Transplantes Salvam Vidas
«Revista de Espiritismo» nº. 34 – FEP
Doar órgãos após a morte física é uma atitude que salva vidas. São os
transplantes que estão em foco. No entanto, pessoas há que exigem que os seus
órgãos não sejam doados. Uma questão polémica que ganhou actualidade com a nova
legislação. Que pensa o espiritismo de tudo isto?
O decreto-lei nº 244794, de 26 de Setembro, que regula a doação de órgãos,
põe em prática o regime de dadores potenciais, utilizando o método do
consentimento presumido. Todos estamos sujeitos a doar os órgãos após a morte do
corpo, a não ser que declaremos expressamente que não queremos ser dadores.
Para esse efeito existe o RENNDA (Registo Nacional do Não Dador), em vigor
desde 19 de Outubro de 1994, que agrega todos aqueles que não quiserem ser
dadores de órgãos.
Em Portugal, há um ano, contavam-se cerca de 30.000 pessoas inscritas no
RENNDA, uma média de 24 não dadores por 10.000 habitantes. Destes não-dadores,
55% são mulheres. Na globalidade, os não dadores são pessoas entre os 55 e os 74
anos, curiosamente, pessoas que à partida não reúnem condições para doar órgãos.
As prioridades em termos de doação de órgãos, em Portugal, são o rim, a
córnea, o fígado e o coração. Presentemente existem cerca de 1.200 pessoas que
estão à espera de um rim.
Nas Caldas da Rainha, apenas cerca de 70 pessoas se inscreveram no Centro de
Saúde manifestando a sua indisponibilidade para doarem órgãos ou tecidos após a
sua morte. No que respeita ao conceito de morte, para o Conselho Nacional de
Ética o critério de morte só poderá ser o da morte cerebral.
Após estes dados, certamente muitas questões nos surgem, a maior parte delas
do foro ético. Pessoas existem que defendem que a inscrição no regime de dadores
deveria ser pela positiva e não pela negativa, isto é, quem quisesse doar
inscrever-se-ia. Está mais que provado por toda a Europa que este regime não
funciona, pois as pessoas mesmo que concordem com a doação de órgãos não se
inscrevem, por negligência na maior parte dos casos. Como a maioria dos dadores
são jovens falecidos em acidentes, lógico é verificar que esses mesmos jovens
não têm como perspectiva o desencarne, logo não se inscrevem. Geralmente as
pessoas só se sensibilizam para estas questões quando passam por situações em
que necessitam de um órgão.
E no caso de uma pessoa que é não dadora precisar repentinamente de um órgão?
A resposta mais rápida seria que era “justo” que essa pessoa não recebesse o
órgão. No entanto, o não dador, em caso de necessidade receberá sempre o órgão
em causa, pois o RENNDA só é utilizado para colheita de órgãos e não para
recepção dos mesmos.
Então o melhor é retribuir a oportunidade, ensejando a possibilidade dos seus
órgãos serem úteis a alguém, salvando vidas, ao invés de se decomporem
inutilmente numa campa de cemitério.
“O António esteve a comer cogumelos. Sentiu-se mal. Foi-lhe diagnosticada uma
intoxicação por cogumelos venenosos. Necessitou de um transplante urgente do
fígado, caso contrário desencarnaria (faleceria). Felizmente existiu alguém que
não foi egoísta ao ponto de pedir para não doar órgãos. Havia um fígado
disponível, foi transplantado e hoje leva uma vida normal”. O António podia ser
qualquer um de nós, uma situação que nos leva a meditar no valor da vida.
Imaginemos agora que o António era de raça negra e o dador de raça branca, ou
vice-versa. Já reparou que a doação de órgãos irá ajudar a valorizar a vida,
desvalorizando os preconceitos rácicos e/ou sociais que porventura existissem?
Há quem advogue que não doa os seus órgãos ou não deixa que os retirem do seu
familiar falecido, por uma questão de dignidade. Que importância tem um cadáver
(que não é a pessoa, pois a pessoa, o espírito, desliga-se do cadáver quando se
dá a morte do corpo físico, demandando outras paragens do plano espiritual) ir
dissecado ou não para debaixo da terra? A dignidade e o respeito já nada têm a
ver com esta situação. Tudo isto se insere no campo dos preconceitos munda-nos.
