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Chico-Kardec: A Problemática da Comparação

Fernando Peron

Revista Espiritismo & Ciência

Ano 2, nº 18 – agosto 2004

Em meados de 2003, circulou pela imprensa espírita um longo e bem elaborado texto de uma companheira nossa de Doutrina, afirmando categoricamente, desde o título, que Chico Xavier não é a reencarnação de Allan Kardec.

Seus argumentos foram de grande utilidade para que pudéssemos refletir com maior argúcia sobre tão delicada questão. Entretanto, achamo-nos no dever de contrapor alguns ítens expostos por ela, para servir igualmente de reflexão ao público estudioso do Espiritismo. Isto vem de encontro, inclusive, da sensata observação da autora de que o debate franco e aberto é indispensável elemento de progresso.

É preciso que fique claro, antes de mais nada, que nosso objetivo aqui não é defender uma tese a favor ou contra, mas apenas ir um tanto mais a fundo na prudência ao pretender dar o veredito final sobre este ou qualquer outro tema.

Sem dúvida, muito temos a retificar dentro do Movimento Espírita, pelo descuido de uma longa série de companheiros da imprensa falada e escrita no que se refere à divulgação de opiniões pessoais, sem base nos critérios racionais fundamentados pelo próprio Codificador.

Escritores e oradores há com imensa dificuldade em declarar, humildemente, que não sabem determinado ponto de uma questão mais melindrosa, isto é, que necessitam de mais tempo de pesquisa e reflexão para informar o que diz a Doutrina a respeito. Por esse deslize decisivo, arrastam consigo todos os seus leitores/ouvintes menos estudados, atrasando ainda mais, nestas almas, a assimilação de uma ciência que, como diz Kardec, exige tempo, e muito tempo, de estudo.

De outra forma, tudo seria aliviado se houvesse o aviso prévio de que certas observações se restringem às suas opiniões pessoais, confirmadas ou não por apontamentos de terceiros, e de que todo o material deve servir às reflexões íntimas de cada um – nada além.

Analisemos, então, o que diz nossa companheira:

“Chico ser a reencarnação de Kardec é um absurdo sem fundamento”.

Que existem aspectos menos prováveis da tese a favor, não há dúvida, mas precisamos reconhecer que também há não poucos elementos que formam um quadro coerente de probabilidades. “Absurdo” é uma palavra tão desproporcional que só faz lesar a sensatez demonstrada pela autora.

Não cabe aqui descrever este quadro de probabilidades – nem haveria espaço – porquanto o estudioso sério que realmente se interesse pelo tema encontrará livros, artigos, matérias, entrevistas, enfim, farto material de pesquisa, tanto a favor quanto contra.

“O estudo dos casos de reencarnação deve ser fruto de pesquisa”.

Certíssimo. Sabe-se quão difícil é reunir todos os elementos necessários à pesquisa e comprovação dos casos de reencarnação, seja na coleta de documentos confiáveis, seja na confirmação de acontecimentos análogos distantes no tempo, ou na comparação minuciosa de fatores biológicos, psicológicos, etc., etc. Portanto, nem todas os casos podem ser pesquisados com segurança.

Mas: o caso Chico-Kardec não passou por esta pesquisa completa. Como, então, podemos assegurar, sem sombra de dúvida, que não são o mesmo espírito? O critério é um só. Se não há bom-senso em afirmar, com ares de irrefutabilidade, que Allan Kardec certamente reencarnou como Chico Xavier, também não há em afirmar definitivamente que não.

“Kardec era corajoso, seguro, austero, intelectual; Chico era doce, feminino, amoroso, fraco”.

Não podemos descrever a personalidade de Kardec como se houvéssemos convivido pessoalmente com ele ou, mais que isso, como se pudéssemos vasculhar a intimidade de sua alma sem chance de errar na apreciação de uma série de detalhes.

