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Estudo do “Novo Testamento” nos grupos espíritas

Carlos Alberto Iglesia Bernardo
(Comentários referentes ao tema levantado no Boletim 406 pela pergunta do Daniel)
A Doutrina Espírita, como todos sabem, nos traz a proposta de libertação do homem – libertação de sua consciência de erros milenares – e a adequação dos conhecimentos espirituais aos avanços da razão. Dentro desta proposta cabe ao espírita usar de sua razão e do estudo sincero no trabalho do seu esclarecimento próprio, pensando por sí mesmo e optando livremente por seus caminhos.

Não só crenças e hábitos milenários devem ser reavaliados, mas também as próprias propostas das ciências acadêmicas devem ser analisadas e repensadas a luz dos novos conhecimentos. Nem “dogmas” de fé, nem “dogmas” modernos acobertados pela apressurada análise superficial dos fatos.

Dentro dos “dogmas” modernos, que infelizmente muitas vezes ecoam sem muita análise em nossos grupos, está a famosa “deturpação” dos escritos reunidos no “Novo Testamento”. Na realidade em centros acadêmicos, espalhados pelo mundo todo, há especialistas dedicados aos estudos das escrituras – católicos, protestantes e até ateus – e dificilmente se encontrará entre eles um consenso, uma certeza tão absoluta desta “deturpação” como em alguns de nossos palestrantes.

É verdade que os textos medievais apresentavam problemas de tradução, mas nossas edições modernas – através dos estudos dos manuscritos mais antigos – são razoavelmente exatas em relação as tradição mais antigas. Naturalmente há divergências no emprego de palavras, pois nem o latim, nem o grego antigo, são mais línguas correntes e toda tradução, de algum modo, sempre faz opções particulares. Mas como está no próprio evangelho, a “letra mata” e o “espírito vivifica”.

A tão enfatizada deturpação se baseia mais nos hábitos de leitura dos evangelhos – que inconscientemente nos levam a “forçar” um determinado entendimento ao lermos o texto em detrimento de outros – formados ao longo do tempo, do que no que está escrito. Leia-se o evangelho sem preconceitos, sem idéias pré-estabelecidas do que está escrito, como se fora a primeira vez que se lêem os conceitos e se verá que são bastante modernos e muito claros. Se tivessem sido tão deturpados não teriam ainda tanta força espiritual*. Claro que uma ou outra alteração permanece, mas dificilmente será de grande porte – talvez alguns trechos obscuros jamais sejam recuperados em seu significado original, qualquer que tenha sido, como por exemplo o texto completo ou verdadeiro da figueira seca, mas o conjunto ainda é bastante claro.

Allan Kardec e os espíritos que participaram da Codificação, deixando de lado os pontos polêmicos, puderam com tranqüilidade reconstruir a moral evangélica (vide “O Evangelho Segundo o Espiritismo”), conservada pelos evangelistas. Já no livro “A Gênese”, foi abordado o estudo dos “milagres e predições” registradas lá, provando que eram fenômenos mediúnicos condizentes com os conhecimentos espíritas e que nada tinham de sobrenatural. Foi justamente recusando a veracidade desses “milagres”, apresentados pela igreja como provas da intervenção de Deus para testemunho da missão de Jesus, que começaram as criticas a veracidade do Novo Testamento. Por exemplo, um dos argumentos iniciais para a data tardia de criação dos textos é a profecia da destruição do templo de Jerusalém na guerra de 70 DC, ora, como os críticos não acreditavam em profecias, o texto só poderia ter sido escrito depois do fato.

Um espírita deve considerar que se as deturpações tivessem tido a extensão que lhes atribuem, os fenômenos registrados não teriam mantido uma descrição tão próxima da realidade dos fenômenos mediúnicos e nem a simplicidade dos textos teria sido preservada, contendo ensinamentos que na maior parte das vezes iam contra o que se praticou como “Cristianismo” durante quase 2.000 anos. Compare-se por exemplo, com a hagiografia medieval – repleta de lendas francamente absurdas – ou os complicados escritos teológicos medievais.

Outra fonte de criticas é a aparente incoerência entre os autores, incoerência que ficava difícil de justificar quando se assumia que os textos eram “sagrados”, sob inspiração direta do altíssimo. Hoje, como espíritas, sabemos que Jesus foi um espírito extremamente adiantado, mas não o próprio Deus e que os Apóstolos, também espíritos adiantados, eram humanos. Médiuns inspirados, mas humanos. Também sabemos que os evangelhos são resultado do estilo de pregação de cada um – registram tradições e formas de apresentação destas tradições para públicos diferentes. Talvez até sejam recompilações de textos mais antigos, como querem alguns especialistas, mas trazem todos os sinais de uma autenticidade marcante.

