As Federações e seu Papel no Movimento Espírita
Wilson Garcia
Embora nem sempre perguntem objetivamente, está no interesse dos dirigentes espíritas saber, sobre as entidades federativas do movimento espírita, as seguintes questões: como elas surgiram? Por que foram criadas? Qual o seu verdadeiro papel no movimento espírita? A resposta a estas questões é a chave para o relacionamento entre centro espírita e federativas.
O estudo da História do Espiritismo, como de qualquer ramo do conhecimento humano, é de vital importância para a compreensão doutrinária. Nele estão inseridos o homem e sua atuação, os princípios e seu surgimento, a realidade cultural e social, enfim, elementos que explicam os fatos e facilitam o seu entendimento. Muitos dos acontecimentos que às vezes parecem obscuros ou não apresentam explicações claras podem ser resolvidos à luz da história.
Em razão disso, vamos fazer um retrospecto no tempo, para buscar as raízes do movimento espírita brasileiro e, assim, poder compreender com maiores detalhes esta árvore que hoje abriga a milhões de pessoas, principalmente no Brasil. É preciso esclarecer que não pretendemos, neste estudo, entrar nas minúcias de todos os fatos, pela impossibilidade que isto significaria aqui. Vamos passar em revista alguns acontecimentos importantes, analisar os personagens neles envolvidos e sacar daí razões que possam beneficiar o nosso trabalho dentro das casas espíritas.
É preciso, também, esclarecer que vamos apresentar fatos que muitas vezes chocam com aquilo que gostaríamos de ver. Nós não criamos estes fatos, antes, eles existiram e falam por si: são, portanto, críticos. Com isto, não temos intenção de agredir aqui e ali, muito menos temos interesse de diminuir esta ou aquela instituição. Os fatos, vistos por seu prisma verdadeiro, por mais chocantes que sejam, sempre possibilitam a melhoria do conhecimento doutrinário e de sua prática no centro espírita. Pior acontece com aqueles que, colocados em postos de comando, não querem saber dos acontecimentos: preferem ignorar o passado, como se o presente não fosse o resultado da ação do homem.
Desconhecer o passado pode significar, quando pouco, a má concretização do ideal doutrinário e, na melhor das hipóteses, a sua prática imperfeita, incompleta ou deficiente.
As raízes do movimento espírita brasileiro
Não se pode precisar, com segurança, quando e de que modo a Doutrina Espírita aportou no Brasil. A coisa mais correta a esse respeito talvez seja mesmo o verbo aportar: o Espiritismo aqui chegou, sem dúvida, viajando de navio, na segunda metade do século passado. Imperava no país, principalmente na Corte, a influência da cultura francesa. Tudo o que vinha de Paris era considerado de classe superior. A música, a literatura e o teatro. O Espiritismo, codificado a partir do trabalho de Kardec, era também um dileto filho francês. Deu-lhe bem cedo boas vindas a intelectualidade cabocla.
A cultura indígena estava praticamente abafada. A Igreja Católica espalhara seus tentáculos por todas as partes. Os negros caminhavam para a consolidação do sincretismo de suas crenças com os ídolos católicos. Várias entidades espirituais africanas estavam perfeitamente identificadas com os santos romanos e a essência da religião negra, inclusive seus cultos através do comportamento mediúnico e da crença reencarnacionista, corriam então menor risco. Houve, sem dúvida, uma certa cumplicidade do clero com a manutenção das concepções e práticas negras, uma espécie de acordo mudo com o senhorio, de tal forma que as três partes envolvidas pudessem de alguma forma manterem-se vivas.
Foi nesse ambiente que o Espiritismo se estabeleceu: chegou, convenceu, criou fama, foi fortemente combatido, sofreu influências, permaneceu e alcançou os dias atuais. O primeiro dado conclusivo que se pode tirar é esse: o Espiritismo chegou ao Brasil pelas portas da intelectualidade e com o aval do berço francês. Só mais tarde ele alcançaria as classes mais baixas da escala social, até fixar-se como uma doutrina da classe média brasileira.
