Rubens Romanelli
Caminhava eu, certa vez, pela estrada solitária e agreste que me conduzia da cidade à quinta, onde então residia. Embora me fosse ela muito familiar, eu a percorria cautelosamente, já porque, além de estreita e tortuosa, era construída sobre uma vertente alcantilada, já porque a escuridão da noite não me permitia divisar sequer o solo onde pisava.
Avançava, assim, atento em não afastar o pé da estrada, quando súbito rumor me desviou a atenção. Apurei o ouvido e pude perceber que alguém emergia da curva além e, a passos lentos e graves, se movia em minha direção. Recordei-me, então, de que, na noite precedente, um grupo de malfeitores assaltara certa loja da cidade e viera esconder o produto do roubo naqueles sítios desertos. Bastou-me essa recordação para que logo me confiasse a estranhos pressentimentos.
Não obstante, continuei a andar em direção ao vulto, ao mesmo tempo em que ele, resoluto, como se abrigasse no íntimo um sinistro propósito, marchava ao meu encontro. Tive, então, ímpetos de recuar, já que, naquela situação, não havia outro meio de fugir ao perigo, cada vez mais iminente. Mas, ia já alta a noite e importava-me, a todo custo, chegar a casa, aliás já bem próxima, onde esperavam por mim os meus familiares. Era, pois, inadmissível retroceder: um supremo apelo aos brios de homem encheu-me de coragem, dessa coragem que não passa de uma fuga para a frente, e, então, decidi-me a avançar. Quando já me encontrava diante da estranha personagem, pronto para um gesto de defesa, soltei um profundo suspiro, pois a figura monstruosa que eu idealizara não passava de um burro, um pacato burro…
Apenas me refiz do susto, concluí, surpreso, que a insignificante ocorrência, cujo epílogo tinha algo de cômico, me oferecia, não obstante, ensejo a amargas reflexões. Com efeito – indaguei melancolicamente -, por que, há pouco, me dominava o sentimento do temor, ante a perspectiva de defrontar-me com o irmão homem? E por que razão agora me sinto tranqüilo e seguro, junto ao irmão burro? Acaso, não é o burro o irracional e o homem o racional? Sim, respondi-me, por isso, precisamente por isso! Um é manso por instinto, enquanto o outro é mau por reflexão. Daí, talvez, aquela dolorosa sentença com que ilustre sábio traduziu seu extremo desencanto dos homens: “Plus je connais les hommes, plus j’aime les bêtes” (quanto mais conheço os homens, tanto mais amo os animais).
Todavia, não é lícito desesperar do homem. É certo que ele se degradou, por aberração dessa racionalidade de que tanto se orgulha. Mas a degradação gerou a dor que o crucia, a dor iluminar-lhe-á a mente e, por virtude dela, ele haverá de redimir-se. É da lei.
(Do Livro “Primado do Espírito” – Cap. 6 )
(Jornal Mundo Espírita de Novembro de 98)