações superficiais semi-racionais foram formuladas para negar a
imortalidade da alma e a comunicação dos mortos, mas todas elas falharam e
desapareceram devido a contradições intrínsecas e por não explicarem todos os
fatos (ver O Livro dos Médiuns, item 36 e seguintes). Mesmo assim, até hoje, em
pleno século XXI, materialistas, orgulhosos, pseudo-sábios “homens da ciência”,
amedrontados diante da inegável imortalidade da alma, reforçam que a comunicação
com desencarnados, tão comum em todos os tempos, seria um fato maravilhoso e
sobrenatural, por afastarem-se das leis naturais. Dessa forma, estamos ansiosos
para que nos contem quais são elas, já que nós, pelo menos, não conhecemos todas
as leis do Universo. Pelo contrário, houve um pensador no século XIX, no meio da
explosão fenomênica exposta, disposto a estudá-la racionalmente, cientificamente
(interpretações matemáticas), sem idéias pré-concebidas.
O professor pedagogo Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), natural da
França, Lyon e de formação acadêmica em Yverdun, Suíça, com o célebre professor
Pestalozzi, discípulo de Jean Jacques Rousseau, fazia parte da comunidade
pensante de Paris, participando ativamente de diversos institutos científicos,
notadamente da Academia Real d’Arras. Tendo conhecimento do fenômeno, longe de
ser um entusiasta dessas manifestações e absorvido por outras preocupações,
esteve a ponto de as abandonar, o que talvez tivesse feito se não fossem as
solicitações dos Srs. Carlotti, René Taillandier, membro da Academia das
Ciências, Tiedeman-Manthèse, Sardou, pai e filho, e Diddier, editor. Entretanto,
o convite do Sr. Pâtier, seu amigo sério e objetivo, levou-o a conhecer, em
1855, as mesas responderem inteligentemente a perguntas formuladas na casa da
Sra. Plainemaison, às terças-feiras, à noite. Anota o professor:
“Foi aí, pela primeira vez, que testemunhei o fenômeno das mesas girantes,
que saltavam e corriam, e isso em condições tais que a dúvida não era possível.
“Aí vi também alguns ensaios muito imperfeitos de escrita mediúnica em uma
ardósia com o auxílio de uma cesta. Minhas idéias estavam longe de se haver
modificado, mas naquilo havia um fato que devia ter uma causa. Entrevi, sob
essas aparentes futilidades e a espécie de divertimento que com esses fenômenos
se fazia, alguma coisa de sério e como que a revelação de uma nova lei, que a
mim mesmo prometi aprofundar.(…)”
Uma das primeiras observações e conclusões do emérito enciclopedista prof.
Rivail foi a necessidade da presença de determinadas pessoas (“sensitivos”) para
facilitarem e intensificarem qualquer dos tipos de manifestações. Quanto à causa
dos fenômenos:
“Apliquei a essa nova ciência, como até então o tinha feito, o método da
experimentação; nunca formulei teorias preconcebidas; observava atentamente,
comparava, deduzia as conseqüências; dos efeitos procurava remontar às causas
pela dedução, pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo como válida uma
explicação, senão quando ela podia resolver todas as dificuldades da
questão.(…)
“Entrevi nesses fenômenos a chave do problema tão obscuro e tão controvertido
do passado e do futuro, a solução do que havia procurado toda a minha vida; era,
em uma palavra, uma completa revolução nas idéias e nas crenças; preciso,
portanto, se fazia agir com circunspeção e não levianamente, ser positivista e
não idealista, para me não deixar arrastar pelas ilusões.”
E, desse modo, rejeitou a hipótese causal puramente material e espontânea, a
hipótese dos gases invisíveis. “Todo efeito inteligente tem uma causa
inteligente”. Pelas observações ficou claro a presença viva de inteligências
invisíveis (algumas vezes bem visíveis) independentes (Espíritos). Os materiais
e métodos eram inicialmente baseados nas pancadas das mesas. A seguir,
adaptou-se um lápis em uma mesa em miniatura para facilitar a escrita.
Trocaram-se as mesinhas por cestinhas, pranchetas e, mais tarde, notou-se que
esses instrumentos eram apenas apêndices dos sensitivos e estes poderiam
escrever mecanicamente com a própria mão, servindo de instrumento dos
desencarnados.