Engana-se quem imagina que os fatos espíritas só aconteceram a partir da vinda da doutrina. Absolutamente. Antes mesmo de aqui chegar o primeiro passageiro com O Livro dos Espíritos na mala, já muitos acontecimentos chamados fenômenos mediúnicos ocorriam em locais isolados, muitos deles freqüentados por criaturas dispostas a tirar conclusões sérias.
Parte da intelectualidade assumida apresenta dois aspectos conflitantes: é arrojada, de um lado, e presunçosa, de outro. Para muitos daqueles que retornariam da Europa tocados pelo pensamento kardequiano pouco se lhes dava se o clero se opunha a esse pensamento. Eis aí a demonstração de arrojo. De outra parte, essa intelectualidade não titubearia em criar apêndices para o pensamento kardecista, na presunção de possuir poder para tal. Essa ousadia precoce não demoraria a trazer certos desentendimentos para o coração da nova ordem de sociedade que viria a ser formada. Mais tarde, fato semelhante vai ocorrer com a popularização da doutrina: a classe menos esclarecida, em virtude de suas concepções religiosas e de seus preconceitos, acaba por mesclar a prática doutrinária com ídolos e comportamentos totalmente contrários aos princípios kardecistas. Atualmente, um dos pontos de maior debate reside exatamente neste aspecto.
Se a origem francesa era como que um passaporte para a entrada no país de tudo o que nossos navios traziam, é certo que muito daquilo que vinha de além mar não correspondia à fama. Pouco depois de Kardec, aqui chegou a doutrina de Roustaing, envolvida da mesma aura novidadesca. O pensamento do Codificador a seu respeito não veio junto, sequer poderia ser conhecido. Mais tarde foi até posto de lado. Bem ou mal, Roustaing se estabeleceu e já na chegada instaurou discórdias, sendo com toda certeza a primeira grande divergência do movimento espírita brasileiro. Esta é a segunda conclusão a que se chega. A divergência é tão profunda que vai ultrapassar os tempos, alcançando os dias atuais.
É importante relatar estes fatos porque eles vão influir decisivamente nos destinos do movimento espírita nacional, desde as instituições primeiras que aqui se formaram até os mais letrados pensadores da doutrina dos nossos dias. A Federação Espírita Brasileira, por exemplo, fundada em 1884, acabará se constituindo no principal reduto do pensamento roustanista. Seu Estatuto vai chegar ao ponto de estabelecer como condição “sine qua non” para o associado ascender a cargos diretivos, a sua crença na doutrina de Roustaing.
Esse tipo de posicionamento, em defesa de teses discutíveis, se encontra na liberdade doutrinária um ponto de apoio, de outra parte acaba sendo fator de enfraquecimento da instituição perante o próprio movimento – atualmente há as Federações estaduais a favor de Roustaing e aquelas que não o aceitam. Em alguns outros aspectos, fatos semelhantes acontecerão.
O aparecimento das Federações
No ano de 1884, no Rio de Janeiro, capital da República, sede da cultura nacional, centro de todas as atenções do país, aparecia a Federação Espírita Brasileira, criada a partir do desejo de alguns espíritas cariocas de unir fraternalmente as sociedades espíritas, entre eles o fotógrafo Augusto Elias da Silva, que no ano anterior havia fundado a revista “Reformador”, a qual passou a ser órgão da própria Federação, desde então.
Antes da Federação, várias dissidências haviam sido registradas no principiante movimento espírita brasileiro. O primeiro agrupamento espírita juridicamente legalizado no Brasil, de que se tem notícia, foi o Grupo Confucius, criado no Rio de Janeiro em 1873. Durou pouco: menos de três anos.
Problemas internos levaram ao seu fracasso. Depois foram surgindo outras: Sociedade de Estudos Deus, Cristo e Caridade, Sociedade Espírita Fraternidade, União Espírita do Brasil etc.
