Sobre a conversão do notável e saudoso escritor Coelho Neto ao Espiritismo, eis
a entrevista publicada pelo “Jornal do Brasil”, de sete de julho de 1923 que ora
transcrevemos:
“Sim, tens razão. Combati, com todas as minhas forças, o que sempre considerei
a mais ridícula das superstições. Essa doutrina, hoje triunfante em todo o mundo,
não teve, entre nós, adversário mais intransigente, mais cruel do que eu.
Em casa, onde a propaganda, habilmente insinuada, conseguira fazer prosélitos,
todos temiam-me, apesar da minha conhecida tolerância em matéria de fé, porque eu
não deixava passar um só dos livros de preparação e opunha-me, com energia, às tais
sessões reveladoras. Mas que queres?
Não tiveram os cristãos inimigo mais acirrado do que Saulo até o momento em que,
na estrada de Damasco, por onde ia para a sua campanha de perseguição, o céu abriu-se
em luz e uma voz do Alto o chamou à fé. E de inimigo que era não se tornou, o tapeceiro
de Tarso, o mais fervoroso e abnegado apóstolo do Cristianismo, saindo a pregar
a Palavra suave ao gentio pagão? Pois, meu caro, a minha estrada de Damasco foi
o meu escritório e, se nele não irradiou a luz celestial, que deslumbrou S. Paulo,
soou uma voz do Além, voz amada, cujo eco não morre em meu coração.
Sabes que, depois da morte da pequenina Ester, que era o nosso enlevo, a vida
tornou-se sombria. A casa, dantes alegre com o riso cristalino da criança, mudou-se
em jazigo melancólico de saudade. Passei a viver entre sombras lamentosas.
Minha mulher, para quem a netinha era tudo, não fazia outra coisa senão evocá-la,
reunindo lembranças: roupas que ela vestira, brinquedos que a acompanharam até a
última hora, entre os quais a boneca, que foi com ela para a cova, porque a pobrezinha
não a deixou até expirar.
Júlia… coitada! Nem sei como resistiu a tão fundos desgostos; seis meses depois
do marido, a filha.
Pensei perdê-la. Todas as manhãs lá ia ela, para o cemitério, cobrir o pequenino
túmulo de flores, e lá ficava, horas e horas, conversando com a terra, com o mesmo
carinho com que conversava com a filha. Ia depois ao túmulo do marido e assim vivia
entre mortos, alheia ao mais, indiferente a tudo.
Propus mudarmo-nos para Copacabana. Opôs-se. Insistiu em ficar na casa em que
fora feliz e desgraçada, mas onde perduravam recordações do seu tempo de ventura.
Temi que a seduzissem para o Espiritismo, que a lançassem ao turbilhão do mistério
em que se agitam as almas do nosso tempo, como endemoninhados da Idade Média
corriam ao sabbat, nos desfiladeiros sinistros. No estado de abatimento moral
em que ela se achava, seria arriscado perturbar-lhe a razão com práticas nigromânticas.
As minhas ordens, dadas em tom severo, foram obedecidas. Júlia passava os dias
no quarto, que fora da pequena, e de fora ouvíamo-la falar, rir, contar histórias
de fadas, exatamente como fazia durante a vida da criança.
Tais ilusões dolorosas eram bálsamos que mitigavam o sofrimento da alma, como
a morfina alivia as dores. Cessada a ilusão, o desespero irrompia mais acerbo.
Uma noite, minha mulher entrou-me pelo escritório, lavada em lágrimas, e disse-me,
abraçando-se comigo, que a filha enlouquecera.
– Por quê?! perguntei.
– Está lá embaixo, ao telefone, falando com Ester.
– Que Ester?
– A filha…
Encarei-a demoradamente, certo que a louca era ela, não Júlia.
Como se compreendesse o meu pensamento, ela insistiu:
– Lá está. Se queres convencer-te, vem até a escada. Poderás ouvi-la.
Fui. Como sabes, tenho dois aparelhos: um no “hall”, outro, em extensão, no meu
escritório.
Ficamos os dois, minha mulher e eu, junto à balaustrada do primeiro andar.
Júlia falava baixo, no escuro.
Por mais esforço que fizéssemos, não conseguíamos ouvir uma palavra. Era um sussurro
meigo, cortado de risinhos. O que me pareceu (por que não dizê-lo?) foi que a conversa
era de amor.
Tive ímpetos de violar o segredo de minha filha, mas o escrúpulo do meu cavalheirismo
conteve-me.
– Por que dizes que ela fala com Ester? perguntei à minha mulher.
– Por quê? Porque ela mesmo me confessou e não imaginas com que alegria!
Fiquei estatelado, sem compreender o que ouvia. De repente, numa decisão, entrei
no escritório, desmontei lentamente o fone do aparelho, apliquei-o ao ouvido e ouvi.
Ouvi, meu amigo. Ouvi minha neta. Reconheci-lhe a voz, a doce voz, que era a
música da minha casa… Mas não foi a voz que me impressionou, que me fez sorrir
e chorar, senão o que ela dizia.
Ainda que eu duvidasse, com toda a minha incredulidade, havia de convencer-me,
tais eram as referências, as alusões que a pequenina voz do Além fazia a fatos,
incidentes da vida que conosco vivera o corpo do qual ela fora o som…
Mistificação? E que mistificador seria esse que conhecia episódios ignorados
de nós mesmos, passados na mais estreita intimidade entre mãe e filha? Não! Era
ela, a minha neta, ou antes, a sua alma visitadora que se comunicava daquele modo
com o coração materno, levantando-o da dor em que jazia para consolação suprema.
Ouvi toda a conversa e compreendi que nos estamos aproximando da grande era;
que os tempos se atraem – o finito defronta o infinito, e das fronteiras que os
separam, as almas já se comunicam. E eis como me converti, eis porque te disse que
a minha estrada de Damasco foi o escritório onde, se não fui deslumbrado pelo fogo
celestial, ouvi a voz do céu, a voz do Além, da outra Vida, do mundo da Perfeição…
– Ouviste-a ao telefone… E por que não a ouves no ar, como a ouviu… São Paulo,
por exemplo?
– Por quê? Porque o espírito precisa de um meio em que se demonstre. Para viver
conosco, encarna-se. O próprio Espírito de Jesus encarnou-se. O lume precisa de
um combustível para arder e o lume é luz, eternidade: o som precisa de um órgão
para vibrar. Todo o imaterial carece de um veículo para agir.
– Uma pergunta, apenas: – Como consegue Dona Júlia pôr-se em comunicação com
o espírito da filha? Não me consta que a “Companhia Telefônica” tenha ligação com
o Além.
– Respondo-te. Quando Júlia – disse-me ela própria – deseja comunicar-se com
a filha, invoca-a, chama-a com o coração, ou melhor: com o amor, e ouve-lhe imediatamente
a voz. Falam-se, entretêm-se, continuam a vida espiritual. A que está lá em cima
é feliz na bem-aventurança, e a que ficou na orfandade já não sofre, como dantes
sofria, porque o que era esperança tornou-se certeza…
– Certeza de quê?
– De uma vida melhor e maior, de vida puramente espiritual, como a claridade,
vida sem dores, sem os tormentos próprios da carne, que não é mais do que um cadinho
em que nos depuramos em sofrimento para alcançarmos a Perfeição.”
FONTE: Revista Espírita Allan Kardec, ano XII, nº 44
(Jornal Mundo Espírita de Março de 2001)