Aplicando os métodos científicos tradicionais postulados por Galileu (vistos
no estudo anterior), o Prof. Rivail “cientifizou” mais um ramo do conhecimento
humano, até agora de domínio religioso. Os sensitivos, agora denominadas médiuns
(intermediários), longe de serem pessoas predestinadas, endemoniadas,
santificadas ou privilegiadas, são pessoas absolutamente normais. A
interpretação quantitativa do problema é elegantemente simples: a mediunidade é
uma faculdade humana orgânica, neurofisiológica, que possibilita a percepção de
Espíritos (desencarnados). Todos temos essa faculdade conhecida de todos os
tempos, mas ela varia quantitativamente na população humana por fatores
genéticos, ambientais e culturais, de modo que somos todos mais ou menos
médiuns, variando apenas em graus, e não em qualidade. Apenas pelo costume,
chamam-se médiuns aqueles que expressam a faculdade por manifestações nas quais
a comunicação dos Espíritos é mais claramente perceptível. A mediunidade, como
objeto de estudos dessa nova Ciência, serviu de base para o Espiritismo,
neologismo criado pelo Prof. Rivail para “A ciência que estuda a natureza, a
origem e o destino dos Espíritos, bem como as suas relações com a matéria” (ver
O que é o Espiritismo?). Reflete o pedagogo:
“Um dos primeiros resultados das minhas observações foi que os Espíritos, não
sendo senão as almas dos homens, não tinham nem a soberana sabedoria, nem a
soberana ciência; que o seu saber era limitado ao grau do seu adiantamento, e
que a sua opinião não tinha senão o valor de uma opinião pessoal. Esta verdade,
reconhecida desde o começo, evitou-me o grave escolho de crer na sua
infalibilidade e preservou-me de formular teorias prematuras sobre a opinião de
um só ou de alguns.”
E essa é a diferença fundamental entre as religiões tradicionais e essa nova
Ciência. Se recordarmos o processo histórico-cultural da formação das religiões,
todas elas dependeram da comunicações com os mortos (estudo de Julho). Porém,
usava-se o método da submissão à revelação dos Espíritos e os médiuns eram
considerados enviados dos deuses para a salvação da humanidade ou, se a mensagem
dos Espíritos desagradava o poder terreno, os médiuns eram massacrados por serem
enviados dos demônios. O positivista Prof. Rivail, como se vê, tem outra
opinião, adotando uma postura absolutamente natural: “Eu, pois, agi com os
Espíritos como teria feito com os homens: eles foram, para mim, desde o menor
até o mais elevado, meios de colher informações e não reveladores
predestinados.”
De fato, para a formulação dos ensaios, das leis e teorias da Ciência
Espírita presente em O Livro dos Médiuns, houve uma equipe de cientistas
composta de encarnados e desencarnados pesquisadores, chefiados pelo Prof.
Rivail. Um desencarnado, denominando-se sr. Z., informa-lhe que o conhecia o
conhecia em outra encanação, nas Gálias, época quando o professor chamava-se
Allan Kardec. Muitos outros Espíritos ajudavam ativamente Kardec, dentre eles,
São Luís.
As primeiras hipóteses para explicar como os desencarnados podem fazer as
mesas dançarem foram exemplos expressivos dessa parceria científica. Kardec e
colaboradores encarnados sugeriram que os desencarnados agissem mecanicamente
sobre a matéria. Já que o corpo fluídico perispírito é semi-material e pode
tornar-se tangível, é razoável pensar que eles próprios empurrassem as mesas com
as mãos. Porém, qual seria, então, o papel dos médiuns? Os desencarnados
apresentaram uma teoria completamente diferente, muito mais simples e
explicativa (ver O Livro dos Médiuns, item 72 e seguintes), aceita por Kardec
por ser mais racional. No entanto, houve vários casos em que comentários de
desencarnados “de renome” foram rejeitados. O Espírito Lázaro, muito conhecido
no Espiritismo por sua explicação sobre a sublimação dos instintos, sensações e
sentimentos em Amor, escreveu comunicações contestáveis (ver Revista Espírita,
1862) a respeito do mesmo assunto.