Além disso, mesmo aquele que decidiu ser não dador para que o seu cadáver não
seja retalhado após a morte, entra numa ilusão, pois mesmo que não lhe sejam
retirados órgãos para doação ele será obrigatoriamente autopsiado, o que é
praticamente a mesma coisa.
De duas uma: ou a vida continua após a morte do corpo físico ou não continua.
Se continua, o desencarnado (falecido) sentir-se-á feliz no Além por saber que a
sua última contribuição na Terra foi ajudar alguém a viver mais um pouco. Se a
vida não continua, que importa à pessoa que morreu (que segundo o materialismo
deixa de existir) que o seu cadáver seja dissecado ou não?
Precisamos despir-nos destes preconceitos, tendo em conta os parâmetros de
maior generosidade, em termos espirituais.
Divaldo Franco opina
Que os transplantes salvam vidas, já todos sabemos. Que a doação de
órgãos é um ato de altruísmo, também. Vamos ver o que pensa deste assunto uma
personalidade do movimento espírita mundial, Divaldo Pereira Franco,
conferencista de renome.
Tivemos com Divaldo Franco uma conversa sobre a doação de órgãos. Vejamos a
sua opinião, nos horizontes que o espiritismo nos abre.
No que respeita à doação de órgãos, existe incompatibilidade perispiritual,
isto é, entre o corpo espiritual do falecido e o daquele que recebe o órgão?
Divaldo Franco – Na realidade não, porque o perispírito (corpo
espiritual) receptor consegue adaptar as futuras células à sua própria
organização. Muitas vezes, quando ocorre a rejeição, estamos diante da Lei do
Carma, que funciona biologicamente, pois, se assim não fosse, a continuidade dos
transplantes daria ao indivíduo a vida imortal na Terra, o que não é possível.
Então a rejeição que existe é apenas física?
DF – Exatamente, é física, graças à necessidade da desencarnação
(falecimento) do paciente, já que ninguém consegue ludibriar as leis divinas. O
êxito, neste campo, invariavelmente, trata-se de uma moratória que a divindade
permite seja dada ao receptor, a fim de prolongar a existência com finalidades
nobres.
O espírito desencarnado (falecido) que ainda está ligado ao corpo sofre
com a extração dos órgãos, poderá ficar ressentido por fazerem isso ao “seu”
corpo e envidar por uma perseguição?
DF – Na realidade não, porque aí entram as leis soberanas da
misericórdia divina. Consideremos, no passado, os cadáveres de mendigos que eram
levados para as faculdades de medicina, a fim de facultarem aos estudantes o
conhecimento dos órgãos e as melhores técnicas cirúrgicas para o prolongamento
da vida. Aqueles cadáveres eram de pessoas desconhecidas, invariavelmente, que
se transformavam sem quererem, em benfeitores da humanidade. No caso da pessoa
ser forçada a doar os órgãos, isto pode produzir-lhe um choque emocional, não
contra quem vai receber, mas contra as leis, entrando inevitavelmente num
bloqueio de consciência, e, pelo bem que vai fazer, mesmo sem o querer, recebe
os frutos sempre que necessite desses benefícios que se transformam, para ele,
em verdadeira graça de Deus. Só o facto de oferecer órgãos saudáveis a pessoas
que estariam a encerrar a sua jornada terrena, já os faz dignos do amparo
divino.
Quanto a sentir dores, a acompanhar o processo de sofrimento, é inevitável,
tal como aconteceria também na inumação cadavérica, em que ficaria a acompanhar
a disjunção molecular, ou na cremação, com o pavor, porque as sensações
permanecem. É o que Kardec examina em “O Livro dos Espíritos” quando
aborda a perturbação espiritual.
No caso das autópsias, o espírito também sofre?
DF – Muitos sofrem. Os sensualistas, os escravos dos prazeres
terrestres, sentindo ainda os fluidos materiais, acompanham com horror as cenas,
especialmente quando as autópsias são feitas num clima de ironia, de ridículo,
de desrespeito pelo ser, por consequência, de desrespeito pelo cadáver. Os
espíritos a eles vinculados agridem-se e agridem, desesperam-se e enlouquecem de
dor, o que lhes aumenta por consequência o sofrimento.
Mais havia a dizer. Para uma melhor compreensão deste assunto remetemos o
leitor para “O Livro dos Espíritos” e “O Céu e o Inferno”, de Allan Kardec, que
poderão encontrar nas principais livrarias do país.
José Lucas