As qualidades do grande missionário lionês são, de fato, as apontadas por ela, indiscutivelmente; entretanto… quem, senão Deus, conhecerá a alma de cada um em seus momentos de fraqueza? Quem pode ter certeza de que, em nenhum instante, Kardec tenha sentido alguma espécie de receio perante as provas? Quem saberá todos os pormenores, os infindáveis filamentos, os meandros dos caracteres de cada individualidade, tanto na inteligência, quanto no sentimento? Talvez houvesse nele aspectos desconhecidos por nós, salientados depois na vivência como Chico Xavier.

E Chico Xavier pode ter tido inúmeros defeitos (como de fato os teve, por também estar distante da perfeição dos espíritos puros), menos a fraqueza como um de seus traços principais.

Qualquer um que estude sua vida perderá o fôlego ao tomar noção da intensidade de seu trabalho, da largueza de seu desprendimento, da fibratura de sua perseverança, da coragem em manter seus posicionamentos, e jamais um espírito fraco realizaria, do começo ao fim, o que ele realizou.

A fortaleza de seu espírito atravessou as mais austeras disciplinas físicas e morais com humildade autêntica, homogênea, ainda que sob o peso de provações cruéis.

Confundir doçura com fraqueza é o mesmo que tomar a humildade por subserviência ou a dignidade por orgulho, quando não é o caso.

Por outro lado, devido a miserabilidade de nossa evolução moral, temos a tendência a não enxergar a petulância misturada à possível “firmeza” de alguns espíritos, ou a vaidade por baixo do verniz intelectual. Não em Kardec, é notório, mas de uma maneira geral, e principalmente em nós mesmos.

O campo para a reforma íntima é muito mais vasto do que chegamos a visualizar.

É possível que Kardec, mais cedo do que tantos de nós, tenha se conscientizado daquilo que ainda precisava burilar em si mesmo, e tenha reencarnado como Chico a fim de, ao mesmo tempo, dar prosseguimento à obra de difusão do Espiritismo e avançar em valores morais mais profundos e sutis, que até então não houvesse desenvolvido.

Dir-se-á: mas mudou tão rápido, de uma encarnação para outra?

Paulo de Tarso transformou-se radicalmente numa mesma vida, ainda antes, portanto, de partir para o intervalo no plano espiritual. Maria de Magdala (Maria Madalena) sobrepujou a própria personalidade enfermiça e tornou-se outra, deveras melhor, também na mesma encarnação. Muitos exemplos de personalidades históricas poderiam ser citados, sem falar das anônimas.

Quem pode demarcar o esforço e a consciência de cada um?

“Chico é um espírito em processo de resgate e regeneração, ainda tendo necessidade do freio curto de Emmanuel”.

Mas Kardec também não era um espírito em regeneração? Se fosse perfeito, se nada tivesse a resgatar do passado, não estaria mais encarnado. Respeito e admiração devemos tanto a Allan Kardec quanto a Chico Xavier, com o cuidado de não prestar idolatria por nenhum lado, ou a quem quer que seja.

As admoestações de Emmanuel, guia espiritual de Chico, serviam como alerta constante para que o médium conquistasse e mantivesse tantas qualidades que no passado, talvez como Kardec, deixara escapar.

A nobre autora ainda cita o fato de Chico ter gritado de medo durante um vôo quando a aeronave ameaçava cair, e que Kardec, numa encarnação anterior como Jan Huss, morrera cantando na fogueira.

Esqueceu-se que Chico, ao ser abordado certa vez por um indivíduo armado que confessou estar ali para matá-lo, olhou-o serenamente e lhe disse: “Meu filho, Deus é que sabe”, tamanha a confiança que tinha na justiça das leis divinas.

Em outro episódio, demonstrou a mesma coragem quando, em visita a uma penitenciária, ignorou a advertência do diretor, que temia que os presos o assassinassem. Decidido a praticar a caridade sem se importar com as circunstâncias, declarou, a respeito de sua própria morte: “Pouco importa”. E foi em frente.

“O estilo de Kardec era pedagógico, cristalino; o de Chico, literário e poético”.

Não estudamos o suficiente a vasta bibliografia de Francisco Cândido Xavier.

Sem dúvida, os espíritos exploraram muito sua bagagem literária de outras vidas, especialmente a poética. A diversidade e precisão admirável de estilos foi louvada por críticos especializados e bom número de escritores de renome, não-espíritas.