Alguns dados atuais sobre o assunto:

  • As informações dos evangelhos sobre a cidade de Jerusalém são precisas, quem as escreveu conhecia a cidade antes do desastre de 70 DC. Somente com as pesquisas arqueológicas modernas voltamos a ter uma noção exata de sua configuração e com certeza era um conhecimento que os escribas do império romano tardio e da baixa idade média (época em que as deturpações poderiam ter sido feitas) não tinham;
  • O estilo de uso das profecias bíblicas, tão criticados por parecerem “inserções forçadas” para justificar “a posteriori” a missão messiânica, era corrente na época de Jesus. Este fato era totalmente desconhecido dos especialistas até a descoberta dos manuscritos do mar morto, que provou uma efervescência religiosa muito grande no período. Estes manuscritos foram escondidos por volta de 70 DC. Novamente este fato era totalmente desconhecido até nossos dias;
  • Estudando-se com cuidado os Evangelhos, se reparará que nem Jesus nem os apóstolos poderiam ser iletrados, deveriam conhecer o grego (há uso de palavras derivadas do grego – por exemplo, hipócritas, que ganhou o sentido moderno a partir do uso dado por Jesus), o latim (há frases e jogos de palavras que indicam que Jesus conhecia o idioma), o Aramaico (língua “franca” da época na região) e o hebraico (língua das escrituras sagradas). Este fato foi também considerado prova de inserções posteriores, pois se desconhecia a intensidade da atividade intelectual no período. Hoje – pelas descobertas arqueológicas (destacando-se os manuscritos do mar morto) e por um conhecimento maior da realidade econômica e cultural – se sabe que não era nada extraordinário o domínio desses idiomas. Muito menos extraordinária a alfabetização para um povo que considerava uma obrigação sagrada a leitura das escrituras (muitas já vertidas para o grego na versão dos 70) e que se dedicava ao comércio.
  • A quantidade de manuscritos descobertos no último século e seu estudo mais preciso, tem feito recuar a antiguidade da datação dos textos conhecidos. Há estudiosos que inclusive defendem que os pedaços de manuscritos mais antigos do Evangelho segundo Mateus, datam de antes do ano 70 DC ! Essa redatação se baseia na comparação entre os manuscritos cristãos mais antigos e o estilo dos manuscritos do mar morto. Em nenhuma das versões conhecidas foram encontradas diferenças de fundo com os evangelhos atuais, há diferenças na tradução de palavras – mas não no sentido final.
  • O conhecimento dos evangelhos “apócrifos” – não reconhecidos pela tradição cristã como inspirados – também aumentou muito, principalmente com a descoberta de novos textos gnósticos. E, novamente, não se encontrou neles nada que caracterizasse um “evangelho” original desfigurado pela igreja. O que estes evangelhos apócrifos trazem em sua maioria, são tradições adicionais reconhecidas por grupos específicos de cristãos, que até podem ser – talvez por estudos futuros – reconhecidas como legitimas, mas que “acrescentam” e não “substituem” os evangelhos” que conhecemos.

Concluindo, não há porque o “Novo Testamento” não deva ser estudado pelos espíritas, em conjunto com o “O Evangelho Segundo o Espiritismo” e com “A Gênese”. Nossa Doutrina é cristã e nas tradições do Novo Testamento estão nossas raízes, inclusive os dados conhecidos sobre a vida de Jesus de Nazaré, apontado pelos Espíritos – O Livro dos Espíritos – como o modelo mais perfeito a ser seguido pelo homem (questão 625).

Estudando o “Novo Testamento” cada espírita deverá julgar por sí mesmo o que é verdadeiro ou falso, o que é fato e o que é
lenda, e não deixar-se levar simplesmente pelo comodismo de ignorá-lo porque dizem que foi adulterado. Assim é nossa Doutrina, o
homem é livre para raciocinar e não deve nunca julgar sem análise prévia.

