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Espaço Para Deus

Hermínio C. Miranda

Todos nós trazemos na profunda intimidade do ser um amplo espaço reservado para Deus. São muitos, contudo, nos dias que correm, aqueles que julgam poder expulsá-lo daí. Em verdade, é como se Deus se deixasse mesmo expulsar, pois é grande seu respeito pelo nosso livre-arbítrio. E embora ele continue ali mesmo, pois não há como dissociarmo-nos dele, de vez que nada existe senão nele, as coisas se passam como se Deus não existisse mesmo, pelo menos, ali, nos limites daquele território pessoal.

Há uma personagem de Somerset Maugham, creio que em THE RAZOR’S EDGE (O FIO DA NAVALHA), que dá graças a Deus por não mais acreditar nele. Sente-se aliviado, o pobre! E a primeira coisa que lhe ocorre fazer é prestar seu tributo de gratidão a Deus por ter desocupado espaço interior.

Resta, porém, um problema: com o que preencher aquela vastidão íntima que. de repente, parece desértica, árida, morta e empenhada apenas em repetir os ecos de nossa inesperada solidão? Subitamente ficamos sem lastro, como que soltos no tempo e no espaço. sem rumo e sem retorno, livres, sim, de ir para onde quisermos, mas para onde mesmo queremos ir? Livres para fazer o que muito bem entendermos, mas o que é mesmo que estamos pretendendo fazer? O que fazer da “liberdade” recém-adquirida? E será que estávamos presos a alguma coisa antes? Ou era apenas a birra ingênua da criança que ,e solta das mãos da mãe e dá meia dúzia de passos incertos, apenas para saborear uma liberdade que não pode e não sabe como usar e nem para que a deseja?

Em livro denominado CHRISTIANITY AND THE CRISIS (1) publicado em 1933, teólogos e pensadores de formação predominantemente anglicana apresentam uma demorada reflexão, tentando caracterizar as eventuais responsabilidades do Cristianismo na crise em que mergulhara o mundo daqueles tempos, mal saído de uma guerra mundial e às vésperas de outra, ainda mais terrível e assustadora. Será que não tinha a doutrina de Jesus uma contribuição positiva para as mudanças que, evidentemente, a comunidade mundial estava a exigir?

Eram muitas as especulações e as interpretações postas no livro, dado que eram muitas as cabeças a pensar. Talvez por isso, as conclusões foram, a meu ver. desalentadoras, uma vez que o Sr. Arcebispo de York, incumbido de redigi-las, encerra seu texto com uma proposta um tanto romântica, acho eu, de arrependimento, mas que nem a ele próprio parece viável:

– Nem existe qualquer esperança prática – diz ele – de tal arrependimento até que os seres humanos acreditem efetivamente e ajam de acordo com a boa nova a respeito de Deus, segundo a palavra veiculada pelo Cristo.

Como se vê, o problema continuava posto em termos de fé. Mas como posso eu estruturar a minha fé sobre alicerces que, no meu entender, não resistem aos testes mais elementares da racionalidade de que necessito para confiar neles e na fé que me propõem?

Por isso, diferem as minhas conclusões das que propõe o Sr. Arcebispo e, conseqüentemente, minhas opções, tal como as expus, umas e outras, em livro ainda inédito (CRISTIANISMO A MENSAGEM ESQUECIDA). De forma alguma acho que o fracasso deva ser atribuído AO Cristianismo e sim a ESSE Cristianismo que nos está sendo oferecido desde muitos séculos.

E neste ponto, concordo (eliminando os talvez ) com um dos contribuintes do livro, o Dr. A. Herbet Gray, que assim escreve:

– Talvez o Cristo tenha sido largamente incompreendido ao longo de todos esses séculos. Talvez as Igrejas tenham-no deturpado. Talvez o que os seres humanos tenham rejeitado não seja o real Cristianismo do Cristo, mas algo parcialmente falsificado.

Por isso, propõe ele uma volta, sem intermediários, ao Cristo, àquele “profeta campesino que fala mim tom que exige atenção”.

Ao lado de muitas outras, vamos encontrar especulações semelhantes em livro bem mais recente, do eminente teólogo católico suíço Hans Küng (2), compreensivelmente em desgraça perante sua própria Igreja por causa de suas idéias não muito ortodoxas.

Após abordar com sensibilidade e inteligência a inquietação mundial em busca de alternativas, Küng parece convicto de que essa procura, que resulta em dramático esvaziamento das Igrejas em geral e não apenas da sita, é motivada pelo pouco que as teologias vigentes têm a oferecer, principalmente aos jovens. As estatísticas são particularmente contundentes neste ponto, muito embora, segundo o Dr. Küng, as hierarquias eclesiásticas não pareçam muito preocupadas com essa fuga maciça.

