Enéas Canhadas
“O corpo é o instrumento da dor; se não é a sua causa primeira, é pelo menos a imediata. A alma tem a percepção dessa dor: essa percepção é o efeito”. (Livro dos Espíritos, questão 257) Este efeito da percepção da alma, é certamente, o que podemos chamar de sentir. Como psicólogo, posso chamar isso de sensação, sentimento, percepção ou mesmo emoção. Posso dizer ainda que, tudo que sentimos fica registrado ou nosso consciente ou subconsciente e mesmo no inconsciente, mas também posso dizer que o nosso corpo registra tais percepções e sentimentos. No entanto como espíritas, podemos dizer assinar embaixo do Livro dos Espíritos, que é a alma que tem essa percepção ou sofre os efeitos do que sentimos. E como sentimos!
Há poucos anos atrás, os amores surgiam dos encontros casuais. Ficávamos admirados de pensar como a vida nos causava surpresas. Alguém chegando de tão longe, acabava vindo morar naquela cidadezinha perdida no mapa, permitindo que o mocinho e a mocinha se conhecessem para serem felizes pela vida inteira.
Depois, caminhando um pouco no tempo e pelas invenções humanas, conta-se que alguns casais se formaram porque um dia, quando estavam falando ao telefone, as linhas se cruzaram e começaram a conversar. Depois disso vieram romances e casamentos. Renato Russo nos trouxe mais sabor à vida, com a sua crônica em forma de música contando-nos a história de Eduardo e Mônica que se conheceram numa festa de gente jovem em meio a biritas e papos-cabeça, como ele disse bem: festa estranha com gente esquisita. Quanta gente esquisita nas festas de hoje que nossos filhos freqüentam!
E, de uns anos para cá, apareceu o amor pela Internet. Simulou o acaso, reinventou a surpresa do encontro, dissimulou a procura obstinada, criou artifícios para disfarçar as preferências homossexuais, confundiu a psicologia do comportamento das relações afetivas, descobriu e criou novas maneiras de esperar, trouxe para mais perto o remoto e mudou a geografia que mede as distâncias entre as pessoas. Além de tudo isso, conseguiu fazer todos sentirem de outras maneiras, o que permanece muito longe dos olhos mas, pelos recursos virtuais pode ficar, ilusoriamente, perto do coração. Até porque o coração parece ser, eternamente, crédulo e mesmo aquilo que é virtual ele aceita e acredita como sendo verdadeiro. A Internet deu outro sentido a muitos sentimentos, colocando dúvidas e mesmo invertendo o ditado que diz “o que olhos não vêm o coração não cobiça”.
Os afetos virtuais ainda não tinham chegado, quando as mulheres tinham ciúmes dos seus maridos devido ao tempo que ele passava com o computador, literalmente, com a máquina propriamente dita. Os homens também sentiam ciúmes do tempo gasto pelas suas mulheres e namoradas na frente do monitor, digitando, e digitando e digitando. O pior ainda estava por vir. Seriam as salas de bate papo e os “chats”. Estes sim, começaram a oferecer perigo real. A interatividade e o diálogo com o outro se tornaram reais, dentro de um mundo virtual que, concretamente, só existe quando o computador está ligado.
