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Conceitos Inovadores da Doutrina Espírita

Conceitos Inovadores da Doutrina Espírita

Trabalho exposto pelo autor no Congresso Internacional de Espiritismo/89
realizado em Brasília-DF no período de 1 a 5/10/1989.

O Espiritismo – escreveu Allan Kardec – é, ao mesmo tempo, uma ciência de
observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática, consiste nas
relações que se podem estabelecer com os Espíritos; como filosofia, compreende
todas as conseqüências morais decorrentes dessas relações.

Vamos buscar a citação em texto publicado em 1864, como instrução a ser
eventualmente lida em reuniões públicas para esclarecimento de pessoas desejosas
de se informarem sobre a Doutrina dos Espíritos (1) (Allan Kardec – “Revista
Espírita, abril de 1864, Edicel, São Paulo, 1968).

Alguns anos antes, como se lê na “Revista Espírita” (2) – (“Revista
Espírita”, julho de 1859, Edicel, São Paulo, 1968.) declarava o Codificador:

– O Espiritismo tem conseqüências de tal gravidade, toca em questões de tal
alcance, dá a chave de tantos problemas, oferece-nos, enfim, tão profundo ensino
filosófico, que ao lado de tudo isso uma mesa é pura infantilidade.

Por duas vezes, nesses textos pinçados na obra de Kardec, encontramos a
identificação do Espiritismo como ciência e como filosofia, tanto quanto o
destaque para as suas conotações éticas.

Em verdade, é precisamente nas conseqüências morais que está posta a ênfase,
no entender de Kardec, cabendo ao vetor cientifico e ao filosófico papéis
relevantes, por certo, mas não predominantes, de instrumentação para alcance dos
propósitos renovadores implícitos e explícitos na Doutrina Espírita. Em outras
palavras, o Espiritismo não é apenas uma ciência de observação acoplada a um
sistema filosófico, mas uma proposta de renovação ética, diante da qual o quadro
fenomenológico é de importância secundária. Essa é, aliás, postura que vemos
repetida em observação feita em breve texto preparado por Kardec ao comentar o
Processo Hilaire(3) (“Revista Espírita”, março de 1865) e que assim diz, em
parte:

– … O Espiritismo está menos nos fenômenos materiais que em suas
conseqüências morais (…) o principal é que a doutrina daí decorrente seja
reconhecida como digna do Evangelho, sobre o qual se apóia.

Não é minha intenção, com estas reflexões preliminares, repetir ou ampliar
observações dos expositores que me precederam nem antecipar os que me sucederão.
O propósito foi apenas o de enfatizar que a Doutrina dos Espíritos constitui um
sistema harmônico e integrado de idéias e propostas que vão da observação dos
fatos às suas últimas conotações éticas.

Por isso, venho há muito insistindo em que a Doutrina dos Espíritos tem
embutido nas suas estruturas uma nova teoria do conhecimento que ainda não foi
considerada como merece e precisa, se é que se pretende mesmo identificar as
condições mínimas de que necessita a Humanidade para a tão sonhada reformulação
do processo civilizador, que atravessa nos dias que estamos vivendo uma das suas
mais espantosas crises.

Por que entendo que uma nova teoria do conhecimento, ou, se preferem termos
mais técnicos, uma nova espistemologia está contida no Espiritismo?

É o que pretendo expor da maneira mais sucinta possível nesta conversa, razão
pela qual, aliás, tive de me limitar ao apoio de poucos e resumidos textos.

Primeiro, um entendimento sobre terminologia e questões básicas envolvidas.

Epistemologia é palavra criada no século XIX para substituir a antiga
expressão Teoria do Conhecimento que, na sua essência, recua aos tempos em que
viveram os mais importantes pensadores gregos. Poderíamos dizer, para
simplificar, que a epistemologia cuida da metodologia da própria especulação
filosófica. Ou seja, da reflexão acerca dos problemas da natureza, limites e
validade do conhecimento e da crença. Considero acertada a inclusão da crença
neste contexto, dado que ela constitui estágio inicial da convicção, como tão
lucidamente escreveu Paulo, na Epístola aos Hebreus, ao caracterizar a fé como
“garantia do que se espera e prova das realidades invisíveis”.