Por um bom período, duas instituições desenvolveram atividades paralelas de filiação de entidades espíritas: a União Espírita do Brasil e a Federação Espírita Brasileira. Ambas no Rio de Janeiro. Por fim, e não sem muitos traumas, venceu a Federação. Recorde-se que ao nascer, tanto a União Espírita do Brasil (1882) quanto a Federação Espírita Brasileira (1884) tinham por finalidade reunir debaixo de uma só bandeira os centros e sociedades espíritas do país. Só mais tarde, já neste século, estando a Federação consolidada do ponto de vista político e econômico, é que ela vai se dedicar ao trabalho junto às Federações estaduais. Note-se, ainda, o detalhe: a Federação não surgira do interesse de organização dos centros existentes, mas do desejo de alguns espíritas, individualmente, saídos da divergência de outros grupos e que se reuniam na residência de Augusto Elias da Silva. As lutas internas no incipiente movimento espírita de então, sempre em busca de supremacia de um grupo sobre outro, fez com que o ideal de união das sociedades espíritas permanecesse letra morta por um longo período. A Federação, já com Bezerra de Menezes à frente, não se entendia com o Grupo da Fraternidade, nem com a União Espírita do Brasil e assim por diante. Eis que Frederico Júnior, na Fraternidade, recebe uma mensagem de Allan Kardec, intitulada “Instruções aos Espíritas do Brasil” (ver transcrição ao final deste texto), que provoca grandes discussões no movimento. Sob o comando de Bezerra, resolveu-se fundar uma nova sociedade, com incumbência federativa, tendo o apoio da Federação e outros grupos, exemplo esse que será mais tarde repetido em São Paulo, na fundação da USE. Durou pouco a nova instituição. Ficou Bezerra nela abandonado.
Passaram-se os anos. Em 1903, no Rio de Janeiro, a Federação Espírita Brasileira resolve comemorar o centenário de nascimento de Allan Kardec, organizando um programa de três dias.
Convida as sociedades espíritas do Brasil para estarem presentes. Na qualidade de Federação estadual então existente, apenas a do Amazonas comparece, na pessoa de representantes nomeados. De São Paulo, participou o português Antônio Gonçalves da Silva “Batuíra”, figura exemplar e que dirigiu na época o maior agrupamento espírita do Estado, juntamente com o jornal “Verdade e Luz”, por ele fundado.
Uma decisão tomada então vai ter importância decisiva nos destinos do movimento espírita brasileiro: ficou decidido que se fariam esforços para a fundação de federações estaduais nos “moldes da Federação Espírita Brasileira”. Isso significa que os fatores positivos e negativos da Federação passariam para as que fossem fundadas, inclusive a questão polêmica do roustanismo. Foi o que se deu. Além disso, prosseguiria o sistema de fundar federações através de gestões individuais e não coletivas.
Atualmente, temos no Brasil as federações que aceitam Roustaing e aquelas que não o aceitam.
Criadas para unir o movimento, as Federações não cumprem seu papel
Grande parte das dissenções iniciais, em relação a organismos como a Federação Espírita Brasileira, era resultado da luta pelo poder. Esta questão permanece nos dias atuais, mas já não se constitui em aspecto principal. Vencida esta etapa, à medida em que a consciência dos dirigentes espíritas se abria para a importância da unificação, passou-se a cobrar das federações uma atuação mais precisa.
Assim, em princípios da década de 30, vozes se levantavam de várias partes do país, principalmente das regiões Sul-Sudeste, clamando por uma presença eficaz da Federação Espírita Brasileira junto ao movimento. A Federação havia praticamente abandonado os seus deveres junto a este movimento, preocupando-se acima de tudo com questões de sua própria sobrevivência.
Postada no pedestal de Casa Máter, os dirigentes da Federação não davam ouvidos às reclamações, até que se iniciou um movimento contrário, que aos poucos foi tomando forças e acabou desembocando na realização de uma Assembléia Nacional Constituinte, no Rio de Janeiro, em 1926, voltada para a organização do movimento espírita brasileiro, fundando-se na ocasião a Liga Espírita do Brasil.