Mesmo a mim, leitor habitual de tais informes, surpreende-me o vertical mergulho rumo ao zero que se observa nas curas de freqüência reveladas pelo autor. Segundo ele, verificou-se, nos últimos vinte e cindo anos, entre pessoas menores de 30 anos de idade, uma queda de 13 para 2 por cento na freqüência regular aos templos protestantes e de 59 para 14 por cento nus templos católicos. O ilustre teólogo considera alarmantes tais números e o são, de fato e não hesita em atribuir a esse êxodo impressionante, “a muito lamentada perda de sentido e o vácuo de orientação-experimentados pela juventude contemporânea.

– Para muitos críticos da civilização – prossegue ele – esse vácuo de orientação e de identidade é urna das causas da óbvia crise de nossa sociedade.

É certo que o Prot Kung identifica bem as causas e prega-lhes a rótulo adequado, mas devo confessar honestamente, que não encontro nas suas propostas, por motivos igualmente óbvios para mim, remédios aplicáreis ás mazelas que aponta.

E que, a despeito de toda a sua proclamada rebeldia a importantes posturas de sua Igreja, ele continua operando dentro de um contexto pesadamente dogmático quanto a aspectos citais ao entendimento dos mecanismos da vida. A sobrevivência do ser continua posta em termas de fé, ou, no máximo, de esperança. A razão de nossa presença na Terra ainda é questão aberta; a morte, um problema espinhoso que, a seu ver, o próprio Jesus encarou com temores (?!), ao queixar-se do abandono a que havia sido relegado pelo Pai; a ressurreição do Cristo, ainda um enigma e uma exceção, não a regra; a existência terrena, uma só; o mundo póstumo, um denso mistério especulativo; a doutrina da graça persiste.

Como poderia um pensador cercado de tantas inibições propor soluções compatíveis corri a complexidade e profundidade da crise contemporânea, que transcende dogmas e ignora especulações filosóficas? Que sugestões oferecer ao jovem que busca alternativas para os regimes políticos vigentes. para a cultura, os costumes, a economia. e para a própria religião?

Se a vida é só isto aqui e ninguém lhe assegura e demonstra uma existência póstuma, que resta ao j jovem senão tentar tirar a máximo proveito desta única que ele conhece?. Dar :r sofreguidão pelo prazer, sela dual for o seu custo em termos materiais. morais, de saúde e paz interior. É tal como dizia Paulo. o primeiro e mais esquecido teólogo cristão: se a vida é só isto que se vê, então comamos e bebamos despreocupadamente, pois a morte está logo ali, à nossa espera, para levar-nos de volta ao nada, de onde viemos.

– A nossa sociedade – escreve um jovem citado por Küng – oferecer-me apenas os familiares e surrados caminhos e me concede a “liberdade” de escolher um deles. Mas eu não quero, nem estou em condições de levar uma vida pré-programada, com um dia de oito horas, seguro de vida, promoção e aposentadoria; quero, de fato, viver a minha vida.

E, para concluir, mais adiante, a razão de tudo isso:

– Esta é a minha única vida.

Pois não é. E isto faz uma brutal diferença. Nós, os que nos situamos num contexto ideológico em que o conceito das vidas sucessivas é um dos seus predominantes princípios ordenadores. nem nos damos conta do quanto isso é vital para exata avaliação das opções que temos diante de pós, dado que viver é escolher. Não há como exigir ou esperar de uma pessoa enjaulada no conceito da unicidade da vida, que tenha uma visão ampla e equilibrada dos seus encaixes nas engrenagens dessa mesma vida. Falta-lhe perspectiva, é exígua demais a sua paisagem e, por isso, angustiante. É certo que a fé ou a esperança numa existência futura, ou melhor, na continuidade da vida, podem proporcionar alguns dados para um planejamento mais inteligente de nossos atos, mas o que realmente decide aqui é a c convicção da sobrevivência não a hesitante expectativa. Essa é a idéia básica que retira da morte o seu aguilhão, como está em Paulo, e nos coloca no exato ponto de onde podemos contemplar, com serenidade, mesmo as perspectivas mais remotas que a nossa visão, necessariamente limitada, não possa alcançar.

Sem isso, e programados pela noção de que a vida é só isto aqui, então Indo é válido, em termos de satisfação sensorial. de alienação, de irresponsabilidade. Tudo se pensa e faz com um toque aflitivo de que-me-importismo. Para que tensões, aflições, preocupações, se tudo se resolve com o término da existência física? Para que renúncias, aceitações relutantes e sacrifícios anônimos? Por que a dor?