E essa parceria desdobrou-se numa nova Ciência. Porém, era impossível
conceber a novidade apenas pela ciência material mais grosseira. Uma vez que
esses estudos criaram um método controlado de conversar com desencarnados, foi
aberto um novo campo para reflexões profundamente filosóficas, com o potencial
de responder perguntas fundamentais da criatura humana. Relata o codificador:
“Só o fato da comunicação com os Espíritos, o que quer que eles pudessem
dizer, provava a existência de um mundo invisível ambiente; era já um ponto
capital, um imenso campo franqueado às nossas explorações, a chave de uma
multidão de fenômenos inexplicados. O segundo ponto, não menos importante, era
conhecer o estado desse mundo e seus costumes, se assim nos podemos exprimir.
Cedo, observei que cada Espírito, em razão de sua posição pessoal e de seus
conhecimentos, desvendava-me uma fase desse mundo, exatamente como se chega a
conhecer o estado de um país interrogando os habitantes de todas as classes e
condições, podendo cada qual nos ensinar alguma coisa e nenhum deles podendo,
individualmente, ensinar-nos tudo. Cumpre ao observador formar o conjunto, com o
auxílio dos documentos recolhidos de diferentes lados, colecionados, coordenados
e confrontados entre si.”
Essas reflexões reunidas tornaram-se um corpo de doutrina filosófica baseada
em princípios fundamentais da agora chamada Filosofia Espírita:
- Existência de Deus: por deduções óbvias e axiomáticas, conclui-se a
existência de uma causa primária de todas as coisas, com atributos infinitos
em perfeição; - Imortalidade da alma: o novo método, como se disse, leva a esse corolário;
filosoficamente, um Criador perfeito não governaria sobre carnes perecíveis; - Comunicabilidade dos Espíritos: é o próprio método de base; refletindo,
Deus oferece essa oportunidade às criaturas com ou sem invólucro carnal; - Pluralidade das existências: além de haver evidências científicas, a
reencarnação é conseqüência da Justiça infinita do Criador; - Pluralidade dos mundos habitados: também cientificamente indicado e é
explicação única para a evolução do Espírito imortal e utilidade dos astros.
Inevitavelmente, como se poderia esperar, essas análises filosóficas
conduziram o pensamento a posturas éticas da conduta humana. A dedução mais
óbvia é a mudança de hábitos que tinham um embasamento racional dos
materialistas. Diante da imortalidade e do entendimento melhor do Criador,
formou-se uma atitude de religar a criatura ao Criador, justamente pela mudança
ética e íntima do comportamento. A “Religião Espírita” como se caracteriza nesse
momento, é o resultado, portanto, da transformação moral, porém interior, em
busca da consciência universal de criatura imortal. Na prática, isso significa o
reconhecimento da possibilidade de abandonar os rituais exteriores há muito
ensinados, a concretização de uma fé racional “que enfrenta face a face a razão
em todos os momentos da humanidade”, e, no desenvolvimento intelecto-moral da
criatura, a síntese de todas os deveres humanos na prática da Caridade. Não é
curioso, desse modo, que a esmagadora maioria de todos os Espíritos comunicantes
de todos os tempos, os do século XIX, do século XX, de hoje e de sempre,
identificam-se como embaixadores de Cristo entre os homens. Perante esse
horizonte agora candidamente percebido, nunca ficou tão claro a moral e os
ensinos de Jesus e seu Evangelho como roteiro ideal na estrada do progresso
espiritual.
O Espiritismo é, assim, resultado da ruptura da pedra sepulcral espalhando a
Verdade pura. Articula-se como uma Religião racional eminentemente libertadora e
consoladora com a proposta de restabelecer os ensinamentos do Cristo em bases
fortes de uma nova ciência rigorosa e de uma doutrina filosófica amplamente
esclarecedora das dúvidas e angústias humanas. Essa integração abrange qualquer
cultura humana por desvendar a nossa origem, destino e natureza, bem como nossa
relação com a matéria.
Referências bibliográficas:
- Kardec, Allan (1999) A Gênese, 19a Edição. LAKE. Cap. I,
III e XI. - Kardec, Allan (1999) O Livro dos Médiuns, 21a Edição. LAKE.
- Kardec, Allan (1862) Revista Espírita.
- Sausse, Henri. Biografia de Allan Kardec
Novembro / 2001