A notícia da realização próxima daquele evento fez os diretores da Federação saírem da inércia. Em oposição à Constituinte, ela convocou uma reunião para o mesmo ano e na mesma cidade, onde compareceram representantes de instituições espíritas, ocorrendo assim, a primeira reunião do Conselho Federativo, onde se propôs a dinamização do movimento espírita nacional. A Federação tratou de cooptar os principais elementos que levaram avante a Constituinte e por sua influência a Liga Espírita modificou seus objetivos iniciais, entregando-se às diretrizes da Federação e, mais tarde, transformando-se na entidade federativa estadual do Rio de Janeiro. Estava vencida, assim, mais uma etapa na vida da Federação e podia ela, mais uma vez, respirar aliviada.
Amainados os ânimos, rendidas as resistências, não tardou a Federação a retornar ao estado de inércia anterior, no que diz respeito à direção do movimento espírita brasileiro. O aparecimento do médium Chico Xavier e seu primeiro livro, Parnaso de Além Túmulo, constitui para a Federação uma razão mais forte de atuação: a área do livro, que ela já vinha desenvolvendo a duras penas há vários anos, recebe uma injeção forte. É onde ela concentra suas energias.
A maioria das Federações estaduais seguem-lhe os passos, no que diz respeito ao movimento regional, ou seja, quase nada realizam em prol dos centros filiados, apesar do número restrito destes. Falta-lhes uma visão real daquilo que deveriam realizar. Suas atividades se restringem a reuniões de diretoria, onde boa parte dos diretores quase nunca aparecem, e à luta para pagar aluguéis e outras despesas de sobrevivência. Vale observar que as diretorias destas federações eram compostas quase sempre por pessoas de nome na sociedade, mas cujo verdadeiro ideal espírita ainda não as havia alcançado.
Portanto, elas davam mais atenção aos seus compromissos sociais e profissionais do que ao comparecimento na instituição.
Em São Paulo, o dinamismo não impede a ocorrência de velhas deficiências
A doutrina cedo alcançou São Paulo. E não tardaram a surgir figuras de proa, tomando para si a tarefa de sua divulgação. Uma delas foi um português autodidata, amigo dos estudante da famosa Faculdade de Direito do Largo São Francisco, veloz nas pernas e no pensamento. Seu nome: Antônio Gonçalves da Silva. O apelido: Batuíra. Depois dele, inúmeros outros marcariam o movimento espírita bandeirante. Não se sabe até que ponto as decisões tomadas em 1903, no Rio de Janeiro, se materializaram em São Paulo. Em 1916, surgiu uma estranha instituição, fundada por outro português, Antônio José Trindade, com o nome de Sinagoga Espírita São Pedro e São Paulo. Dois anos após, passa a chamar-se Sinagoga Espírita Nova Jerusalém, em virtude de uma cisão interna, que separou os seus diretores. E após ela, a Liga Espírita, a União Federativa e a Federação Espírita do Estado de São Paulo (Feesp).
É curiosa a história da Feesp. Em 1926, dirigia a revista Verdade e Luz, sucessora do jornal Verdade e Luz, fundado por Batuíra, o dr. Lameira de Andrade. Motivado pelo movimento da Constituinte Espírita e vendo o Espiritismo em São Paulo padecendo dos mesmos males do brasileiro, Lameira resolve, com o apoio de alguns dirigentes de centros espíritas, fundar na capital a Federação Espírita do Estado de São Paulo, o que de fato consegue. Mas, durou pouco esta primeira Feesp, assim como pouco duraria a Liga Espírita do Brasil, consoante os princípios em que fora criada.
As razões desse desaparecimento estão ainda por serem devidamente apuradas. Sabe-se, entretanto, que Lameira de Andrade fora, em São Paulo, ardoroso defensor da Constituinte e que era opositor ferrenho da obra de Roustaing, tendo divulgado diversos manifestos contra suas teses e, inclusive, publicado um livro em que debatia mais profundamente o assunto.