Contudo, o médium psicografou não “apenas” quase todos os gêneros literários (contos, crônicas, cartas, poesias, dissertações, romances, infantis, etc.), mas também riquíssimas obras de conteúdo filosófico e científico – muitas delas de difícil assimilação até mesmo pelos estudiosos mais preparados, não obstante a clareza argumentativa.

Série André Luiz, publicada a partir dos anos de 40, está tão à frente de seu tempo que precisaremos ainda de muitas décadas para desdobrar todo seu conteúdo. Nela talvez não identifiquemos exatamente o estilo pedagógico de Rivail/Kardec, porém é mais do que evidente que ela significa a progressividade da Doutrina Espírita, prevista pelos Espíritos e pelo Codificador.

A mente brilhante do educador francês, seu poder de análise, síntese e exposição, podem sim ser entrevistos na mente de Chico Xavier, seja na própria expressão de sua psicografia, seja no equilíbrio e domínio retórico em suas palestras e entrevistas, seja na fidelidade aos princípios da própria obra de Kardec.

Além disso, as diferenças no trabalho de um e de outro não são garantia absoluta de que eles não sejam encarnações diferentes de um mesmo espírito.

Vejamos o que dizem os autores espirituais de O Livro dos Espíritos, na resposta à questão 218a:

“Os conhecimentos adquiridos em cada existência não se perdem. O Espírito, liberto da matéria, sempre os conserva. Durante a encarnação, pode esquecê-los em parte, momentaneamente, mas a intuição que conserva deles o ajuda em seu adiantamento. Sem isso, teria sempre que recomeçar. A cada nova existência, o Espírito parte de onde estava na existência anterior.”

Kardec pergunta, na questão seguinte (218b): “Pode, então, haver um grande vínculo entre duas existências sucessivas?”

A resposta: “Nem sempre tão grande quanto podeis supor, porque as posições são freqüentemente muito diferentes e, no intervalo delas, o Espírito pode ter progredido.” (grifo nosso)

Analisemos bem esta resposta e vejamos se é, de fato, um “absurdo” o reencarne Kardec-Chico.

Kardec viveu na Europa, pôde receber educação esmerada desde a mais tenra idade; freqüentou o meio acadêmico; conviveu numa cultura menos emotiva e mais cerebral. Chico renasceu no interior do Brasil; enfrentou trabalho rústico desde pequeno; não foi além da quarta série do primário; relacionou-se com um povo fraterno e sentimental. São posições muito diferentes e, em ambos os casos, alguma influência o meio exerceu, já que ninguém está livre disso.

Repito que não estou defendendo a tese nem a favor nem contra, mas apenas demonstrando que há mais elementos para serem considerados do que presumimos.

Observemos ainda a questão 220. Kardec pergunta: “Ao mudar de corpo, podem-se perder alguns talentos intelectuais, não mais ter, por exemplo, o gosto pelas artes?”

Resposta: “Sim, se desonrou esse talento ou se fez dele um mau uso. Uma capacidade intelectual pode, além do mais, permanecer adormecida numa existência, porque o Espírito veio para exercitar uma outra que não tem relação com ela. Então, qualquer talento pode permanecer em estado latente para ressurgir mais tarde.” (grifo nosso)

A missão de Allan Kardec foi colocar todo seu tesouro intelectual na pesquisa e organização da Doutrina Espírita. A missão de Chico Xavier foi doar por completo seu talento mediúnico ao aprofundamento e à difusão da Doutrina Espírita.

Kardec triunfou no bom uso da inteligência, mas talvez não conheceu tudo a respeito de humildade e amor. Se reencarnou como Chico, entretanto, teve ocasião de exercê-los mais do que nunca, e também venceu.

Ambos são conhecidos por suas marcas características, mas tanto podem ser dois espíritos distintos, como o mesmo espírito, em fases marcantes diferentes.

“Abandonamos os critérios de racionalidade e objetividade de Kardec; valorizamos a linguagem melíflua e piegas de Chico, vendo o Espiritismo mais como religião”.

