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A Serpente

A Serpente

Todos nós sabemos que o Sr. Deus fez o homem à sua imagem e as imagens se encontram em espelhos. Os espelhos invertem tudo, de trás para a frente ou da esquerda para a direita. As imagens são coisas “de menos”. Então, concluindo, o Sr. Deus está e sempre esteve num lado do espelho, o lado “de mais”. Nós estamos do outro lado do espelho, estamos do lado “de menos”. Já devíamos ter percebido isso antes. Quando a mãe põe no chão a criança que está aprendendo a andar e se afasta alguns passos, ela faz isso para encorajar o filho a caminhar até onde ela está. Assim faz o Sr. Deus. O Sr. Deus nos coloca no lado “de menos” e nos convida a caminharmos até o lado “de mais” do espelho. Como se vê, ele quer que sejamos como ele (Extraído de “Alô Sr. Deus, aqui é Anna”, de Fynn).

A narrativa dos capítulos 2 e 3 do Gênesis é do domínio público, versa sobre a aventura de primeiro casal humano no jardim do Éden e o papel da serpente na mudança de rumo de suas vidas e, por tabela, nos destinos da humanidade. Já comentamos anteriormente que se trata de uma estória e não de história. Resumidamente, o homem e a mulher viviam numa situação paradisíaca e, dotados dos chamados dons preternaturais, não conheciam a morte. Para se manterem nesse estado, podiam comer da “árvore da vida”, mas não da “árvore do conhecimento do bem e do mal”. Eis que surge a serpente, induz a mulher a provar do fruto proibido e a dá-lo como alimento ao seu companheiro. As conseqüências não se fazem esperar e Deus amaldiçoa-os e expulsa-os do jardim do Éden. Fim da estória.

Ao longo dos séculos, os teólogos do velho paradigma cavaram uma trilha interpretativa que acabou inibindo outras hermenêuticas sobre o episódio. Segundo eles, a serpente é Satanás, Adão e Eva caíram em pecado e arrastaram em sua queda a humanidade e toda a criação. Com isso pretendiam explicar como o mal introduziu-se no mundo e salvar a face do Bom Deus, que teria de intervir então em sua própria obra, para salvar-nos do mal. Mas como se trata de uma narrativa mítica e não histórica, comporta outras versões.

Aqui vai uma: em nenhum momento da narrativa está dito que a serpente é o demônio e sim que se trata “do mais astuto dos animais” (Gn.3,1). A serpente é símbolo da sabedoria em diversas tradições, inclusive no Evangelho (Mt.10,16), a responsável pelo despertar de uma nova consciência. Não foi à toa que a serpente procurou primeiro a mulher, mais dada a intuições. Somente a intuição pode romper com as normas estabelecidas e inaugurar novas abordagens da realidade. É ela que permite grandes saltos no tratamento de questões complexas; ao contrário da abordagem racional, passo a passo, mais própria do homem. A serpente, sábia que era, procurou Eva (a intuição) e não Adão (a razão) para alcançar seu objetivo.

Aliás, o que há de reprovável em adquirir o conhecimento do bem e do mal? Depois de Adão e Eva terem comido do fruto proibido, Deus mal disfarça sua admiração: Eis que o homem se tornou como um de nós (Gn.3,22). Se não tivesse havido a “queda”, o homem continuaria a ser o macaquinho feliz que era, alimentando-se só da árvore da vida. Ao provar do fruto proibido inaugura um novo nível de consciência e , portanto, de ser, capaz de atingir a autoconsciência e de resgatar a árvore da vida num novo patamar. A interdição da árvore da vida (Gn.3,24) refere-se ao nosso instinto animal, cuja energia deverá ser redirecionada então, tornando-nos progressivamente mais racionais, intuitivos, criativos e conscientes.

Como nunca existiu um paraíso terrestre, historicamente falando, é na própria história que o homem está sendo submetido a provas. Possuidor de livre arbítrio (Gn.2,15-17), capaz de nomear (Gn.2,18-20) e de discernir entre o bem e o mal (Gn.3,22), saiu pelo mundo afora (Gn.3,23) para testar seus novos poderes. A própria “expulsão” deve ser interpretada como um atestado de maturidade, como “expulsamos” nossos filhos de casa, quando iniciam vida profissional ou se casam. A própria percepção do primeiro casal de sua nudez (Gn.3,7) indica uma maior consciência de si, inclusive de seus corpos e da morte. A mesma expressão “abriram-se-lhe os olhos” foi também usada no episódio de Emaús (Lc.24,31) para indicar que aqueles discípulos haviam ganho uma nova consciência do mistério de Cristo. Também o “esconder-se” (Gn.3,9-10) pode ser visto como uma reação inicial de recuo diante do novo desafio lançado ao homem.

Finalmente, a maldição lançada à serpente: Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre sua linhagem e a dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar (Gn.3,15). A serpente, símbolo da sabedoria, manifesta-se por etapas na vida dos homens. Numa etapa primordial, prevalece a “árvore da vida”, nossa herança animal. Na etapa seguinte, a da “árvore do conhecimento do bem e do mal”, despertamos para o racional, início da jornada propriamente humana. A partir daí, temos de desenvolver a racionalidade, preparando-nos para o despertar da intuição, representada na mulher. Quando a atingirmos, “esmagaremos a cabeça da serpente”, transpondo a fase da racionalidade, o que não se dará sem lutas. Nesse ínterim, podemos esperar que a serpente nos fira o calcanhar, ferimento menor, se comparado com o esmagamento de sua cabeça. Em outras palavras, a descendência da mulher – a intuição – acabará por prevalecer sobre a descendência da serpente – a razão.

Fernando Guedes de Mello, OM*

* Engenheiro, teólogo, praticante de yoga e meditação, e autor do livro “Reencontro Cristão: Reflexões para o Cristianismo do Terceiro Milênio”, Editora DP&A; tel.: (031) 3285-2378; email:mello@task.com.br

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