Morta a primeira, surge, dez anos depois, a segunda Feesp, agora sob a direção de outros espíritas e sem contar com o apoio dos centros. Após um período de dura sobrevivência, em que o seu desaparecimento era mais certo do que a continuidade de sua vida, durante o qual o trabalho junto aos centros espírita jamais vingou, a Feesp finalmente se firma como instituição, devido principalmente à chegada daquele que seria, por mais de 30 anos, o seu mais importante dirigente: Edgard Armond. Figura controvertida, esoterista e maçom, Armond soube vencer as adversidades administrativas e levar a Feesp a uma posição de destaque.
Em 1947, Armond convenceu seus pares a convocar um Congresso para dar fim à desorganização em que se achava o movimento espírita paulista. Iria repetir-se em São Paulo o mesmo caso havido no Rio de Janeiro, ao tempo de Bezerra de Menezes. Apenas o desfecho será outro, como veremos. O diagnóstico levantado mostra uma situação alarmante na época, com os espíritas desunidos e praticando mal sua doutrina nos centros espíritas. Ei-lo:
1 – Dispersão sistemática e generalizada, em caminho de desintegração, por força de interferências estranhas e de dissensões que, forçosamente, levariam à formação de cismas ou desmembramentos sectários.
2 – Desvirtuamento da Doutrina por força de interpretações capciosas e individualistas e de práticas nocivas visando interesses e ambições pessoais, com evidente desprezo dos seus postulados fundamentais, mormente os do campo moral.
3 – Disseminação de práticas exóticas, misto de magia e de superstição, com a introdução de ritos de outros credos e cerimônias religiosas de estranho aspecto e significação, tudo o que está designado como “baixo espiritismo” mas que realmente não passa de “falso espiritismo”.
4 – Arbítrio e personalismo, imperantes na maioria das instituições, transformando-as, muitas vezes, em propriedades particulares de uns e de outros, do que resultava afrouxamento cada vez maior da comunhão geral, no campo da fraternidade.
5 – Clandestinidade de muitas instituições existentes que, propositamente, fugiam a uma organização regular e ao intercâmbio, para exercerem práticas condenáveis e explorações da credulidade pública, causando assim confusão e profundo dano à segurança moral da expansão da Doutrina.
6 – Infiltração nas fileiras espíritas de ideologias estranhas, ligadas a movimentos políticos-revolucionários e tentativas reiteradas de dominação político-partidária, tudo incompatível com os sãos princípios e com as finalidades essenciais da Doutrina.
7 – Desconhecimento completo que se tinha do vulto e da extensão do movimento espírita e do perigo que representava para a própria Doutrina a expansão desordenada, sem diretrizes uniformes, sem disciplina, sem subordinação a um organismo central coordenador.
8 – Por último, a ignorância ou o desinteresse que demonstravam inúmeras instituições a respeito do papel e das responsabilidades que o Espiritismo assume, como cristianismo redivivo, na esfera da coletividade mundial.”
A Federação é a mãe do Congresso
Espíritas de várias partes do estado vieram participar do primeiro grande evento unificador em terras paulistas. Foi da Federação, também, a tese vitoriosa, que resultou na fundação de uma nova entidade, a União Social Espírita, depois mudada para União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo (Use). A USE foi a primeira entidade federativa do país a nascer da vontade coletiva, do interesse dos centros espíritas, que realmente vingou.
A ela foi entregue os destinos do movimento espírita no estado. As quatro grandes instituições federativas, então existentes: Feesp, Liga, União e Sinagoga, mais os dirigentes de centros espíritas, ao aprovar a tese de criação da Use acordaram que a ela caberia a incumbência de coordenação deste movimento. E acordaram mais, de que lhe dariam o indispensável apoio para sobreviver e alcançar seus objetivos. Com isto, as quatro se retirariam dos trabalhos federativos, deixando a Use livre para realizá-los.