A conexão entre conhecimento e fé não é incidental, mas da essência mesma do
processo da busca, de vez que dificilmente se pesquisa aquilo em que não se crê.
Encontro clara ressonância dessa postura no texto que o Prof. Anthony Douglas
Woozley – autor, entre outros , de um livro exatamente sobre a teoria do
conhecimento – escreveu por solicitação da Enciclopédia Britânica.

Priorizo, neste ponto, as colocações do Prof. Woozley por entende-las não
apenas sumarizadas de maneira adequada ao nosso propósito, mas porque tocam de
perto aspectos que muito têm a ver com aquilo que estamos tentando colocar neste
papel.

Para ele, a espistemologia procura investigar não somente o caráter do
conhecimento em si mesmo, como a relação do conhecimento com a crença e a
validade do conhecimento do mundo que nos cerca, naquilo que nos chega através
dos sentidos, mas também, daquilo que nos alcança por vias que parecem ignorar o
mecanismo sensorial.

Poderíamos dizer, para simplificar ainda mais o entendimento dessas
especulações, que a essência mesma da filosofia consiste em decifrar o enigma do
ser humano e aqueles que são postos pelo universo em que vivemos.

Destaco, no pensamento de Woozley, sua atenção com o problema da interação
conhecimento e crença, como ainda a possibilidade de acesso supra-sensorial ou,
se preferem, extra-sensorial, às fontes de conhecimento. São, ambas, abordagens
renovadoras e fecundas. É de lamentar-se que a demonstração experimental da
percepção extra-sensorial, cujo crédito deve, de justiça, ser atribuído ao Dr.
Joseph B. Rhine, da Universidade de Duke, não tenha suscitado releitura mais
profunda e decisiva nos conceitos mesmos da pesquisa cientifica no que diz
respeito ao ser humano. Pela primeira vez, em séculos, quebrou-se de maneira
irrecuperável o dogma filosófico de que o conhecimento somente poderia ser
adquirido através de instrumentação sensorial. A pesquisa cientifica
contemporânea ainda não se deu conta do que isso realmente significa, de vez que
insiste em estudar a fenomenologia psíquica – quando se digna fazê-lo – com
técnicas, métodos e aparelhagem que não passam de sofisticadas extensões dos
cincos sentidos orgânicos que, em última análise, são limitadores da percepção,
mas não limites, em si mesmos, à observação dos fenômenos da vida universal.
Exemplo típico dessa postura vimos na pueril declaração de um dos primeiros
astronautas soviéticos que, ao regressar de um périplo espacial, declarou não
ter visto Deus por lá. Ou seja, estamos ainda numa fase de comovedora
infantilidade ao achar que somente poderíamos acreditar em Deus se o víssemos
com os nossos próprios olhos, se pudéssemos toca-lo debaixo das lentes de
microscópicos eletrônicos de última geração.

Há, pois, um despreparo cultural, metodológico e instrumental quanto à
pesquisa psíquica, que se obstina em adotar procedimentos inadequados à
percepção e avaliação da fenomenologia que pretende analisar.

Não é de admirar-se por conseguinte, que esteja em crise o processo da busca
do conhecimento. Germinou, criou raízes e proliferou por toda parte o conceito
de que a ciência como todo é autoridade suprema e final sobre aquilo que devemos
aceitar ou rejeitar na estruturação das nossas crenças e convicções, como se
tivéssemos trocado um tipo de procedimento dogmático de caráter religioso por
outro, de natureza científica, apoiada, este último, em métodos inquisitoriais
mais sutis, mas não menos inibidores e nem menos perversos do que o seu
antecessor na historia do pensamento.

