Kardec, o Pedagogo
Com apenas vinte anos de idade (1824), o jovem e talentoso professor Rivail
dava, a público, pela tipografia de Pillet Ainé, de Paris, o seu primeiro livro:
“Curso Prático de Aritmética, segundo o Método de Pestalozzi, com modificações”.
Eram dois tomos em formato grande, recomendados aos educadores e às mães de
família. Essa valiosa obra, que teve várias reedições, abre-se com um “Discurso
Preliminar” em que Rivail recorda um dos seus primeiros e mais queridos mestres
e escreve: «Devo aqui prestar homenagem a uma pessoa que protegeu minha
infância, o sr. Boniface, discípulo de Pestalozzi, professor tão distinto pela
sua erudição como pelo seu talento para ensinar. Ninguém mais do que ele possui
a arte de fazer-se amado pelos seus alunos. Foi um dos meus primeiros mestres e
sempre me hei de lembrar com que prazer meus colegas e eu freqüentávamos as suas
aulas. Cheio de amor pela infância, ao mesmo tempo que verdadeiro filantropo,
fundou uma escola à Rua de Tournon, no bairro de Sain-Germain, que bem mereceu
os elogios que lhe dispensam as pessoas mais distintas e merecedoras. Ë autor de
vários trabalhos, entre os quais um “Curso de Desenho Linear”, muito estimado».
Daí se poderia deduzir que Rivail freqüentou a escola da Rua de Tournon. O
sr. Boniface deve ter sido parisiense. Ora, ao que parece, Rivail não foi a
Paris antes de 1820. De qualquer maneira, foi graças a este mestre que Rivail
escreveu sua primeira obra. “O sr. Boniface – diz ele – houve por bem ajudar-me
com seus conselhos”, melhor ainda, sugeriu-lhe a idéia desse “Curso”, no qual
explica o método do professor pestaloziano e os princípios que lhe formam a
base, revelando a seguir o seu alto espírito altruístico, ao declarar:
“Desejando tornar-me útil aos jovens e concorrer com todas as minhas forças para
aplainar-lhes a trilha árdua dos estudos, aproveitarei, com empenho, os
conselhos que de boa vontade me chegarem de pessoas que me são superiores pelo
saber e pela experiência, considerando que a aprovação dos homens de bem sempre
me será gratíssima recompensa”.
Quem assim se expressava era um jovem de vinte anos, mal saído dos bancos
escolares, mas já vivamente interessado em libertar da ignorância, com todas as
suas perniciosas conseqüências, a juventude de sua pátria. Com esse primeiro
livro, Rivail iniciou na França a sua missão de educador e pedagogo emérito, ali
se afirmando como a maior autoridade no método Pestalozzi.
Durante trinta anos, sobrepondo-se às incompreensões e aos reveses,
empenhou-se de corpo e alma em instruir e educar um sem número de crianças e
jovens parisienses, segundo modernas práticas pedagógicas por ele mesmo criadas,
muitas das quais só mais tarde, no século XX, seriam retomadas e largamente
difundidas por ilustres reformadores do ensino.
Quando o Prof. Rivail deixou a Suíça, rumo a Paris, ocupou-se em traduzir
para o alemão obras de grandes autores clássicos da França, dando preferência
aos escritos de Fénelon, alguns dos quais, como “Telêmaco” receberam
inteligentes notas e foram publicados posteriormente para uso nos educandários.
Já nessa época Rivail era lingüista notável e poliglota, tanto que conhecia a
fundo e falava correntemente o alemão, o inglês, o italiano e o castelhano,
podendo exprimir-se facilmente em holandês e possuindo sólidos conhecimentos de
latim, grego e gaulês.