Três cumpriram a palavra. A Feesp, não. Armond abrigava a idéia de que a criação da Use resolveria o impasse da ocasião, beneficiando o movimento. Mas ele queria mais: desejava unir a Use à Feesp, prevalecendo finalmente esta. Era o poder que estava em jogo. Mas o destino assim não quis. A Feesp, alimentando a esperança de prevalecer sozinha no trabalho federativo, abrigou em sua sede, por muitos anos, a Use. De um lado, cumpria o dever de apoiá-la (e o fez com o ônus material), mas de outro tinha-a sob sua mira. Também por muitos anos, o presidente da Federação era vice-presidente da Use e vice-versa – o presidente da Use era vice na Feesp.
Na década de 70, com a Feesp continuando a federar centros, paralelamente à Use, formou-se uma comissão pró-fusão das duas entidades. Antes do fim daquela década, ambas viram baldados os esforços – o Conselho Estadual da Use convenceu-se de que a fusão seria maléfica para a Use e para o movimento espírita. A decisão acirrou os ânimos, que já estavam de fato exaltados.
O fato marcante deste processo histórico é que, tendo fundado a Use com o objetivo de incorporá-la posteriormente, a Feesp não calculou bem o futuro. Ela criou um filho, mas perdeu sobre ele o domínio antes mesmo que ele alcançasse a maioridade.
A Use cresceu rápido, devido ao trabalho desencadeado logo após sua fundação. O interior do estado, o mais abandonado do movimento, tornou-se alvo de suas atenções. Enquanto contou com colaboradores dedicados, a Use varreu o estado, levando a consciência do trabalho unificado. Logo, surgiram os espíritas useanos, aqueles que nasceram e cresceram doutrinariamente sob o lema da unificação, suficientemente educados na filosofia política da entidade, expressa em conceitos como “a Use somos todos nós”. Assim como os useanos vibravam com o sentimento democrático de sua entidade-mãe, viam na Feesp uma entidade sem as características mínimas indispensáveis ao trabalho de unificação. Esse sentimento cresceu e, nos momentos críticos, exacerbou-se.
Para os useanos, a Feesp era nada mais do que um “centrão”, termo este que passou a ser, na época, sinônimo de Feesp e de um certo modo com contornos pejorativos. Eles a viam com todas as características de um centro espírita que cresceu demasiadamente e que tinha em suas atividades, práticas discutíveis do ponto de vista doutrinário. Não aceitavam a forma como os passes eram dados, uma das heranças de Armond. Este, atendendo aos princípios da organização, tratou de padronizar os passes, após definir-lhe diversas classificações. Aos useanos, passes padronizados passaram a ser sinônimo de ritualismo. Ademais, os cursos criados pela Federação também continham os seus pontos críticos. O que mais influía, porém, era a filosofia paternalista da Feesp, que contrariava a Use, já então plenamente aceita e estabelecida.
Um acontecimento em meados da década de 70 veio abalar ainda mais o trabalho em torno da fusão.
A Feesp, inadvertidamente, lançou no mercado uma nova tradução de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, elaborada por Paulo Alves de Godoy, que continha gritantes falhas, incorrendo o tradutor em erros considerados inaceitáveis. À frente deste movimento postou-se um crítico ferrenho da Feesp, Herculano Pires. Apesar das resistências iniciais, a Feesp acabou sucumbindo ante a grita geral e não mais editou aquela tradução.
A decisão da Use, de não aceitar a fusão pretendida pela Feesp, causou entre os diretores da Federação um mal estar indiscutível. O sentimento de perda do poder ecoou na classe dirigente da instituição com tal intensidade que decidiram dar uma resposta à Use, na forma de aprovação, para a própria Federação, do Estatuto preparado para a nova Feesp que surgiria da fusão. Isto só fez os useanos sentirem-se mais fortes e seguros ante a decisão que haviam tomado.