O que estou pretendendo dizer com isto? Que a comunidade cientifica pode não
prender, torturar e mandar para as masmorras ou para a fogueira o equivalente
dos antigos hereges, mas ainda os coloca sob suspeita, isola-os e lhes nega
acesso às publicações técnicas e à cátedra se entender que a natureza de suas
especulações e conclusões contesta ou desarruma o sistema ideológico vigente,
que goza da aprovação consensual da categoria.

Não há dúvida de que a ciência moderna tem sido pródiga em descobertas e
realizações que suscitaram fantástica aceleração tecnológica. Seria incorreto,
no entanto, afirmar que isso tenha sido sistematicamente benéfico ao ser humano
como entidade espiritual. Ao contrário, as conquistas tecnológicas estão
intensificando a cristalização do conhecimento em estruturas materialistas ou
puramente mecanicistas, que se tornaram predominantes nas últimas décadas.

Mas, por que estaríamos falando de ciência quando nosso tema diz respeito à
filosofia? A razão é simples. Um exame retrospectivo na historia da filosofia
nos ensina que grande parte do que hoje consideramos disciplinas autônomas sob o
título genérico de ciência, estava contida, embrionariamente ou de maneira mais
desenvolvida, no contexto global da filosofia antiga. Era tudo um só bloco de
material especulativo, sem particularizações ou individualizações, ainda que
identificados os diversos assuntos por títulos específicos, para fins didáticos,
como podemos ver em Aristóteles: física, botânica, anatomia e fisiologia animal,
psicologia, ética, política, retórica ou poética. Fora deste quadro ficavam
apenas suas especulações ditas metafísicas. Por longo tempo ainda, foram os
tratados de natureza cientifica considerados módulos de uma enciclopédia de
filosofia. Em pleno século XIX, Hegel estranhava que os técnicos em ótica se
fizessem anunciar, na Inglaterra, como “fabricantes de instrumentos
filosóficos”. Pois não estava a ótica confortavelmente instalada nas obras de
Aristóteles?

No correr do tempo expandiu-se e intensificou-se o processo de dissociação
entre filosofia e ciência, consolidando-se a dicotomia de que hoje somos
testemunhas e, no meu entender vítimas. O bloco cientifico soltou suas amarras e
se pôs autônomo e independente da filosofia e até superior àquela que fora, em
tempos clássicos, a chocadeira e coordenadora das suas diversa disciplinas.
Assim, as novas ciências, surgidas quase sempre de desdobramentos dos ramos
básicos primitivos, passaram a não se sentir mais obrigadas à coordenação e
liderança do pensamento filosófico. Há quem considere isto um beneficio ao
processo evolutivo do conhecimento. Não estou entre estes. Acho que a ciência
opera dentro de um contexto de limitações intrínsecas que a inibem para as
especulações de maior amplitude.

É o que pensa Will Durant (4) (The Story of Philosophy, Simon & Schuster,
Nova York, 1951.). Sinto-me confortável com a sua postura de que a ciência
“proporciona conhecimento, mas somente a filosofia leva à sabedoria”.

A ciência é exposição analítica de fatos observados, ao passo que a filosofia
e esforço sintético de interpretação. A atividade interpretada, ainda que se
valendo dos dado supridos pela ciência, como convém, é que pode conduzir-nos ao
que Durant chama de “decifração de nossas próprias almas”, a fim de nos colocar
em perspectiva adequada ante os enigmas da vida. Não foi outra a atitude de
Sócrates, que situou suas prioridades não na decifração do mundo, mas no
trabalho de deslindar os mistérios do ser humano. Para que não acontecesse o que
hoje presenciamos de , no dizer de um pensador contemporâneo, conhecermos mais o
átomo do que a mente que conhece o átomo.

Por outro lado, a ciência não costuma preocupar-se com as conseqüências da
utilização de seus achados e nem para isso está programada ou em condições de
preveni-lo. Vivemos a era da especialização, na qual temos de saber cada vez mas
de vetores cada vez mais exíguos de conhecimento, com o que de há muito vimos
perdendo o senso da perspectiva, a noção do conjunto, a visão integrada da vida,
especialmente naquilo que ela tem de mais essencial ao processo evolutivo, ou
seja, a realidade espiritual.