Será que o ciúme que alguém sente é mesmo da outra pessoa que está do outro lado frente a outro monitor? Será mesmo isso? Ou será que temos ciúme do que ele ou ela estão “falando”, isto é, escrevendo para alguém. Na era da Internet descobrimos algo mais terrível ainda do que os velhos sentimentos de ciúmes. Temos ciúme do que ele ou ela estão pensando, pois ao escrever os seus pensamentos, eles tornam-se explícitos e pior do que isto, tais pensamentos não são dedicados a mim, mas a alguém. Temos ciúme de que uma pessoa querida possa estar tendo pensamentos afetuosos para com um estranho e não para comigo. Temos ciúme de saber que aquelas palavras não foram pensadas para nós. E como isso pode acontecer, se sempre pensei que os pensamentos dele ou dela eram dedicados e destinados somente a mim? Como lidar agora, com a realidade de que a minha namorada pensa coisas carinhosas, poéticas e românticas e que não me são dedicadas. Quem é este alguém que pode merecer tais confissões, pode desfrutar tais intimidades com alguém que julgo amar e que era só minha? Como admitir que tais intenções existam na sua mente e não sejam dirigidas para os meus sentidos? Como esta propriedade se rebela contra o seu possuidor, sem pedir permissão, sem pedir licença, ignorando os meus sentimentos e as minhas certezas que existiam até instantes atrás? Como viver sem ter certezas? Ainda mais, certezas de amor, de afeto e de afago do que nos vai ao coração? Como a intimidade de alguém pode ser partilhada através de um teclado e com um personagem que só existe no mundo virtual?Talvez seja um ciúme semelhante àquele que sinto quando a minha namorada sente-se enamorada ou fascinada pelo personagem do filme ou da novela. Posso até chegar à conclusão de que ela pensa tais pensamentos. Mas daí a escrever isso é a prova de que além de desejar ela também dirige esse desejo para alguém que, se não existe de fato, existe na fantasia e na imaginação dela ou dele. Quer dizer, tenho ciúme também da fantasia do outro, daquela pessoa que, até então, podia por a minha mão no fogo de que seus sentimentos eram só meus. O medo fica maior ainda quando penso que tais pensamentos dirigidos a alguém que pode ou não existir de verdade, podem encontrar alguém de carne e osso, como eu! Mais ainda, tenho ciúme do desejo que ela ou ele tem de encontrar outro alguém de verdade! E eu, como fico nessa situação? Como convivo com alguém que quer encontrar outra pessoa para ser depositário do seu amor e do seu carinho? Ah! isso é demais! Chega a ser insuportável tal ideia! Não quero mais saber de computador, nem de salas de bate-papo, muito menos de “chats”. Quero voltar ao tempo em que havia um sabor real e muito palpável de conquista ao pegar na mão dela pela primeira vez. Quero voltar ao tempo em que ensaiei durante o filme inteiro para passar o braço por trás do seu pescoço e ainda corria o risco de que a sua mão tirasse a minha do seu ombro. Quero voltar ao tempo em que ficava olhando para o tamanho dos bolsos do seu vestido enquanto ela punha as suas mãos dentro deles na primeira vez em que saímos a passear juntos, e só a idéia de que a minha mão pudesse segurar a sua, dentro do bolso enorme do seu vestido, já me descompassava o coração e, naquele momento, seria eu um candidato à taquicardia se passasse naquela hora por um eletroencefalograma! Contar para os amigos que havia tido tal coragem seria o maior acontecimento do fim de semana, e o melhor e mais incrível daquela experiência fascinante: ela havia permitido que a minha mão segurasse a sua mão. As mãos estavam geladas mas o coração estava quente! Não é isso que dizem: mão fria, coração quente? E a partir de então, conquistava a maior das certezas, a de que estávamos namorando. . .
Tenho dito que depois que inventaram a Internet e o telefone celular – qualquer dia escrevo uma crônica sobre essa maquininha infernal também – a terapia nunca mais será a mesma, pois tenho lidado com muitos sentimentos e dores da alma de pessoas que tem sofrido por causa do uso que um ou outro do casal, fazem dos recursos da Internet ou do telefone celular. Tenho tratado de muitos casos de relacionamentos e até mesmo casamentos, que foram desfeitos a partir de verificações de relacionamentos virtuais. Por isso, acredito que, num arroubo de romantismo, termino esta crônica assim, piegas e quase brega, senão brega mesmo, com a intenção de refletir sobre um dos maiores riscos do namoro pela Internet. É que ele põe em dúvida os sentimentos, desde a sua origem até o seu destino. Sentimentos que já eram difíceis de confirmar, mesmo olhando nos olhos um do outro. Se alguém que conhecemos e amamos, pode desviar o seu olhar para dissimular sentimentos, o que não fará com palavras e mais palavras que podem ser digitadas e apagadas facilmente, uma vez que abolimos o papel e a caneta como testemunhas? Se alguém pode trocar alguém que existe de fato, por alguém que existe apenas na imaginação, do que esses pensamentos não serão capazes?