Assim, a Feesp prosseguiu, agora com mais liberdade, filiando e atendendo os centros espíritas, dentro de suas características paternalistas, com as quais leva a todos, os cursos, os passes padronizados, palestrantes e orientações diversas. A Use seguiu o seu caminho, livre do apoio material da Feesp e sem o compromisso da fusão. A nova situação obrigou-lhe a partir para a superação de dificuldades que até então não a preocupavam. A necessidade de uma sede própria surgiu como meta impostergável, o que lhe tomaria alguns anos de luta, até finalmente consegui-la. E assim ela vive, nos tempos atuais.
O “Pacto Áureo” e suas conseqüências
A fundação da Use, em São Paulo, em 1947, inicialmente não foi bem vista pela Federação Espírita Brasileira. Tanto é isso verdade que o representante de São Paulo junto a ela era na ocasião a União Federativa, que assim continuou por algum tempo, mesmo tendo sido criada a Use. Somente a força irresistível dos fatos levaria a Federação, mais tarde, a aceitar a Use. Havia, na verdade, entre os espíritas paulistas e cariocas uma animosidade semelhante à que preponderava nos aspectos regionais. Como dissemos atrás, após vencer as resistências em 1926, com o advento da Constituinte Espírita, entrou a Federação em novo período de hibernação com relação aos seus deveres perante o movimento de unificação. Em 1949, essa situação estava insustentável, pois de todos os lados surgiam as reclamações contra a Federação.
O movimento que deu origem à Use espalhou-se por várias partes do país. São Paulo, como Estado-nação, já era visto como uma grande locomotiva. As dissensões São Paulo/Rio influíam, de alguma forma, nos espíritas de ambos os Estados. Ademais, historicamente, São Paulo sempre foi o estado mais próximo do sentimento racional, confrontando com o sentimento exageradamente místico dos espíritas cariocas. Roustaing, em São Paulo, era mal visto e encontrava, constantemente, um obstinado crítico. Em 1949, essa dura tarefa cabia ao professor Júlio Abreu Filho, o responsável pela tradução da Revista Espírita para o português. Júlio não só criticava a aceitação e imposição de Roustaing pela Federação, como também as atitudes de seus diretores no tocante às edições de obras espíritas. Neste clima, a Use organizou e realizou dois anos após a sua fundação o Congresso Brasileiro de Unificação Espírita, com a seguinte justificativa: “A situação do Espiritismo em São Paulo”, ante o aparecimento da União Social Espírita, se bem que em escala reduzida e atenuada, refletia o que se passava em todo o País. E foi analisando estes aspectos e meditando sobre suas ruinosas conseqüências que se resolveu, sem mais delongas, iniciar o urgente trabalho da unificação.
Três eram os objetivos do congresso, todos demonstrando a ineficácia da atuação da Federação: 1- a unificação do Espiritismo nos estados. Planos de execução. 2- A unificação do Espiritismo nacional. Sistema a adotar. 3- Estudo dos problemas de interesse fundamental e urgente para a marcha do movimento espírita nacional.
A Federação não só esteve ausente do congresso como também desenvolveu intenso trabalho para desestimular a presença dos representantes das federativas estaduais. Conseguiu-o em parte, pois várias daquelas que inicialmente se comprometeram a participar acabaram desistindo. Isto, porém, não diminuiu em muito o evento. A Federação do Rio Grande do Sul, por exemplo, apresentou proposta de criação de uma Confederação Espírita Brasileira, que assumiria o papel Federativo Nacional, que a Federação teimava em não realizar.
O Congresso terminou por aprovar que a Federação do Rio Grande do Sul desenvolveria esforços para a criação de uma entidade federativa social e patrimonialmente autônoma. Para tanto, contaria todas as federativas estaduais e apontaria os caminhos. A Federação Espírita Brasileira agiu imediatamente, sob o argumento de ser a Casa Máter do Espiritismo, escolhida por Ismael. E mais uma vez, sozinha, derrotou a coletividade. Espíritas de diversos estados, ainda em 1949, estando no Rio de Janeiro, assinaram um documento denominado “Pacto Áureo”, em que a Federação se propunha a realizar o trabalho de unificação, dinamizando o Conselho Federativo, criado em 1926 mas adormecido desde então. O congresso de unificação de São Paulo estava, pois, morto.