Por isso, ensina Durant que “a história da filosofia moderna poderia ser
escrita em termos de uma guerra entre a física e a psicologia”. Tanto quanto
podemos avaliar, nós outros, meros espectadores, até aqui a física estaria
vencendo, embora estejamos assistindo em anos mais recentes a uma virada
significativa na sorte do conflito. Paradoxalmente, contudo, não porque a
psicologia tenha conseguido impor-se ao suposto “adversário”, mas porque a
física começa a revelar-se disciplina tão sutil que Aristóteles não hesitaria em
reclassificá-la na chave da metafísica, segundo o melhor critério semântico.
Lamentavelmente, a psicologia sem psique, ou seja, sem alma. Não é outra a razão
pela qual o autor espiritual de A Grande Síntese(5) (Pietro Ubaldi Guilon
Ribeiro,Feb, Rio, 1939) proclama, sem rodeios ou meias palavras, que a
psicologia que aí está “não tem futuro”.

É preciso ressalvar que há psicólogos e psiquiatras trabalhando conceitos
indispensáveis ao entendimento da vida, como reencarnação, sobrevivência do ser
e carma, mas daí até demover a inércia conservadora, vai largo tempo e grande
esforço. Pensando nisso é que Lawrence Leshan(6) (The Médium, the Mystic and the
Physicist, vicking Press, Nova York, 1974.) se mostra tão alarmado, ao bradar,
em seu livro de 1964, que não há mais tempo a perder: precisamos sair desse
impasse antes que o século chegue a seu termo. Não há como discordar dele,
quando contemplamos o estado caótico da chamada civilização contemporânea, em
todos os seus aspectos vitais, não mais a 36 anos do final do século – e do
milênio – mas a pouco mais de uma década, sem que nada de significativo tenha
acontecido para justificar esperanças renovadoras. O que continuamos a
testemunhar é a obstinada resistência à conceituação do ser humano com entidade
espiritual.

O Dr. Freud chegou a exigir de seu discípulo, o Dr. Jung, um compromisso –
quase um juramento – de que não se deixasse envolver pelo que chamou “a onda
negra do ocultismo”, mas, pelo menos, morreu convicto do equívoco, declarando
que, se tivesse de recomeçar seu trabalho, haveria de retoma-lo pela pesquisa
psíquica. É o que se lê na estupenda biografia de Freud escrita por Ronald W.
Clark, pág. 278(7). (Clark, Ronald W. Freud – The Man and the Cause, Granada,
Londres, 1982).

Estamos à espera dele, dado que os mecanismos da reencarnação aí estão
abertos a todos e, de maneira preferencial àqueles que possam trazer importantes
contribuições à solução dos impasses em que se debate a civilização dos nossos
dias.

Uma dessas esperanças, no meu entender, seria o eminente pensador Pierre
Telhard de Chardin que tentou, com invulgar brilho, mas sem êxito imediato,
abrir caminho para uma renovação de conceitos, de dentro para fora de uma
obsoleta teologia dogmática.

Outro que muito gostaria eu de ver renascido, de preferência em meio espírita
para não perder tempo, seria o não menos brilhante pensador francês Henri
Bérgson, cuja obra de tanto sucesso imediato, encontra-se injustamente esquecida
hoje, a menos de 50 anos do retorno do autor à dimensão espiritual.

Como assinala Durant, quanto mais estudava Spencer, uma de suas admirações,
mais Bérgson se tornava consciente das “três juntas reumáticas do mecanicismo
materialista” e que assim ficam identificadas: as interações matéria e vida,
corpo e mente e determinismo e livre-arbítrio.

– … e se Bérgson elevou-se tão rapidamente à fama – ensina Durant – foi
porque teve a coragem de duvidar daquilo em que todos os duvidadores acreditavam
piamente.