Fundou e dirigiu em Paris uma Escola do Primeiro Grau (1825), que não sabemos
por quanto tempo subsistiu. Sabemos que ele criava, logo em seguida, um
Instituto Técnico e que rapidamente ganhou fama. Situava-se à Rua de Sêvres nº
35 e era semelhante ao Instituto de Yverdun. Posteriormente auxiliado pela
Professora Amélie Gabrielle Boudet, com quem se consorciou em 1832, desenvolveu
ali notável trabalho de aprimoramento da inteligência de centenas de alunos, aos
quais carinhosamente chamava “meus amigos”, dando-lhes repetidas vezes este
conselho: “Instruindo-vos, trabalhais para a vossa própria felicidade”.
O associado do Prof. Rivail – ao que parece um seu tio – tinha paixão pelo
jogo; ele arruinou o sobrinho perdendo grandes quantias em Spa e Aixla-Chapelle.
Rivail liquidou o Instituto, restando da partilha 45.000 francos para cada um
dos sócios. Essa soma foi colocada pelo casal Rivail nas mãos de amigos íntimos
que fizeram maus negócios e cuja falência deixou sem nada os credores.
Necessitando de capital para dar prosseguimento à sua obra educativa, o Prof.
Rivail empregou-se como “contrôleur” no Théatre des Délassements —
Comiques. então funcionando no Boulevard du Temple, episódio que os
adversários do Espiritismo não se esquecem de lembrar, fazendo-o com ironia e
sarcasmo. Afirma o jornalista parisiense René du Merzer, do qual promana a
informação, revelada logo após o sepultamento de Kardec, que pouco depois o
Professor Denizard Rivail abandonava o referido Teatro para trabalhar como
guarda-livros na livraria religiosa de Pélagaud e nos escritórios de “L’Univers,
influente folha católica (se assim se pode considerá-la) fundada em 1836.
Ocupado durante todo o dia, dedicava as noites à elaboração de novos e
importantes livros de ensino e pedagogia, à tradução de obras do inglês e do
alemão e à preparação de todos os cursos que ele, juntamente com o Prof. Lévi
Alvarés, dava a alunos de ambos os sexos no Faubourg de Saint-Germain. “A
educação, – frisava na época o grande discípulo de Pestalozzi – é a obra de
minha vida, e todos os meus instantes eu os dedico a esta matéria”
Fundando à Rua de Sêvres n.º 35, um Liceu Polimático, ai
organizou, de 1835 a 1850, cursos gratuitos de Química, Física, Astronomia e
Fisiologia, “empresa digna de encômios em todos os tempos, mas, sobretudo, numa
época que só um número muito reduzido de inteligências ousava enveredar por esse
caminho”.
Lecionou também Matemática e Retórica, sendo vastos os seus conhecimentos
filológicos e de gramática da língua francesa, como o demonstram algumas obras
de sua autoria. Preconizou o desenho geométrico, a leitura ponderada, os
exercícios práticos de redação, e considerou útil o estudo e o exercício da
música vocal.
Aplicando todos os seus esforços no desenvolvimento das virtualidades
intelectuais e morais da juventude, não lhe pode ser contradita a formação de
humanista cristão. Dirigiu críticas ao método pelo qual se aprendia História, em
que dava importância demasiada a datas e a fatos políticos, salientando que o
verdadeiro objetivo da História deve ser “o estudo dos usos e costumes, do
progresso artístico e científico das várias épocas”. A fim de obter maior
aproveitamento dos alunos, chegou a inventar um quadro mnemônico que facilitasse
o estudo da História da França. Chef d’ Institution da Academia de Paris,
o Prof. Denizard Rivail tornou-se membro de dezenas de Sociedades e Institutos
culturais de sua Pátria, quase todos da capital.
Ë bastante longa a lista de obras didáticas que escreveu, só ou com
Levy-Alvarés. O ano de publicação é, às vezes, incerto, mas julgamos útil
lembrar alguns títulos, para dar Idéia de sua atividade pedagógica:
“Gramática normal dos exames”, ou soluções racionais de todas as perguntas
sobre gramática francesa, propostas nos exames da Sorbonne e em todas as
Academias da França para obtenção de certificados e diplomas de habilitação e
para admissão ao funcionalismo público, resumindo a opinião da Academia Francesa
e de vários gramáticos sobre os princípios e dificuldades da língua francesa.
