Como estabelecer critérios de seleção?
A sábia e conhecida advertência do Espírito Erasto, constante de O Livro dos Médiuns (1), de que “(…) vale mais repelir dez verdades do que admitir uma só mentira, uma só falsa teoria (…)”, é bem um convite ao bom senso que caracterizou a personalidade de Kardec e que deve ser o norteador de passos e iniciativas do movimento espírita.
A orientação vem bem a propósito diante de novidades ou propostas que se fazem insinuantes e tentam modificar a clareza com que a Doutrina Espírita se apresenta, com a introdução de práticas estranhas e alheias ao pensamento espírita, ainda que com seus valores e méritos. O critério para aceitar ou rejeitar é simples. A receita foi utilizada pelo próprio Codificador. É o princípio da universalidade dos ensinos, do consenso universal. Isso significa que os ensinos recebidos, as propostas ou novidades apresentadas devem submeter-se, rigorosamente, à concordância de transmissão e aceitação em todos os lugares, simultaneamente, e por pessoas desconhecidas entre si.
A própria palavra consenso, que significa acordo, já traduz um entendimento generalizado, de transmissão de um novo ensino ou de aceitação recíproca do que foi apresentado. Considere-se que qualquer novidade, proposta ou novas ideias sempre encontram resistências, mas, quando são verdades, nada pode impedir que prevaleçam, ainda que demorem séculos. E a própria Doutrina Espírita permite essa aceitação ao permanecer disposta ao abandono de algum ponto doutrinário provado contrário pela ciência e continuamente absorver as conquistas da própria ciência. Aliás esses parâmetros nunca a deixam ultrapassada, pois a mantém totalmente atualizada.
Alguém poderá levantar as questões litigiosas, que ainda não chegaram a um acordo geral. Deixemos a resposta com o próprio Kardec: «A força do Espiritismo não reside na opinião de um homem nem de um Espírito; ela está na universalidade do ensinamento dado pelos últimos; o controle universal, como o sufrágio universal, decidirá no porvir as questões litigiosas; fundirá a unidade da Doutrina bem melhor do que um concílio de homens. Esse princípio, disso estamos certos, senhores, fará o seu caminho, como fez o Fora da Caridade não há salvação, porque está fundamentado sobre a mais rigorosa lógica e na abdicação da personalidade. Não poderá contrariar senão os adversários do Espiritismo, e aqueles que não têm fé senão em suas luzes pessoais.”(2)
Quanto à verdade, somos incapazes ainda de sua compreensão absoluta. Ela vai sendo conquistada gradativamente, a lentos e penosos passos de progresso. Porém, podemos nos entender no consenso geral, critério utilizado por Kardec para aceitação de novas ideias, ensinos ou propostas apresentadas.
Trazemos tais reflexões em virtude do que o próprio Codificador escreveu na Revista Espírita de janeiro de 1862, que transcrevemos parcialmente: “(…) mas ainda há questões duvidosas, seja que não hajam sido resolvidas, seja que hajam sido em sentido diferente pelos homens, e mesmo pelos Espíritos (…) O melhor critério, em caso de divergência, é a conformidade do ensino pelos diferentes Espíritos, e transmitidos por médiuns completamente estranhos uns aos outros. Quando o mesmo princípio for proclamado ou condenado pela maioria, será necessário render-se à evidência. Se é um meio de se chegar à verdade, seguramente, é pela concordância tanto quanto pela racionalidade das comunicações, ajudadas pelos meios que temos para constatar a superioridade ou a inferioridade dos Espíritos; cessando a opinião de ser individual, por tornar-se coletiva, adquire um grau de mais autenticidade, uma vez que não pode ser considerada como o resultado de uma influência pessoal ou local. Aqueles que ainda estão incertos terão uma base para fixar suas idéias, porque seria irracional pensar que, aquele que está só, ou quase, em sua opinião, tem razão contra todos (…)”.
Com tais pensamentos, não há o que temer. Havendo dúvidas e falta de consenso, fiquemos com o critério de Kardec: o controle universal dos ensinos, cujas bases estão solidificadas no consenso geral.
(1) item 230, capítulo XX da segunda parte, página 265 da 49a edição IDE, com tradução de Salvador Gentile.
(2) Revista Espírita, de 1864, p. 141.