Em outras palavras: ele assumiu uma posição contestatória perante as verdades
provisórias, tidas como eternas, imutáveis e intocáveis. Isso por que há, na
expressão de Durant, “a desconfortável suspeita de que a ciência “exata” e mera
aproximação, que se ocupa da inércia da realidade mais do que da vida em si
mesma”.

Pensamento semelhante vamos encontrar em Willis Harman – apud Larry Dosey (Space,
Time and Medicine,Shambala, Londres, 1982) – segundo o qual, “a ciência não é
uma descrição da realidade, mas uma ordenação metafórica da experiência”.

No entender de Durant, não obstante, e estou de acordo com ele mais uma vez,
continuamos diante de um maciço bloqueio a obstruir a passagem para uma
conceituação mais nítida na vida. Ele caracteriza tal bloqueio como “aplicação
de conceitos físicos ao campo do pensamento”, que conduz sempre aos mesmos
impasses do determinismo, do mecanismo e do materialismo.

Devo, contudo, elaborar um tanto, para justificar as razões pelas quais
coloco algumas de minhas admirações em Henri Bérgson. Tenho sido leitor atento e
grato de sua obra, da qual destaco, na meditada preferência, L’Évolution
Créatrice, que Durant, mui justamente, caracteriza como “a primeira obra-prima
filosófica de nosso século”.

Na conceituação do fenômeno da vida em si mesma, Bergson e Chardin parecem
competir pela maneira mais bela e ampla de dize-lo.

– No mais fundo de si mesmo – escreve Chardin(O Fenômeno Humano – trad. Leon
Bourdon e José Terra, Herder, S. Paulo, 1965) – o mundo vivo é constituído por
consciência revestida de carne e osso. Da Biosfera à Espécie, tudo é, pois,
simplesmente imensa ramificação de psiquismo que se busca através das formas.

A mesma concepção elegante e grandiosa da vida, como energia psíquica
consciente, está em Bergson. Dessa onda pulsante de “élan vital” – diz ele -,
resulta que – … nossa inteligência, no estrito sentido do termo, destina-se a
assegurar-se a perfeita inserção de nosso corpo no seu ambiente e a
representar-se os vínculos das coisas externas entre si; enfim, a pensar a
matéria.

Bérgson prossegue adiante no livro – estou falando apenas de L’évolution
Créatrice premido por limitações de tempo e espaço -, para explicitar seu
pensamento neste aspecto do mergulho da consciência na matéria. Ouçamo-lo:

– A resistência da matéria bruta é obstáculo que (a vida) precisa contornar.
A vida parece, nesse ponto, ter alcançado êxito pela força da humildade,
fazendo-se pequenina e muito insinuante.

A vida é, portanto, no dizer desses pensadores ilustres e brilhantes, uma
energia espiritual consciente, o que nos leva de volta aos ensinamentos dos
Espíritos obtidos por Allan Kardec antes de bergson e chardin.

Após caracterizarem o Espírito com “principio inteligente do Universo”, os
Instrutores da Codificação (“O Livro dos Espíritos”, Trad. Guillon Ribeiro, Feb,
rio.) formulam este esclarecimento, à primeira vista um tanto enigmático, para
explicar que o Espírito é independente da matéria:

– São distintos uma do outro – ensinam – mas, a união do Espírito e da
matéria é necessária para intelectualizar a matéria.

Confesso-lhes minhas dificuldades iniciais com a expressão “intelectualizar a
matéria”. O que seria isso, precisamente? Algum tempo se consumiu no trabalho de
entende-la. Ela expressa, contudo, conceito de indiscutível elegância e
transparência, quando a conjugamos com as formulações de Chardin e Bergson.
Fazendo-se humilde e pequenino, como ensina Bergson, o psiquismo a buscar-se
através das formas, no dizer de Chardin, consegue intelectualizar com tão clara
competência a matéria que, de uns tantos componentes básicos – carbono,
hidrogênio, oxigênio, nitrogênio e outros, em menor escala – elaborou esse
prodígio biológico que é a célula nervosa, por exemplo, com a qual montou as
sofisticadas estruturas de cérebro e seus terminais, presentes em cada ponto
microscópico da comunidade celular que constitui o corpo físico do ser humano.

