Mocinhos e Bandidos
Lucas, 9:51-56
Jesus decidira atravessar a Samaria, não obstante a hostilidade de seus
habitantes. Durante a jornada, alguns companheiros adiantaram-se para pedir
pousada numa aldeia.
Ninguém quis hospedá-los, mesmo porque se dirigiam a Jerusalém, cidade que
sustentava as divergências maiores com os samaritanos. Eles não a aceitavam como
a sede do judaísmo.
Jesus recebeu serenamente a notícia, mas os irmãos Tiago e João, filhos de
Zebedeu, não se conformaram. Afinal, era da tradição que se acolhesse o viajor.
Além do mais, tratava-se do Messias! Indignados, imaginaram inusitada
represália:
– Senhor, queres que mandemos desça fogo do céu e os consuma, assim como
fez Elias?
Imagino Jesus a sorrir, ante tão desvairada sugestão. E os admoestou:
– Vós mesmos não sabeis de que espírito sois, pois o filho do homem não veio
para destruir os homens, mas para salvá-los.
Tiago e João ficariam conhecidos como os irmãos Boanerges, filhos do
trovão, em virtude de sua impetuosidade, sempre prontos às soluções mais
drásticas para os problemas do grupo. Explica-se. Conviveram com João Batista,
que também tinha essa índole. Tiago foi seu discípulo antes de ligar-se a Jesus.
Aparentemente, ambos ainda estavam identificados ao seu perfil.
Inspiraram-se num episódio ocorrido com o próprio João Batista, oito séculos
antes, quando pontificara como o austero profeta Elias (II Reis, 1:9-15):
Acazias, rei da Samaria, enviou um capitão comandando cinqüenta soldados para
prendê-lo. Foram encontrá-lo no topo de um monte.
“- Homem de Deus, desce – disse o capitão.”
E Elias:
“- Se eu sou homem de Deus, desça fogo do céu, e consuma a ti e aos teus
cinqüenta.”
Desceu fogo do céu e os matou a todos.
O rei enviou outro capitão, com mais cinqüenta. A mesma história:
“- Homem de Deus, desce.”
“- Se eu sou homem de Deus, desça fogo do céu, e consuma a ti e aos teus
cinqüenta.”
Foram todos reduzidos a cinzas.
O rei insistiu. Novo destacamento, com a mesma quantidade de soldados. O
capitão, prudente, pôs-se de joelhos e implorou ao profeta que não os
consumisse.
Certamente ele teria ignorado o pedido, não fosse a interferência de um anjo,
que lhe recomendou seguisse com os soldados.
Para Elias, os homens eram “mocinhos” ou “bandidos”?
Que ardessem no fogo os bandidos, aqueles que contrariavam a “vontade de
Jeová”, que costumava confundir com sua própria vontade. Exatamente o que
pretendiam Tiago e João, em relação aos samaritanos.
Obviamente ainda não haviam assimilado a mensagem cristã, e também dividiam
os homens em “mocinhos” e “bandidos”.
Essa tendência sustenta o absolutismo religioso, a pretensão de que Deus
tenha representantes exclusivos na Terra, intérpretes infalíveis de Seus
desígnios – os “mocinhos”, contrapondo-se, àqueles que pensam diferente – os
“bandidos”.
Tal equívoco, a par das tendências humanas à agressividade e à intolerância,
fez correr rios de sangue na História.
Vemos, com freqüência, estes “prepostos divinos” empunhando a espada para
combater os “infiéis”.
Os judeus foram dignos representantes do Absolutismo, concebendo que todo
inovador deve ser recebido com pedradas. Atravessaram séculos da sua história
passando a fio de espada os “bandidos”.
O Cristianismo foi “mocinho” e, também, “bandido”. Os cristãos foram
cruelmente perseguidos pelos pagãos, ao longo dos séculos, nos primórdios do
Cristianismo: “mocinhos” sacrificados por “bandidos”.
Depois mudaram de lado. A partir do século IV, quando Constantino iniciou o
movimento que o transformaria em religião oficial do Império Romano, o
Cristianismo passou a impor seus princípios pela força, guerreando sem tréguas
os adeptos de outras crenças. Rios de sangue correram durante as funestas
Cruzadas, quando os cristãos da Europa pretenderam libertar o solo sagrado da
Palestina do jogo árabe, substituindo a cruz pela espada. A Inquisição,
responsável pela morte de dezenas de milhares de pessoas, é triste exemplo dessa
intolerância.
A mesma pergunta de Jesus serve para todos: de quem era essa gente? De que
espírito? Certamente, não eram de Deus!
Na atualidade temos no Oriente Médio um caldeirão em ebulição, envolvendo
problemas geográficos, políticos e religiosos, entre árabes e judeus. Julgam-se
todos “mocinhos”; comportam-se como “bandidos”.
Os judeus não titubeiam, a qualquer ameaça, em bombardear populações
indefesas. Fundamentalistas árabes partem para o terrorismo. A ignorância e o
fanatismo são tão grandes, que alguns assumem postura kamikase. O terrorista
amarra explosivos em seu corpo, fazendo-se bomba viva, que explode em locais
movimentados, matando inocentes. Comete essa atrocidade convicto de que ganhará
o paraíso, por sua bravura. Terá a servi-lo setenta e duas virgens. Um prêmio
que deve balançar a cabeça de muita gente. Um harém no Além!
De quem são esses Espíritos? Certamente, não são de Deus. Não agem por
inspiração divina. São Espíritos da intolerância, do atraso, do preconceito, da
loucura humana.
Tudo seria bem diferente se atentássemos para a advertência de Jesus aos
irmãos Boanerges:
“- Vós mesmos não sabeis de que espírito sois.”
Antes de nos considerarmos “mocinhos”, é preciso definir se realmente
representamos a vontade divina. Se nos inspiramos em Deus é inconcebível
agredir, ainda que com palavras, adeptos de outras religiões, já que eles também
são Seus filhos – nossos irmãos!
Obviamente, o mais elementar dever de fraternidade impõe que admitamos sua
liberdade de consciência e o direito de adotarem princípios compatíveis com suas
necessidades, sua cultura, seu entendimento…
Para Deus não importa se somos católicos, espíritas, protestantes, budistas,
muçulmanos… Não importa nem mesmo se somos ateus! O que o Criador espera de
nós é que nos comportemos como seus filhos.
Se não freqüentamos a mesma igreja, sejamos bons vizinhos; se não temos as
mesmas convicções, respeitemos as alheias; se não caminhamos juntos, sigamos na
mesma direção, exercitando a fraternidade.
Quando nos comportarmos assim, não haverá mais “mocinhos” e “bandidos”.
Estaremos todos no lado certo – ao lado de Deus.
(Reformador – Abril/2001)