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Não Matarás

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Enéas Canhadas

Este mandamento nos parece redundante, isto é, seria necessário que o Criador precisasse ditar esse mandamento? Não seria suficiente a própria inteligência humana, para perceber quando atenta contra a vida de alguém ferindo uma lei natural e supondo-se detentor da vida de outrem e de si mesmo? No entanto, como se Deus não tivesse nenhum pejo em nos conclamar ao óbvio, no seu código de leis ele insere o mandamento “não matar”. O rabino Nilton Bonder, no seu livro “Código Penal Celeste” afirma que o assassino é, na sua origem, um suicida. Por quê essa afirmação faz todo o sentido? Porque quando alguém atenta contra a vida, está rejeitando a totalidade de si mesmo. Na verdade tudo que queremos matar ou destruir é porque, de alguma forma, nos pertence. Somos criaturas de um mesmo Criador, nesse sentido somos obras da mesma criação. Herculano Pires nos lembra que fomos feitos da luz das estrelas. Ser humilde é acolher os nossos próprios erros sem martírios, é ver-se nu e vulnerável diante de si mesmo, com a tranqüilidade de quem é sábio por perceber que não é possuidor de toda a sabedoria.

Quando atentamos contra a vida estamos recusando parte de nossas vidas e talvez negando conteúdos psíquicos e emocionais da nossa consciência. Estamos negando o nosso próprio processo evolutivo que nos aponta o que já fomos no passado. Também é por isso que Kardec nos aconselha a olhar para nós mesmos e perceber como somos para, assim sabermos melhor quem fomos. Fugir à consciência do que somos e do que fomos, é como “matar para dentro” na tentativa de negar o que sentimos de onde decorre o que fazemos. É a mesma expressão de quando falamos a respeito de uma pessoa: “não suporto ou não agüento aquele jeito dele”, somente que levada às máximas conseqüências, até o ponto de tornar-se tão insuportável que sejamos capazes de matar.

Essa negação hoje em dia, está matando muito mais nas ruas, quase à porta de nossas casas, no trânsito das cidades e das estradas, pela desnutrição causada pela ignorância que a riqueza produz e ao mesmo tempo desperdiça. Muito mais mortes se produzem por todos esses meios do que pelas guerras. O número de soldados mortos no Iraque, desde que começou a guerra, ainda não é menor do que o número de mortos em um mês, nos acidentes em estradas brasileiras, por exemplo.

É difícil não surgir dentro de nós indagações sobre o que nos leva a matar tão indiscriminadamente. Ficamos alarmados quando vemos os números de mortos em atentados terroristas em várias partes do mundo e esquecemos que, num fim de semana normal, chegam a morrer 40 pessoas vítimas de assassinatos na Grande São Paulo. E pensamos em violência quando ouvimos falar de enchentes e acidentes naturais. Não há violência na natureza. Como dizer a um elefante que ande com cuidado numa loja de cristais? A natureza não tem intenções, ela não pressupõe matar certo número de pessoas nesse terremoto, e outras tantas no terremoto acolá, porque faz acontecer os seus eventos dentro de uma dinâmica e um fluir espontâneos e perfeitamente articulados com as leis naturais. Toda violência é produzida no interior das criaturas humanas. São sentimentos que não suportamos, são como pacotes de outros que, inadvertidamente ou inconscientemente carregamos. Ou somos esponjas que vamos absorvendo as “gotículas das águas” de emoções que sentimos como se fossem dirigidas a nós quando expressadas pelos outros, e não percebemos que não nos pertencem. Em uma cidade de um país distante havia um homem sábio.

Reconhecido nas redondezas pela sua bondade e tolerância, nenhuma ofensa nem palavra de desprezo ou de desafeto o abalavam. Certo habitante daquela cidade, inconformado com tanta bondade, equilíbrio e pacifismo, teve a ideia de desafiar o velho sábio. Procurou alguém capaz de ofendê-lo ao extremo e verbalizar todos os impropérios que alguém pudesse conceber em sua mente. E depois de dias de desafio e atentados morais àquele homem sábio, o seu desafiante desistiu, vencido, por não conseguir ofender o velho sábio e nem tirá-lo da sua temperança. Por fim perguntaram ao sábio, como ele era capaz de suportar tantas palavras de ofensa e tantos maus tratos verbais. O sábio simplesmente respondeu que não aceitava presentes quando não os merecia. Assim as palavras feitas de pedras para atingi-lo eram como correspondência enviada para o endereço errado. A violência vem da consciência, porque somente na consciência é que são produzidas as intenções.

Os assassinatos praticados hoje em dia, tanto pelas pessoas de algum lugar ou condição social, como também pelos policiais, podem ser comparados a mortes praticadas nos “vídeo games” que, mesmo se contadas às centenas ou milhares, não tem importância nenhuma, pois basta recomeçar o jogo que todos os personagens estão lá novamente, vivos e prontos a serem alvos dos tiros, mísseis e metralhadoras dos comportamentos viciados.?

Cada vez menos os seres humanos, parecem ser capazes de aceitar suas próprias limitações e seus próprios defeitos. Em Psicologia costumamos dizer que as pessoas projetam nas outras os traços ou comportamentos que não conseguem ou não gostam ver em si mesmos. Assim dizemos que alguém está projetando, isto é, depositando no outro os seus medos, por exemplo. Esse fenômeno psíquico está hoje, tão convincente que passamos a agir como se o outro fosse, de verdade, o perigo a ser eliminado. Assim, os nossos medos não percebidos e depositados nos outros, acabam por destruir a nós mesmos. Acabamos nos fazendo vítimas dos criminosos que podem, sorrateiramente, nascerem e crescerem dentro de nós. Assim sendo, o que fazemos aos outros é o reflexo nítido ou nebuloso no espelho de nós mesmos, da nossa consciência, um espelho que dispomos do nosso Eu, refletindo as nossas próprias imagens, como se fossemos habitantes de uma sala de espelhos, onde vemos refletidas imagens distorcidas de nós mesmos, fazendo-nos monstros, seres ridículos pelo grotesco de nossas próprias fantasias, imaginações e maldades.

Uma boa auto-imagem talvez estivesse contida nas nossas crenças, nas nossas superstições que são a ponta do iceberg dos nossos temores. Quando dizemos com muita facilidade que temos vontade de matar este ou aquele vendedor porque nos atendeu mal na loja onde fizemos compras, estamos falando da facilidade que temos de pensar em eliminar o outro. Se ainda estamos longe da atitude real de ir até a loja e matar o vendedor, estamos muito próximos, pelos nossos pensamentos, da possibilidade de exterminar o outro. Para que olhar para dentro de nós mesmos, a fim de nos conhecer melhor em cada uma de nossas incoerências, dúvidas, fraquezas ou temores, se podemos facilmente pensar em eliminar o outro?

Estas frases que verbalizamos de maneira inconseqüente e leviana, falam de verdadeiros monstros que moram no nosso íntimo como se fossem habitantes de mares profundos. Certa vez uma pessoa me disse, que tinha medo de se conhecer porque corria o risco de ver soltos, os cães negros que moravam dentro dele. Assim somos por causa, ainda, da proximidade da condição animal que mora dentro de nós. Ainda somos movidos por instintos e ações instintivas que não foram transformadas pela consciência e pelo autoconhecimento.

Tirar a vida de alguém é sentir-se com vocação para ser absoluto. E não somos o Absoluto. Pelo contrário, fragmento é que somos. Irracional é o ato do fragmento determinar o que deve ser e como deve ser o todo.