Pensar a matéria, intelectualizar a matéria e buscar-se o psiquismo através
da forma são, portanto, três maneiras diferentes e inteligentes de escrever a
mesma realidade. Poder-se-á dizer, então, que esta é uma das felizes
intersecções em que as correntes universais do pensamento filosófico produzem
notável convergência de ensinamentos iluminativos que, no entanto, e
lamentavelmente, não têm sido explorados e ampliados como poderiam e deveriam
tê-lo sido.

A Henri Bergson porventura renascido em contexto espírita eu pediria para
elaborar uma releitura de sua própria filosofia, a partir dos postulados básicos
da realidade espiritual sobre a qual se apóia a Doutrina dos Espíritos. Não são
muitos, mas se apresentam com importância e urgência que mal podemos enfatizar
com suficiente veemência. Falam esses postulados, em suma, de conceitos como os
de existência e sobrevivência do espírito; dos ciclos de vida na carne e fora
dela; da severa, mas flexível, lei de causa e efeito; de uma solução
satisfatória para o aparente dilema entre livre-arbítrio e determinismo, tanto
quanto de uma correta avaliação das questões suscitadas, ao longo dos milênios,
no relacionamento ser humano/Deus, além de uma abordagem inteligente e correta
ao fenômeno da morte.

Se a filosofia é, de fato, um discurso sobre os temas básicos do ser humano e
do universo em que ele vive, aí estão os componentes necessários à montagem de
uma nova estrutura de conhecimento que nos proporcionará viagem sem retorno às
luminosas paragens da sabedoria.

O leitor de Hooykaas (A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, Trad.
Fernando Dídimo Vieira, Polis-Universidade de Brasília, 1988) não se
surpreenderia com a proposta de um modelo epistemológico como o que estamos a
sugerir. Ao comentar a postura dos idealistas gregos, de que a natureza imporia
limitações até ao demiurgo platônico, em oposição ao Deus bíblico, que a nada
precisa obedecer, conclui ele que esse contraste de concepções “chega a
influenciar o método de aquisição de conhecimento científico a respeito do
universo”.

Pouco adiante, o autor recorre a Boyle, para o qual “a ciência empírica,
experimental, é uma aliada da religião, e é, até mesmo, guiada por ela, não
obstante a distinção metodológica entre ambas”.

Descendo ás raízes do problema, Boyle postulava com acerto que “a hostilidade
existia apenas entre a metafísica especulativa de um lado, e a religião unida à
verdade do outro”.

Dentro dessa mesma de idéias, lembra Hooykaas que Francis Bacon denunciava um
atrito entre ciência e teologia, não entre ciência e religião. Essa distinção é
fundamental ao entendimento do antigo debate entre razão e fé, que o Espiritismo
resolve, ao estabelecer o parâmetro avaliador de que não somente a fé pode,
como deve ser racionalizada, assumindo, portanto, a condição de fé, que
sabe, em vez de apenas crer, ou ainda, para dizer a mesma coisa de
outra maneira: uma convicção, como estágio final do processo especulativo
iniciado pela fé ou crença.

A palavra conclusiva do pensador holandês pode até surpreender ou chocar
algumas mentes desatentas, mas é a lúcida expressão de inteligente proposição ao
postular que a ciência seria mais uma conseqüência do que a causa de certas
posturas religiosas.

Mas, que razões nos levam a considerar desejável uma reformulação
aparentemente tão radical na abordagem ao problema do conhecimento a partir das
contribuições informativas e formativas da Doutrina dos Espíritos?

