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Em Torno da Fé

Em Torno da Fé

Dizia a professora de História – já lá vão uns anitos -, referindo-se sob
certo aspecto à transição da época medieval para a Idade Moderna, que, em tempos
idos, quando dois fulanos ilustrados se encontravam, por hipótese, a meio
caminho entre povoações, lembrando-se de discutir algum assunto da ciência
oficial da época, mediante qualquer antagonismo de argumentação, recorriam a uma
consensual solução: os tira-teimas eram os textos clássicos e os de ordem
religiosa. Ou seja, estava escrito, era como era!

Hoje ainda encontramos no movimento espírita, e fora dele, muita gente a
pensar assim. Será natural… mas indesejável.

É que as coisas não valem tanto como isso porque estão escritas, mas sim por
serem passíveis de se compatibilizar com a realidade objectiva – o mais
possível, pelo menos! Porque são racionais, porque têm fundamento, pois a
experiência as suporta.

Tratar-se-á da dicotomia entre dogma e ciência.

Isto vem a propósito da distinção entre as chamadas fé divina e fé humana.
Vem na seqüência do tipo de estrutura prática da fé dos espíritas (desejar-se-ia
que fosse mais a inspirada pelo espiritismo ou doutrina espírita).

O que é isso?

Normalmente, esta palavra de duas letras – fé – apenas contém subjectivamente
uma grande carga emotiva, no sentido de o homem comum lhe atribuir um sentido
meramente religioso. Contudo, fé é muito mais do que isso!

É certamente uma convicção, mais ou menos fundamentada. E… em quê? Sim: em
quê?

Naturalmente, ora se fundamentará numa crença cega (aquela do é porque é)
ora, de outro modo, numa crença baseada em factos. Será a dita fé cega (base do
fanatismo, tocando a criminalidade, às vezes) e, alternativamente, a chamada fé
raciocinada (a que é capaz de «enfrentar a razão face a face em todas as épocas
da Humanidade», segundo a cardequeana). Espíritas que existam (um contra-senso
empírico) que não estudem, estão bem no meio, com perspectivas relativas de
melhoria…

Outros há, até profissionais espiritualistas (sacerdotes), que afirmam que fé
e razão não se tocam – e que outra coisa seria de esperar! Não conhecem o
espiritismo a não ser pelo rótulo. (Disseram-lhes que o conteúdo era
proibido…).

Nada há na natureza que não possa ser pesquisado, caminhando-se para uma
tomada de conhecimento gradual e crescente. É o sentido histórico da Humanidade,
uma derrogação evidente do pretexto do sobrenatural (que nunca existiu).

Mas a fé é um exercício no dia-a-dia. Só que quase nem nos apercebemos disso.

A humana

Está tão entranhada no quotidiano que nem notamos: é o comportamento perante
o semáforo no trânsito citadino (o vermelho que nos inibe o movimento e o verde
que nos induz a avançar, a partir do momento em que assimilamos o mecanismo de
causa e efeito relativo); ou na própria ingestão de alimentos, às refeições
(confiamos nas capacidades digestivas do organismo, pois o seu mecanismo,
inconsciente embora, funciona – e nós estamos «carecas» de saber isso).

No fundo e na superfície é a crença do cientista que repete experiências,
elaborando numerosas hipóteses explicativas, testando-as em laboratório,
chegando a conclusões, certo de que chegará à meta do conhecimento e domínio de
certa lei. É o fundamento do trabalho do engenheiro que esboça projectos de
máquinas para atingir maior rendimento numa certa actividade industrial. E por
aí fora…

Da fé humana, que resulta da repetição de vivências que permitem prever que
um determinado agora provoca um específico depois, caminhamos para a fé divina.

A divina

O seu mecanismo é idêntico. A partir do momento em que percebemos que vivemos
segundo a lei (que não nos pede opinião para agir) das vidas sucessivas,
colhendo aulas, repetidas e renovadas, em cada uma delas torna-se fácil
compreender que um religioso diga que a fé não se liga com o raciocínio (dado
que ele se atém aos dogmas hierárquica e tradicionalmente estabelecidos – aí há
que obedecer, ainda que…). Mesmo assim, por outro lado, evidencia-se a
capacidade diferente, em cada qual, de perceber, de «apanhar o ângulo», de molde
a ser uma criatura habilitada a manipular quotidianamente o seu «grão de
mostarda» de fé.

Contudo, a fé, para quem diz não a ter, ainda que mais pequenita do que o
grão referido, se parece não estar lá, intimamente, ganha-se, melhor,
conquista-se. Como? Estudando, observando, aprendendo. Aqui temos que notar: não
há pior aluno do que o que não se deixa motivar para apreender; e quem procura
acha.

O leme

O assunto não é simples, mas também não é totalmente complexo. Estar na vida,
já estamos. Tudo indica que a morte seja uma quimera e o suicídio a pior porta
que podemos abrir (mais valeria ficar parado!). Por isso, no nosso próprio
interesse, torna-se indispensável ver por onde estamos a conduzir a barca desta
vida – somos nós mesmos quem está ao leme. O marinheiro competente tem fé na
bússola. Nós temos cuidado de atender a essa orientação? O rumo é duvidoso se
não nos inspiramos numa fé consciente, tendo mão no leme.

E o que é essa fé tão vantajosa? É a fé raciocinada, a que assenta em factos,
dando uma opinião lúcida, uma crença fundamentada na realidade objectiva, embora
tendo a sua vertente subjectiva, traçando as realizações, de quaisquer tamanhos,
do amor e da sabedoria, os tesouros que Deus – essa causa primeira e
inteligentíssima – nos chama a partilhar, pouco a pouco, no desfiar dos séculos.
Mas desde já.