Entrevista com Silvio Seno Chibeni
A transcomunicação instrumental, o fenômeno de quase-morte e a terapia de vidas
passadas, que surgiram recentemente como novos campos de estudos, são fenômenos
que representam desafios para as concepções cientificas vigentes e tem suscitado
bastante interesse na Europa e nos Estados Unidos. Dentro da filosofia da ciência,
qual seria a abordagem adequada a ser seguida no seu estudo? Os Espíritas tem individualmente
participado do desenvolvimento dessas pesquisas, mas seria recomendável um engajamento
maior das instituições espíritas? Haveria justificativa para algo como um comitê
patrocinado por uma federação ou um conselho espírita?
Resposta:
A análise do estatuto científico das três áreas de investigação mencionadas exigiria
uma atenção particularizada em cada caso, não cabendo no escopo desta entrevista.
De um modo geral, a abordagem científica de qualquer classe de fenômenos requer
o cumprimento de uma série de condições. Mais uma vez, não há espaço aqui para enumerá-las.
Poderia destacar, no entanto, que o desenvolvimento de uma disciplina científica
pressupõe não apenas a observação rigorosa dos fatos, mas principalmente a formulação
de teorias logicamente consistentes, abrangentes, coerentes, simples e integradas
às teorias estabelecidas de domínios conexos de fenômenos. Insisto nesse ponto porque
a falha metodológica mais comum nas linhas de investigação que têm pretendido, sem
sucesso, suplantar o Espiritismo em nome da cientificidade é exatamente a desatenção
ao aspecto teórico. Aliás, como já indiquei em alguns dos artigos mencionados, isso
parece ser uma herança indesejável das concepções antigas de ciência, de cunho positivista.
Muitas coisas que se têm visto com relação às aludidas abordagens parecem indicar
que as falhas de concepção científica que caracterizaram a metapsíquica e a parapsicologia
não foram definitivamente superadas. Não quero, evidentemente, generalizar; mas
que há um risco potencial aqui, há. Seria sensato que os investigadores interessados
nesses fatos, ou alegados fatos, desenvolvessem seus estudos a partir do fértil
e seguro programa científico de pesquisa espírita, pois que nunca se apontaram razões
ponderáveis para a sua substituição. Ao invés disso, avançam-se insinuações explícitas
ou implícitas de que serão essas e outras linhas de pesquisa assemelhadas que finalmente
colocarão o estudo do espírito na rota da ciência …
Quanto ao engajamento de instituições espíritas, com a constituição de comissões,
não me parece recomendável, não apenas em vista das reservas expressas acima, mas
também porque tal prática não mais condiz com a ciência, devendo ser deixada para
partidos políticos, administradores e seitas hierarquizadas. Na ciência, e portanto
no Espiritismo, a regra do jogo é o livre-exame, o intercâmbio de idéias, a sujeição
de todas as propostas à mais vigorosa crítica. Que cada um, pois, investigue o que
achar melhor, já que todo fato tem uma certa importância para o nosso conhecimento
do mundo; previna-se, no entanto, de assumir certas teses filosóficas sobre a cientificidade
desse ou daquele método, dessa ou daquela disciplina, sem os necessários estudos
profissionais.
Questão 7:
Alguns partidários do Espiritismo “não-religioso” ou “laico” argumentam que a
ênfase religiosa tem prejudicado os aspectos científicos da doutrina. Que a pesquisa
espírita tem sido relegada a segundo plano e praticamente inexiste. O que caracterizaria
uma pesquisa científica espírita? Seria um ramo separado da ciência ou uma postura
diferenciada dentro dos ramos atuais? O que poderia ser feito para incentivar o
desenvolvimento dessa pesquisa?