Vai bem, neste ponto, lembrar Kant, segundo o qual importa a utilidade
do conhecimento e não a sua origem, dado que cabe à metodologia da busca
investigar a relação do pensamento com o objeto da especulação. Por isso, ensina
Johannes Hesse (Tratado de Filosofia, 3 vols. Trad. Juan Adolfo Vasquez,
Editorial Sudamericana, Buenos Aires, 1962) que o “conhecimento não é produção,
mas reprodução, não construção, mas reconstrução”, sendo portanto, um esforço de
interpretação ou melhor, de reinterpretação da realidade observada o que não lhe
subtrai a condição de função criativa, ainda no entender de Kant. É certo isso,
dado que criar é antes uma busca de novos arranjos de que invenção.

A despeito de inúmeras propostas inteligentes para a montagem de uma teoria
consensual do conhecimento, queixar-se Hesse de que não se tenha ainda superado
um defeito histórico de formulação, que o pensador alemão descreve como
“orientação unilateral e até exclusiva por determinado campo do saber ou região
de objetos”, em prejuízo de uma visão mais ampla dos enigmas da vida.

– A vida espiritual do homem – adverte Hesse – é muito mais rica do que se
poderia observar numa tomada superficial. É nesse sentido que entendo a
necessidade de uma visão sintética, sim, mas global, sinótica, abrangente,
integradora e hierarquizada que somente a filosofia tem condições de formular,
dado que, pela natureza mesma de sua metodologia, necessariamente analítica, a
ciência é fator de atomização do conhecimento, desligada da imagem que o amplo
mosaico de seus achados vai criando.

Acresce que, além de não cogitarem necessariamente das conseqüências éticas
de seus informes, amplas áreas da ciência contemporânea operam comprometidas com
poderosos interesses utilitários e imediatos e, portanto, materialista, em
essência. É escasso e tímido, por exemplo, o financiamento destinado à pesquisa
psíquica, ao passo que nunca faltam recursos, em astronômicas cifras, para
projetos dos quais retornos compensadores possam ser predimensionados. Ademais,
mesmo bem intencionados cientistas e pesquisadores ainda que preocupados com a
eventual utilização não-ética de suas descobertas, não têm como inibir tais
possibilidades e conseqüências. Às vezes, até as provocam.

O exemplo da Albert Einstein é dramático. Ao conceber a famosa equação
matéria/energia, certamente não pretendia varrer da face da Terra cidades
inteiras ou explodir o Planeta. Sua fórmula descreve um fenômeno natural, uma
lei cósmica que, por si só não gera implicações éticas. Mas, ao escrever a carta
ao Presidente Franklin Roosevelt, engajando-se, a seguir, no Projeto Manhattan,
sim, envolveu-se em complexa rede de conotações éticas, armando gigantesco
dispositivo causal de inevitáveis efeitos determinísticos.

É em situações como essa que o pensamento da gente vai de volta às belas,
ainda que utópicas, especulações de Platão, que sonhou com nações governadas por
sábios. É bem provável que um colégio de filósofos no comando da política se
recusasse a apropriar-se de fórmula einsteiniana para montar artefatos
nucleares, mas, infelizmente, não dispomos ainda de estruturas sociais e
políticas que nos permitam levar os sábios aos comandos da sociedade, se é que
teríamos como persuadí-los a renunciarem às suas especulações, a fim de
aceitarem os ônus e atrações do poder, que a tantos fascina e corrompe.

Por essas e outras razões, não vejo na entidade coletiva chamada ciência
contemporânea condições para o exercício de tão pesadas responsabilidades como
as que estamos, pela força da inércia, a atribuir-lhe. Os que aguardam o “Nihil
obstat” da ciência, que os autorize a aceitar como válida a realização
espiritual, têm, pela frente, larguíssimo período de espera, de vez que somente
pela força cumulativa de sucessivos pronunciamentos se poderá chegar,
eventualmente, ao consenso, depois que as resistências às inovações esgotarem-se
no desgaste inevitável do atrito com a verdade. Por outro lado, os que se acham
suficientemente informados e convencidos dessa realidade perdem tempo precioso à
espera de luz verde nos semáforos, ainda vermelhos, da ciência. Há imenso
trabalho a realizar nas amplitudes de uma humanidade que vive o angustiante
drama da espera desorientada. É gigantesca a tarefa, de fato, mas como diz o
provérbio chinês, é melhor acender a lamparina do que ficar a maldizer a
escuridão.