E é assim que se tenta, desesperadamente, preencher o vasto espaço que se abre, quando pensamos expulsar Deus pela porta dos fundos. Assusta-nos a solidão, soam soturnamente nossos passos, no silencio que se faz, projetam-se sombras fantasmagóricas em paredes inexistentes, de cada canto escuro espreitam-nos temores desconhecidos e mistérios insondáveis, a própria vida parece tini equívoco, uma vaga piada de mau gosto. Por isso, são tantos os que procuram atordoar-se com sons ensurdecedores, com drogas alienantes, com agressividades assustadoras, com doutrinas alucinantes, com fantasias e fuga, impossíveis.

Não estaríamos vivendo esse momento trágico se a mensagem cristã tivesse sido mantida em todo o vigor da sua pureza primitiva, mas já que o estamos vivendo, é preciso entender que a única saída é por ali através da passagem que nos leva de volta à doutrina universal do amor, posta em ação dentro de um inteligente contexto de racionalidade, em que a fé amadureceu em convicção é e a esperança virou certeza.

Ao contrário do que muita gente está (desastradamente) pensando, não tentos somente uma vida. A morte é apenas mudança de estado e dimensão. Co mo poderia haver morte como extinção da vida se Deus é Vida inextinguível e nele vivemos todos?

Muito bom seria que os que levam uma existência de “faz de conta”, questionassem, como Heine, citado, aliás, pelo Prof. Küng:

-Deixe dessas parábolas sagradas e hipóteses pietistas: responda-nos a estas terríveis perguntas… Nada de evasivas, por favor. Por que cambaleiam, em sangue, os homens justos, esmagados sob o peso de suas cruzes. enquanto os maus cavalgam belos corcéis, vitoriosos e felizes, bafejados pela sorte? Quem é culpado disso?. Deus não é poderoso, dotado de um poder revestido de armaduras? Ou será que o mal é de sua própria autoria” Ah, mas isso seria realmente uma vileza? E assim, perguntamos e continuamos a perguntar, até que um punhado de frio barro cale a nossa boca, afinal, com segurança… Mas, por favor, será essa a resposta?

Claro que não, meu caro Heinrich. Você morreu em 1856 e o barro frio não calou a sua boca, você pode continuar falando. Ao tapar-lhe os olhos da carne, a terra iria abriu-lhe o, do espírito para uma insuspeitada realidade, onde os justos não gemem ao peso de suas dores, nem os maus desfilam suas trágicas “vitórias”. Agora você sabe. Fale, pois, a sua boca daquilo que está no seu coração.

E se ele houvesse esperado um pouco mais, talvez chegasse a saber, mesmo aqui, deste lado da vida, pois em 1857 no ano seguinte ao da sua partida, apareceu nas vitrines das livrarias parisienses a obra que continha as respostas com as quais sonhara e que até pressentira com a sensibilidade de poeta, mas que não estava encontrando naquilo que lhe diziam ser a mensagem de Jesus, o Poeta Maior do amor universal.

O LIVRO DOS ESPIRITOS foi o título. É que nós, os humanos, nos perdêramos de novo e foi preciso virem os Espíritos nos dizer outra vez aquilo que não tínhamos o direito de ignorar.

Fique, pois, reservado em nós o espaço de Deus. Se não cremos nele. ele acredita em nós. Falemos com ele, pois ele está ali mesmo, e ouve e responde. E exatamente porque ele crê em nós é que traçou nas trilhas cósmicas do infinito um roteiro pontilhado de vidas e mais vidas, até que a gente aprenda a suprema arte de viver. Aí, sim, teremos uma só vida – a eterna, mas mesmo isto será apenas um diferente aspecto da verdade, porque tia eternidade já estamos, enquanto escrevo estas mal traçadas linhas e o leitor as lê…

Bibliografia

1- DIVERSOS – Coordenação de Percv Dearmer CHRISTIANITY AND THE CRISIS, Ed. Victor Gollancz, Londres, 1933

2- Hans Küng – ETERNAL LIFE” Ed. Collins. Londres e Doubledav, New York, 1984, trad. de Edward Quinn do original alemão EWIGES LEBEN?, Ed. Piper&Co. Munich, 1982

7º Congresso Espírita Estadual – Águas de São Pedro – SP – 22 a 24/Agosto-86 Tema Central: O Espiritismo no Século XX

(Revista Internacional de Espiritismo – Julho de 1986)

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