O Pacto Áureo foi recebido com profundas desconfianças por muitos espíritas de São Paulo.
Herculano, um dos seus críticos, chamou-o de pacto aéreo, apoiado por dezenas de outros adeptos. A Federação Espírita Brasileira, porém, silenciando-se publicamente, mas agindo sempre com eficácia nos bastidores, mais um vez manteve sob seu domínio o poder. Ainda hoje, o Espiritismo brasileiro, em termos de organização administrativa, está sob o poder da Federação. O Conselho Federativo é um apêndice dela. Acima dele está o Conselho da Federação, constituído de seus sócios individualmente, o qual pode, a qualquer momento, tomar atitudes contrárias aos interesses dos representantes das federativas que ali se reúnem.
Estaria a situação em nossos dias melhor do que no passado?
Resumindo, a situação do movimento espírita brasileiro, atualmente, é mais ou menos esta: as federativas estaduais ainda estão longe de realizarem o ideal da unificação. Os centros espíritas, de uma forma geral, ainda vivem entregues a si mesmos. Algumas federativas, em virtude da adoção de certos princípios discutíveis, não têm força moral suficiente para comandar o trabalho. Por outro lado, as divisões em vários estados enfraquecem o movimento local. Em São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro e Ceará existem mais de uma entidade federativa, o que provoca confrontos ideológicos perturbadores do movimento.
A luta pela sobrevivência ainda existe em algumas federativas, prejudicando o trabalho do movimento. Em outras, a falta de uma visão profunda do movimento e o desconhecimento da realidade dos centros espíritas as impede de trabalharem como deveriam.
Em São Paulo, a Use se constitui hoje como um verdadeiro monumento a ser preservado, tanto pela sua filosofia quanto pelo exemplo que representa de entidade criada pelos e para os centros espíritas.
A Use não possui sócios individuais, somente coletivos, o que a diferencia de todas as demais federativas.
Não se quer dizer que a Use seja um primor de entidade, nem que ela não possua as suas deficiências.
Ela as possui e deve por isto ser estimulada a melhorar sempre. Por ser o Estado de São Paulo o que maior quantidade de centros possui, é crível acreditar que boa parte deles não têm apoio e a consciência que precisariam ter, existindo até os que desconhecem a existência da Use.
O trabalho da Feesp é conhecido apenas na capital. Ainda assim, é ineficaz e se desenvolve estritamente ao nível do paternalismo. A Federação ainda não perdeu as esperanças de domínio do poder. Ela desenvolve gestões atualmente, embora sem o declarar, à procura de conseguir um lugar no Conselho Federativo Nacional. Sua atividade paralela à da Use enfraquece o movimento estadual.
Na ponta de tudo está o centro espírita, unidade do movimento, que poderia ser melhor apoiado.
A Use não surgiu com o sentido paternalista que vigora na base da cultura brasileira. Seus diretores não são eleitos para levar soluções aos centros espíritas, mas para administrar o desejo e as necessidades coletivas. Este é o seu maior desafio, uma vez que coexistem no movimento, centros espíritas ainda hoje em maioria, dependentes das ações desenvolvidas pelas chamadas autoridades máximas, e outros, em menor escala, cujos dirigentes alcançaram a consciência da filosofia que estabelece: “A Use somos todos nós”.
Bibliografia
- Anais do 1º. Congresso Espírita do Estado de São Paulo, 1947 * Anais do Congresso Brasileiro de Unificação Espírita, 1948
- Livro do Centenário, 1906
- Livro do Conselho Federativo, 1926
- Bezerra de Menezes, por Canuto de Abreu
- Coleção da Revista Espírita
- Revista Alvorada de uma Nova Era
- Os Intelectuais e o Espiritismo, Ubiratan Machado
- Coleção da Verdade e Luz, segunda época
- Coleção da Revista de Metapsíquica
- Documentos diversos