Os critérios de racionalidade e objetividade do Codificador advertem justamente, no presente caso, que não podemos considerar o nosso julgamento infalível sem as condições adequadas de pesquisa – e até que tenhamos estatura evolutiva suficiente para assimilar determinados dados.

É verdade que uma ala extensa de adeptos do Espiritismo não se dedica ao estudo de suas bases fundamentais nem dez por cento do que deveria (e este é um dos mais sérios problemas do Movimento), preferindo gastar o precioso tempo somente na leitura de romances ou novidades do nosso mercado editorial.

Mas Deus não limitaria o acesso ao conhecimento a apenas um duto. Aos que ainda não estejam preparados para penetração em textos mais densos, existem os contos, as poesias, os livros de frases, etc. A luz do discernimento pode brilhar na alma de cada um a qualquer instante, por diversos caminhos.

Considerar “piegas” a linguagem esplêndida, sublime e altamente esclarecedora (mais do que apenas consoladora) das obras de Chico Xavier é uma simples questão de opinião, de sensibilidade, de degustação, assim como alguns não lêem Allan Kardec por reputá-lo “muito difícil”, não obstante a clareza impecável de seus textos.

E agora, um aparte.

A melindrosa discussão sobre o aspecto religioso do Espiritismo não seria de se prolongar e emaranhar tanto, já que Kardec foi suficientemente objetivo ao definí-lo no discurso O Espiritismo é Uma Religião?, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, em 1º de novembro de 1868 (inserido na Revista Espírita, Ano XI, Volume 12, dezembro de 1868):

“[…] Perguntarão: então o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem duvida, senhores. No sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos glorificamos por isto, porque é a doutrina que funda os elos da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre bases mais sólidas: as mesmas leis da natureza.

“Por que, então, declaramos que o Espiritismo não é uma religião? Porque não há uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e porque, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto; desperta exclusivamente uma idéia de forma, que o Espiritismo não tem. Se o Espiritismo se dissesse uma religião, o público não veria aí senão uma nova edição, uma variante, se se quiser, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; não o separaria das idéias de misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes se levantou a opinião pública.

“Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual do vocábulo, não podia nem devia enfeitar-se com um titulo sobre cujo valor inevitavelmente se teria equivocado. Eis porque simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral.” (recomendamos a leitura integral).

Saber se Chico Xavier foi ou não a reencarnação de Allan Kardec é preocupação secundária. O fundamental é absorver o magnífico exemplo de conduta de Chico e a riqueza essencial de suas obras; o cristalino modelo de bom-senso de Kardec e a unidade formidável de suas obras.

Não podemos, todavia, desprezar este assunto ou outros que possam colaborar para o exercício de nosso raciocínio em busca da verdade. Isto é importante perceber. Com alegria e disciplina, dedicamo-nos ao estudo do Espiritismo para o desenvolvimento de nossa inteligência como individualidades espirituais e para, com isso, podermos servir melhor os nossos semelhantes.

O problema surge quando nos escapa a noção de equilíbrio. Se não tomamos cuidado, desperdiçamos tempo com questiúnculas polêmicas, empedramos o nosso coração e atrofiamos o amor caritativo, ainda nascente em nossas almas pouco evolvidas.

Por esta razão, não devemos nunca perder a admiração, sem fanatismo, por Allan Kardec, já que precisamos muito, mas muito ainda atentar para seu legado.

Igualmente, não devemos jamais perder a admiração, sem idolatria, por Chico Xavier, já que estamos muito, mas muito longe de agir com sua grandeza.

Fernando Peron é ator, dublador, locutor e radialista; produtor e apresentador do programa Ponte Para A Luz (interpretação de mensagens de Chico Xavier) na Rádio Boa Nova AM 1450 Khz, Guarulhos, SP; estudioso do Espiritismo há mais de 15 anos; trabalhador e Diretor de Relações Externas do Núcleo Espírita Assistencial Paz e Amor (Cambuci, São Paulo, SP). E-mail: fernandoperon@hotmail.com.