História do Cristianismo XIV
O astrônomo polonês Nicolau Copérnico enviou a Roma uma cópia de sua tese
sobre o movimento dos planetas no mesmo ano de sua morte, 1543. Em carta anexa,
pedia ao papa Paulo III, tolerância para a teoria que o ajudaria a revolucionar
o conhecimento do mundo físico: a de que o sol é o centro do universo, e não a
Terra, como era sustentado pela Igreja Católica na época.
Longe de ser saudado como uma contribuição científica, o livro despertou
furor e esteve no Index das obras proscritas pela Santa Sé até o séc.
XIX. Tornou-se ainda mais notável como pivô do julgamento de Galileu Galilei, a
mais famosa vítima da intolerância religiosa.
O que levou o físico e astrônomo italiano às mãos da Inquisição, em 1633, foi
ter tentado provar que a teoria heliocêntrica de Copérnico estava correta.
Na segunda-feira passada, mais de 400 anos depois, a história deu a volta
completa, e Copérnico encontrou um defensor de peso no seio da Igreja Católica –
o próprio papa. Em essência, o que João Paulo II disse na universidade que leva
o nome do astrônomo em Torun, sua cidade natal na Polônia, é que não há
contradição entre fé e razão.
A defesa de Copérnico nada tem de casual. Pode ser melhor entendida no
contexto do exame de consciência com o qual João Paulo II pretende preparar a
Igreja Católica para o terceiro milênio. A tarefa inclui uma varredura em regra
do entulho sombrio acumulado por séculos nos porões da Santa Sé. Logo depois de
assumir o trono de São Pedro, em 1978, ele nomeou uma comissão mista
internacional para estudar a reabilitação de Galileu. Para escapar da fogueira,
o astrônomo precisou abjurar suas teses e viveu os últimos oito anos de vida em
regime de semi-reclusão, obrigado a uma penitência de recitação de salmos.
É por envolver Copérnico que a danação do italiano toca pessoalmente o papa.
Karol Wojtyla, o atual João Paulo II, foi cardeal em Cracóvia, a cidade polonesa
onde Copérnico estudou.
Galileu Galilei foi oficialmente reabilitado em 1992. O livro de Copérnico
deixou o índex em 1822. A ironia é que, apesar da inegável contribuição à
ciência moderna, Copérnico e Galileu tropeçaram num erro fundamental. Isso
porque o sol é o centro de um sistema planetário, não do universo, como
imaginavam. O papa da época, por sua vez, apegou-se a uma interpretação literal
da Bíblia e temeu não haver lugar para Deus em um mundo cujo
funcionamento pudesse ser comprovado por método científico.
Para João Paulo II, ao contrário, a verdade científica é irmã da verdade
religiosa. Três anos atrás, chegou a declarar a teoria da evolução e a fé em
Deus como assuntos compatíveis. Exposta pela primeira vez em 1859, pelo
naturalista inglês Charles Darwin, a teoria de que os seres vivos evoluem até
hoje é contestada por cristãos radicais porque contradiz a explicação literal da
Bíblia para a criação da vida na Terra.
João Paulo II é o papa que mais tem se esforçado para estabelecer um
relacionamento amistoso entre a ciência e a fé – a reabilitação de Copérnico
deve ser vista também como parte desse empenho.
Em Torun, o papa defendeu o astrônomo citando sua última encíclica, Fides et
Ratio (Fé e Razão), divulgada em outubro do ano passado. Falando a estudantes e
professores, muitos deles ex-colegas de seu tempo como professor de filosofia na
Polônia, João Paulo II advertiu que desprovida de razão a fé se arrisca a deixar
de ser “uma proposição universal”. “O que o papa está dizendo é que a fé sem
razão descamba para a superstição e para o misticismo”, interpreta o teólogo
Oscar Beozzo, de São Paulo. “Ao mesmo tempo, ele pede uma razão aberta ao
mistério.” A lua-de-mel entre a ciência e a fé não é perfeita. Pisa-se em ovos
quando o assunto envolve bioética, como a fertilização in vitro. “O que é
preciso”, disse João Paulo II na Polônia, “é estabelecer limites para a
intervenção da tecnologia humana na natureza.”
Sempre se considerou escandaloso que a fé se tivesse colocado contra a
ciência. A novidade com João Paulo II é a disposição para reconhecer que houve
algo de errado no comportamento dos doutores da Igreja. Ele remoeu a consciência
católica ao se desculpar, ainda que muitas vezes indiretamente, pelos horrores
da escravidão africana, pelo massacre dos indígenas na América e também pelo
próprio silêncio durante o extermínio dos judeus na II Guerra. Em todos os
casos, a Igreja preferiu pedir desculpas pelos erros individuais dos católicos,
mesmo quando eram membros importantes da hierarquia, sem admitir
responsabilidade como instituição. Há quem torça o nariz ao fato de o mea-culpa
poupar a Santa Sé. Muito mais surpreendente, contudo, é a coragem de ir tão
fundo no reconhecimento dos pecados do passado. “Que outra instituição tem
julgado a si mesma e reconhecido que cometeu falhas?”, pondera o padre João
Batista Libânio, professor de teologia em Belo Horizonte.
O exame de consciência a que está sendo submetida a Igreja nada tem a ver com
a doutrina. João Paulo II é conservador em todos os assuntos que digam respeito
a fé, moral e ritual. Em seus pronunciamentos, o papa enfatiza a
indissolubilidade do casamento, condena o aborto e os métodos artificiais de
contracepção. Não quer ouvir falar em sacerdócio feminino nem no fim do
celibato. É bem provável que a Igreja chegue ao ano 2000 de consciência mais
leve – mas com certeza não terá nada de pós-moderna.
(Publicado no Boletim GEAE Número 421 de 10 de julho de 2001)