Não me importa estar sozinho nessa postura, mas invoco, a respeito, o
testemunho da Dra. Cerminara (14) – (Cerminara, Gina – Edgar Cayce Revisited,
Norfolk, Va., 1963), que assim opina:

– Excessivo número de nossos cientistas e pesquisadores têm sido
intelectualmente bitolados e materialistas, tanto quanto emocionalmente
insensíveis e socialmente míopes. Nossa trágica situação planetária é devida,
creio eu, pelo menos em parte, à penetrante influência por eles exercida.

Podemos ilustrar essa postura paralisante com dois conceitos fundamentais,
ainda rejeitados pela ciência, embora individualmente aceitos por eminentes
pesquisadores e cientistas. Do primeiro deles, o perispírito, de vital
importância à ciência, já falava Paulo em suas epístolas, não como novidade ou
revelação, mas coisa vivida e sabida.

No início da década de 60, em resposta a uma carta pessoal minha, o Dr. J.B.
Rhine declarava a ciência ainda longe de pronunciamento conclusivo acerca da
sobrevivência do ser. Em artigo seu, que também teve a gentileza de enviar, em
separado, escrevia ele que a sobrevivência somente poderia ser entendida no
contexto da continuidade do pensamento, o que é correto, mas, perguntavam como
exercer essa faculdade se o cérebro físico se destrói com a morte?

No entanto, não precisamos hoje recorrer aos textos religiosos, místicos ou
iniciáticos, ditos ocultos, para saber que, além do corpo físico, que se
desintegra com a morte, há outro corpo, sutil, energético, que persiste e
continua a servir de instrumento ao espírito sobrevivente.

O Dr. Harold Saxton Burr, que prega “uma abordagem modesta” aos enigmas da
vida e do universo em que vivemos, acha mesmo que essa postura é a única em
condições de suceder, porque, no seu dizer, “a natureza parece relutante em
revelar seus segredos ao intelectualismo arrogante”.

Foi essa atitude de humildade intelectual que o Dr. Burr documentou a
existência dos (campos vitais), chamando a atenção para o fato de que temos de
admitir uma “desoladora ausência de conhecimento, não apenas da verdadeira
natureza da mente ou da emoção, mas também do mecanismo de relacionamento entre
mente e corpo”.

Entende mesmo – e mais uma vez estamos de acordo com ele – que os campos
vitais vinculam, como componentes de um mesmo todo, seres humanos, animais e
vegetais.

– Você e eu, nossos animais domésticos, nossas árvores e plantas – ensina ele
– estamos todos sujeitos às mesmas leis universais.

É esse campo energético invisível, mas detectável com instrumentação adequada
o responsável pela modelação e manutenção do corpo físico, a despeito da
contínua renovação celular que no organismo se processa.

– Quando nos encontramos com um amigo que não vemos há seis meses – escreve
Burr – não há no seu rosto uma só molécula que lá estivesse quando o vimos pela
última vez. Mas, graças ao controle dos compôs vitais, as nova moléculas
alinharam-se segundo a mesma disposição antiga e familiar que nos leva a
reconhecer seu rosto.

Reportando-se ao corpo bioplásmico, proposto pelos pesquisadores soviéticos,
a Dr. Gina Cerminara declara a sobrevivência “uma possibilidade crível e
lógica”, dado que o ser humano dispõe de dois corpos, o material e o outro,
que ele caracteriza como uma “espécie de matriz energética, ou modelo invisível
unificador”. É por isso que ela considera a morte como simples “mudança de
freqüência”, quando o ser passa a atuar através de “um corpo interno”
constituído de matéria em ritmo vibratório “rápido demais para ser percebido
pela visão humana comum”.