É comum, no meio espírita, diante de certas circunstâncias, ouvirmos dos
confrades a clássica pergunta: “e a caridade, onde fica?”
Na Casa Espírita, quando se tenta estabelecer algumas normas de
procedimentos, visando a harmonia e o bem-estar de todos, logo surgem os
companheiros que se julgam “caridosos”, questionando sobre a caridade.
Quando se sugere a alguém que faça a higiene (tome um bom banho) e ponha uma
roupa limpa, logo se ouve a observação: “isso é falta de caridade!”
Todavia, também é falta de caridade fazer com que os demais frequentadores e
trabalhadores respirem o odor fétido de uma pessoa que se compraz na sujeira.
Quando se pede para que os grupos de estudos não se convertam em sala de
lazer e balbúrdia, onde cada um fala do assunto que deseje e no tom que lhe
agrade, não faltam esses companheiros alertando sobre a falta de caridade.
E quanto aos que deixam seus quefazeres, seus familiares, seu lar
aconchegante, para dedicar-se ao estudo uma hora por semana, não seria falta de
caridade obrigá-los a ouvir asneiras?
Nos eventos variados, desde as palestras na Casa Espírita aos de cunho
regional, estadual e nacional, quando é solicitado aos pais que atendam seus
filhos barulhentos, surgem os olhares inquisidores daqueles que pensam ser essa
atitude uma falta de caridade, uma vez que os pais desejam assistir às
conferências em paz.
E nós perguntamos: e os demais assistentes? Não terão eles o direito à
tranquilidade de assistir ao evento?
Assim também acontece quando se solicita que as pessoas desliguem seus
telefones celulares. Que não reservem lugares para os que ainda não chegaram e
nem se sabe se vão chegar…
O Espiritismo é a Doutrina da razão e do bom-senso. Não sejamos tolos a ponto
de voltar o nosso olhar “caridoso” somente para um dos lados. Temos que ter a
visão do conjunto, lembrando sempre que a caridade deve ser acompanhada da
justiça e do amor, para não ser tola e míope.
E por falar em justiça, esta deve balizar todos os atos da nossa vida. Se
ouvimos “conversas” a respeito de pessoas ou Instituições, diz-nos a razão que
devemos, antes de estabelecer qualquer julgamento, ouvir o outro lado da
verdade, uma vez que essas “histórias” têm, no mínimo, duas versões.
Em O Livro dos Espíritos, abordando os caracteres do homem de bem, os
Benfeitores falam do senso de justiça, dizendo que o homem de bem sacrifica
seus interesses à justiça. E quanto a nós, os espíritas? Temos sacrificado
nossos interesses pessoais por amor à justiça, ou ainda não desejamos ser homens
de bem?
O cristão verdadeiro não deve permitir-se, jamais, uma caridade tendenciosa.
Ou é caridade ou é apenas afetação conveniente.
Faz-se urgente que submetamos nossas ações ao crivo da razão, para que não
venhamos a cair nos precipícios dos mesmos equívocos cometidos outrora.
Antes de proferirmos a sentença fatal: “é falta de caridade!”, abramos a
mente e o coração e verifiquemos se não estamos fazendo exatamente o que
julgamos errado nos outros.
Vale a pena lembrar os exemplos do mestre lionês Allan Kardec. Ele sempre
soube empregar a firmeza e a doçura de maneira excelente. Sua austeridade sabia
ser terna quando preciso. Sabia evitar os pseudo-amigos que dele se aproximavam
com interesses ocultos. Não é outro o motivo pelo qual seu amigo contemporâneo
Camille Flammarion o cognominou “o bom-senso encarnado”.
Importante ponderar, portanto, que, se somos espíritas, devemos balizar
nossas atitudes pelas orientações que nos são trazidas pela Doutrina Espírita,
ou, então, devemos abandoná-las por julgá-las desprovidas de argumentos
convincentes. O que não devemos fazer é amoldar os conceitos Espíritas, claros e
lógicos, às nossas conveniências, pois nesse caso amargaríamos penosamente as
conseqüências.
(Jornal Mundo Espírita de Outubro de 98)