Marlene Fagundes Carvalho Gonçalves
de Ribeirão Preto, SP
“Quando se conhecer a arte de manejar os caracteres como se conhece a de manejar as inteligências, poder-se-á endireitá-los” ¹
Como se forma o caráter de uma criança? É possível “manejar” o caráter? Se se considera possível hoje manejar as inteligências, através do conhecimento sobre como tal se desenvolve, não seria possível fazer o mesmo sobre os caracteres?
Afinal, o que é caráter? Segundo o dicionário Aurélio, caráter pode ser definido como o conjunto das qualidades (boas ou más) de um indivíduo, e que lhe determinam a conduta e a concepção moral.
Segundo Wallon, estudioso francês que viveu de 1879 a 1962, “os métodos da psicologia tradicional, cujas pesquisas são ainda muito tateantes, revelam-se insuficientes ao estudo da psicologia do caráter (…) Durante muito tempo o estudo sistemático do caráter consistiu em decompô-lo na soma de qualidades ou propriedades prováveis e aptos a defini-lo. Submetê-lo a essa análise significaria tomá-lo em estado puro, como um conjunto estável, por assim dizer acabado.” ²
Mas sabemos que o homem está em constante mudança, em constante aprendizado, e que depende do seu grupo social, para desenvolver-se como pessoa integral.
Em relação ao desenvolvimento da inteligência e do conhecimento da criança, já se sabe que, em grande parte, este é função do meio social; são necessários instrumentos de origem essencialmente social, tal como a linguagem e os diferentes sistemas simbólicos para que seja construído o conhecimento.
Se o conhecimento tende a se uniformizar entre os indivíduos, com o caráter ocorre o oposto, pois é ele que distingue os indivíduos. Entretanto, “da mesma forma que a inteligência, o caráter não é composto de partes distintas, de átomos ou de radicais diversamente reunidos e combinados. (…) Precisaremos encarar o caráter, uma vez que este, em cada manifestação, exprime, de modo preciso, a totalidade da pessoa.” ²
O Livro dos Espíritos, no Capítulo XII, discorrendo sobre a Perfeição Moral, apresenta o egoísmo como um dos piores vícios, componente do caráter de muitos homens. Apresenta também uma forma de se destruir o egoísmo:
“Que se pesquisem em toda a estrutura da organização social, desde a família até os povos, da choupana ao palácio, todas as causas, as influências patentes ou ocultas que excitam, entretêm e desenvolvem o sentimento do egoísmo. Uma vez conhecidas as causas, o remédio se apresentará por si mesmo; só restará então combatê-las, senão a todas ao mesmo tempo, pelo menos por parte, e pouco a pouco o veneno será extirpado. A cura poderá ser prolongada porque as causas são numerosas, mas não se chegará a esse ponto se não se atacar o mal pela raiz, ou seja, com a educação. Não essa educação que tende a fazer homens instruídos, mas a que tende a fazer homens de bem. A educação, se for bem compreendida, será a chave do progresso moral. Quando se conhecer a arte de manejar os caracteres como se conhece a de manejar as inteligências, poder-se-á endireitá-los, da mesma maneira como se endireitam as plantas novas. Essa arte, porém, requer muito tato, muita experiência e uma profunda observação. É um grave erro acreditar que basta ter a ciência para aplicá-la de maneira proveitosa. (…) Que se faça pela moral tanto quanto se faz pela inteligência e ver-se-á que, se há naturezas refratárias, há também, em maior número do que se pensa, as que requerem apenas boa cultura para darem bons frutos. ¹
Daí a importância do estudo da formação do caráter e da moral.
As primeiras tentativas da psicologia de se estudar o caráter o ligavam à constituição fisiológica, tendo por base o estudo do organismo, e se mostraram não muito eficientes.
Wallon propôs o estudo genético (ou seja, que busca a gênese, a origem – não confundir com hereditariedade) do caráter. “Por meio desse estudo verifica-se, particularmente, de como a criança, ao se desenvolver, elabora de etapa em etapa essa espécie de índice individual que se chama caráter.” ²
Em seu estudo, ele vai olhar a partir do bebê recém-nascido, e até mesmo o feto, para buscar a construção que é feita destas características que o definem como uma pessoa. Suas observações iniciais apontam para a emoção: manifestações corporais dos sentimentos e sensações.
O bebê não tem ainda outras maneiras de se expressar que não a emoção. É através dela que se comunica com o outro, com o adulto que cuida dele, e é através dela que começa a estabelecer sua relação com o mundo. Ao expressar o que sente, os adultos à sua volta vão atribuindo significados às suas ações, que ele vai aí se apropriando, construindo sua própria forma de ver o mundo.
É um momento em que o Espírito está extremamente aberto à influências do outro, em virtude do efeito da matéria sobre si.
Vários significados sobre suas ações são lançados, e ele vai formando sua própria conduta, suas posturas, ao se apropriar de tais significados. Por exemplo, quando o bebê cai ao dar seus primeiros passos, as reações dos adultos vão lhe mostrando alguns caminhos possíveis para sua construção, que vão desde o significado do cair como algo ruim, amedrontador, que ele não pode superar sozinho, como algo comum, corriqueiro, a ser superado. Ou ainda, quando um coleguinha tira-lhe seu brinquedo, aquele especial que ganhara de Natal e custara caro aos seus pais. As reações dos adultos na seqüência apontam e mostram significados que ele vai incorporando ao seu caráter.
Assim, suas vivências, e em especial a relação com os outros, vão sendo fundamentais nesta construção de si mesmo, de seu próprio caráter.
Esta talvez seja uma possibilidade de compreensão do alerta de Kardec, quando diz “que se pesquisem em toda a estrutura da organização social, desde a família até os povos, da choupana ao palácio, todas as causas, as influências patentes ou ocultas que excitam, entretêm e desenvolvem o sentimento do egoísmo. Uma vez conhecidas as causas, o remédio se apresentará por si mesmo; só restará então combatê-las…”
Bibliografia:
- KARDEC, A.; O Livro dos Espíritos, perg. 917.
- WALLON, H.; As origens do caráter na criança, SP, Difusão Européia do Livro, 1971.
E-mail da autora: [email protected]
(Jornal Verdade e Luz Nº 186 de Julho de 2001)