Resposta:
Na perspectiva do Espiritismo, resumida na resposta à Questão 3, a genuína religião
está na busca e cultivo de princípios morais capazes de nos colocar em harmonia
com o plano da Criação, transformando-nos gradualmente em seres felizes que espalham
felicidade ao seu redor. Assim entendida, a religião integra-se naturalmente à ciência
espírita, pois que é esta que determina as conseqüências globais das ações humanas
a curto e longo prazos, formando a base experimental sobre a qual a razão operará
para identificar os preceitos de conduta que nos aproximem da felicidade. Ver, portanto,
antagonismos ou tensões quaisquer entre a religião e a ciência espíritas constitui
evidência de pouco estudo e pouca reflexão sobre a verdadeira índole do Espiritismo.
Infelizmente, o despreparo e os atavismos de muitos indivíduos que colaboram
de boa vontade nas fileiras espíritas fazem com que certas práticas pouco condizentes
com a pureza doutrinária se implantem em diversas instituições, e acabem mesmo divulgadas
em palestras, livros e periódicos ditos espíritas. Quem compreende essa situação
deve trabalhar para modificá-la. Mas a via para isso é a do esclarecimento, do estudo,
do convencimento pela razão e pelo amor, jamais os anátemas ou, o que é ainda pior,
o repúdio daquilo que se supõe ser o “aspecto religioso do Espiritismo”.
É provável, aliás, que essa “rejeição do bebê com a água do banho” tenha pesado
muito no declínio e virtual extinção do movimento espírita em países europeus a
partir, digamos, do início do século. Não se pode mutilar um corpo doutrinário integrado,
como o é o Espiritismo, sem arcar com efeitos drásticos, seja qual for a área em
que o tenhamos atingido. Assim, num sentido oposto ao considerado na pergunta, pode-se
querer desprezar as bases científicas do Espiritismo, e as conseqüências não seriam
melhores.
Quanto à pesquisa científica espírita, acredito que sua natureza já tenha sido
salientada nas respostas precedentes. No artigo “A ciência espírita” abordo explicitamente
o tema, ainda que de forma breve, lembrando que constitui equívoco imaginar que
essa pesquisa deva dar-se nas mesmas instituições e com os mesmos métodos e pressupostos
teóricos que os das ciências da matéria. O reconhecimento desse ponto seria de suma
importância hoje em dia, quando se nota uma inclinação de muitos espíritas na direção
de linhas de pesquisa científica e filosoficamente primitivas relativamente à do
genuíno Espiritismo.
A afirmação de que não se têm realizado pesquisas científicas espíritas parece
resultar de uma compreensão deficiente do que sejam a ciência e o Espiritismo. Após
as fundamentais realizações de Allan Kardec, que instituíram o paradigma científico
espírita, outros investigadores encarnados e desencarnados prosseguiram em sua extensão,
não necessariamente em laboratórios acadêmicos, porque não é aí que os fenômenos
relativos ao espírito podem mais apropriadamente ser estudados, mas nos centros
espíritas, no recesso dos lares, no mundo espiritual, e onde quer que se possa observar
e refletir sobre a face espiritual do ser humano. Gosto de dar como exemplos de
pesquisadores espíritas André Luiz, Philomeno de Miranda e Yvonne Pereira, dentre
tantos outros, que, num trabalho silencioso e fecundo, enriqueceram o acervo de
informações e reflexões sobre os fenômenos anímicos e mediúnicos, as condições da
vida no plano espiritual, a lei de causa e efeito, etc. Quem ler suas obras apenas
superficialmente, ou com inadequado senso científico, tenderá a ver nelas apenas
romances, historietas e narrações literárias, quando na realidade seu objetivo primordial
é bem outro.
O incentivo e incremento das pesquisas científicas espíritas deve, pois, principiar
com a identificação e o abandono de abordagens incipientes ou pseudo-científicas,
prosseguir com a adesão às linhas de pesquisa paradigmáticas da doutrina, e concluir
com o estudo filosófico das conseqüências da ciência espírita para a questão de
nosso acerto com as normas morais evangélicas, sem o que essa ciência se tornará
estéril.
Campinas, maio de 1998.
(Publicado no Boletim GEAE Número 300 de 7 de julho de 1998)