Referências Bibliográficas
 

  • A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã, Julio Trebolle Barrera, ed. Vozes
    • Estudo da “história” do texto bíblico, de suas edições, traduções e transformações ao longo do tempo. Importante por tratar dos manuscritos existentes, de como foram descobertos e de suas origens;
  • A Gênese, Os milagres e as predições segundo o Espiritismo, Allan Kardec
    • Estudo dos milagres e das predições que constam do Novo Testamento, utilizando os conhecimentos espíritas sobre a mediunidade;
  • Autenticidade histórica dos Evangelhos, F. Lambiasi, Edições Paulinas
    • Estudo dos diversos critérios empregados para analisar a autenticidade histórica dos Evangelhos. É um estudo de metodologia;
  • Jerusalém Anno Domini, John Wilkinson, Editora Melhoramentos
    • Estudo da cidade de Jerusalém, em especial seus aspectos físicos – com base nos últimos dados da arqueologia – na época de Jesus. Importante por constatar que as informações sobre estes aspectos, contidas nos trechos do Evangelho que se passam dentro da cidade, estão corretas (este ambiente físico deixou de existir com a destruição do templo em 70 DC, durante as operações militares romanas para a captura da cidade. Após isso os judeus foram expulsos e proibidos de entrar nela, virando suas ruínas apenas um colônia romana). A “geografia” da cidade santa conhecida no período romano tardio e na idade média estava repleta de erros e inexatidões;
  • Los Evangelios Apócrifos, Aurelio de Santos Otero, Biblioteca de Autores Cristianos
    • Estudo bastante detalhado sobre os Evangelhos Apócrifos;
  • O Evangelho conforme Mateus, Djalma Motta Argollo, Logos – Livraria, Editora e Distribuidora
    • Uma tradução do grego, comentado e interpretado de acordo com a Doutrina Espírita;
  • O Evangelho de Tomé, Hermínio C. Miranda, Editora Arte & Cultura
    • Estudo do “Evangelho de Tomé”, um dos textos gnósticos encontrados nas imediações de Nag-Hammadi (Alto Egito) em 1945, também utilizando os conhecimentos espíritas;
  • O Evangelho segundo o Espiritismo, Allan Kardec
    • Creio que seja desnecessário fazer comentários adicionais!
  • O Novo Testamento – Um enfoque espírita, Djalma Motta Argollo, Editora Mnemio Túlio
    • Estudo do Novo Testamento sob o enfoque espírita;
  • Para compreender os manuscritos do Mar Morto, Hershel Shanks, Editora Imago
    • Diversos estudos sobre os manuscritos do Mar Morto, dando um panorama geral sobre o tema;
  • Quem escreveu os manuscritos do Mar Morto, Norman Golb, Editora Imago
    • Estudo detalhado sobre os manuscritos, principalmente propondo que seu conteúdo é uma amostra importante do amplo espectro de idéias que existia no Judaismo do início da era cristã e que provavelmente representa bem mais do que somente escritos dos essênios;
  • Testemunha Ocular de Jesus, Carsten Peter Thiede e Matthew D’Ancona, Editora Imago
    • Estudo detalhado do fragmento de manuscrito (Evangelho de Mateus) existente no Magdalen College (Oxford – Inglaterra) revisando sua datação. O autor apresenta através de diversas provas das ciências auxiliares (arqueologia, critica textual, análise da escrita, etc…), o argumento de que os manuscritos tem todas as evidências de que foram escritos por uma testemunha ocular da vida de Jesus. O estudo é importante por já incorporar as novas informações trazidas pelo estudo dos manuscritos do Mar Morto (que permitem uma nova base de comparação para estilo literário, tipo de escrita, material, etc… Antes destes manuscritos não existiam bases de comparação seguras). O extraordinário dos manuscritos do Mar Morto é que tem uma data final exata para sua composição – 70 DC qdo os romanos devastaram a região em torno ao local da descoberta;

Atenciosamente,
Carlos Iglesia


* Nos Evangelhos Francisco de Assis encontrou a Dama Pobreza, em flagrante contraste com as práticas da igreja da alta idade média. Nos Evangelhos João Huss descobriu que não havia necessidade de intermediários entre Deus e o homem. Dos mesmos Evangelhos, Martinho Lutero, retirou sua profunda convicção de que a igreja renascentista necessitava de uma ampla reforma, iniciando pela questão das indulgências. Como base sólida dessa reforma, Lutero fez a tradução dos Evangelhos para o alemão, levando-os ao conhecimento do povo comum.

(Publicado no Boletim GEAE Número 407 de 26 de dezembro de 2000)

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