Obra escrita em colaboração com Lévy-Alvarés.
“Curso de cálculo de cabeça”, pelo método Pestalozzi (para uso das mães de
família e dos professores, no ensino de crianças pequenas).
“Tratado de Aritmética”- (3.000 exercícios e problemas graduados). Único que
contém o método adotado pelo comércio e pelos bancos para o cálculo de juros.
“Questionário gramatical, literário e filosófico”, em colaboração com
Levy-Alvarés.
“Manual dos exames para certificados de habilitação”.
“Catecismo gramatical da língua francesa”.
“Soluções racionais das perguntas e dos problemas de aritmética e de
geometria usual”, propostos nos exames do “Hôtel de Ville” e da Sorbone.
“Solução dos exercícios e problemas do tratado completo de aritmética».
Suas últimas obras pedagógicas publicadas foram:
“Ditados normais dos exames do “Hôtel de Ville” e da Sorbonne”.
“Ditados especiais sobre as dificuldades ortográficas”.
As suas obras são adotadas pela Universidade de França, o que vem coroar, de
certa maneira, um quarto de século de atividades ao serviço da instrução
pública.
Aliás Rivail não renuncia aos seus “Planos e Projetos”. Depois do “Programa
de estudos conformes ao plano de instrução”, editado em 1838, publica às suas
custas, um “Projeto de reforma”, em que trata dos exames e dos educandários para
jovens, acompanhado de uma proposta concernente à adoção das obras clássicas
pela Universidade, a respeito do novo projeto de lei do ensino, O Projeto
é de 1847 e a indicação “impresso na casa do autor, Rua Mauconseil, 18, leva-nos
a crer que Rivail se tivesse mudado da Rua de Sévres. Também é interessante
notar que, entre os seus títulos citados na obra «Membro da Real Academia de
Ciências Naturais de França, etc. já não figura o de “discípulo de Pestalozzi”.
Isto não significa, entretanto, que o autor tivesse esquecido completamente as
lições do mestre sobre a “natureza da criança”, o “papel da mãe e do
Professor-Jardineiro”.
Vemos que Rivail, ao término de longa atividade e experiência pedagógica
estava preparado para a outra tarefa, a fundação do Espiritismo. Foi graças à
sua clareza e concisão – rigor todo cartesiano – que ele conseguiu por em
evidência tudo o que era válido no fato espírita. Em toda a obra espírita não
encontramos um episódio sequer em que Allan Kardec se deixasse arrastar por
palavras descontroladas ou por alguma divagação inspirada. Isto prova que soube
canalizar o seu substrato religioso no rumo da explicação positiva. E é
exatamente isto que constitui a mais profunda característica do Espiritismo.
Mais do que nunca, somos levados a pensar que a vida de Allan Kardec e a
fundação do Espiritismo Científico são coincidentes.
À força de escrever obras de aritmética, de geometria, de química, de física,
de história, de literatura, etc,. Rivail tinha-se tornado homem de grande
instrução. Nada lhe era desconhecido. Sua curiosidade baseava-se em sólido
método de pesquisas. Embora trabalhando para a educação das crianças do seu
país, transforma-se em homem sem pátria, sem ligações particulares. É o homem
universal. As ciências, o estudo das humanidades, ensinaram-lhe que o homem,
para ser verdadeiramente livre, deve tomar consciência de seu universalismo. O
espírito de tolerância, de caridade, deve ser mais forte que o de clã, de seita
ou de igreja, de grupo limitado no tempo e no espaço.
Ao cessar a publicação de seus trabalhos pedagógicos, Rivail passou a se
interessar mais pelos problemas sociais. Ao mesmo tempo sua curiosidade era
despertada para os fenômenos “Insólitos”, que se produziam e eram observados na
América, na Inglaterra e na Alemanha. A carreira do Prof. Rivail estava.
chegando ao fim. Allan Kardec vai surgir e não é tão somente.
(ver continuação na revista)
Revista Internacional de Espiritismo – Julho – 1969
Responsável. p/ transcrição: Wadi Ibrahim