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Gaveta de Papéis

Gaveta de Papéis

Acho que as idéias, como os seres, os bichos e as plantas, também envelhecem
e também morrem quando se aferram à sua condição transitória, esquecidas do
apoio eterno da verdade. Isso é natural e explicável, pois que, se assim não
fosse, a lei evolutiva, que evidentemente governa o Universo inteiro, seria
impossível. De vez em quando temos de fazer uma revisão em nossas idéias, a fim
de abandonar as que não servem mais e examinar com cuidado as que se
incorporaram aos nossos arquivos psíquicos. E’ assim que evoluímos
espiritualmente, pois, afinal de contas, o Espírito tem uma vocação irresistível
para o aperfeiçoamento moral e o esclarecimento intelectual.

Mais ainda: é preciso desenvolver harmoniosamente os dois termos da equação
humana: moral e intelecto. Nem tudo pode fazer uma criatura moralizada, quando
reduzidos lhe são os recursos intelectuais, não lhe permitindo uma atividade
esclarecedora em benefício próprio e alheio. Em todo o caso, é infinitamente
melhor sermos bem evolvidos moralmente e acanhados do ponto de vista
intelectual, do que sermos grandes sábios, pejados de conhecimentos, sem uma
estrutura moral suficientemente desenvolvida. Deficiências morais e intelectuais
são transitórias; essas faculdades tendem a se ajustarem, de vez que o Espírito
às vezes se detém na sua caminhada, mas nunca recua, como ensina Allan Kardec.
Acabará o Espírito por encontrar em si mesmo o justo equilíbrio, tornando-se
moral e intelectualmente evoluído, o que, de resto, constitui seu objetivo e seu
passaporte para o mundo maior. Em suma: é muito melhor ser bom e inculto do que
sábio e imoral, mas o ideal só começamos a alcançar quando nos tornamos bons e
sábios.

Enquanto não nos bafejamos com a brisa da bondade e da sabedoria, em doses
equilibra­das e justas, precisamos, não obstante, viver, aqui e no mundo
espiritual, à medida que vamos e voltamos, em sucessivas encarnações. Ora,
vi­ver é escolher. A vida é uma série infinita de escolhas, de decisões e
resoluções. Temos de as tomar, no livre exercício do nosso arbítrio. Ninguém
pode, em sã consciência, pegar-nos pela mão e nos conduzir ao nosso destino;
temos de ir com as nossas próprias forças e recursos. Quanto mais alta a
hierarquia espiritual daqueles que se incumbem da espinhosa missão de nos guiar,
mais cuidadosos se mostram em não to­mar por nós decisão que nos compete. O que
fazem esses orientadores é nos mostrar as alternativas. Se resolvermos pelo
caminho do bem, dizem-nos, teremos o mérito das nossas vitórias; se nos
decidirmos pelo mal, ficaremos com a responsabilidade e os ônus dos nossos
erros. O Espírito, portanto, é deixado livre na sua escolha e iniciativa. Nessas
contínuas e repetidas decisões é que vamos renovando nossas idéias e treinando a
nossa vontade. O que ontem nos parecia certo, hoje pode parecer duvidoso e
amanhã inteiramente inaceitável. De outro lado, muito do que considerávamos há
pouco completamente errôneo, pode, de repente, assumir aspectos menos hostis,
até que acabamos por incorporar as novas idéias à nossa bagagem intelectual.

Há, porém, a considerar, aqui, um ponto da mais alta importância: é que tanto
podemos caminhar na direção da luz como permanecer nas trevas, tateando, ou
nelas afundando cada vez mais, conforme esteja ou não alertada aquela condição
básica a que o Mestre chamou vigilância. Se nos faltar esta que, ainda segundo o
Cristo, se fortalece com a oração (orai e vigiai), vamos aceitando idéias
indignas e dissolventes que antes nos repugnavam, mas que passamos a achar muito
naturais. Se estamos atentos, se guardamos em nós a singeleza de coração que nos
leva a receber, com humildade, não apenas as alegrias, mas principalmente as
tristezas, então as idéias que começamos a considerar são as que constroem e
educam, que aperfeiçoam e moralizam cada vez mais. E’ aí, pois, que entra em
ação a nossa capacidade de escolha e decisão. E surge a pergunta: a idéia que se
nos oferece é digna de ser incorporada à estrutura do nosso espírito ou é uma
dessas que só vão contribuir para nos dificultar a marcha? Será que não
es­taremos trocando uma idéia nova, que à primei­ra vista nos seduz a
imaginação, por uma outra que, embora velha, está escorada na Verdade? Ou,
examinando a medalha do outro lado: será que não estamos desprezando uma idéia
magnífica, apenas porque não desejamos, por comodismo ou temor, abandonar a
ilusória segurança das nossas velhas e desgastadas noções?

Essas coisas todas me ocorrem quando me lembro da dificuldade que temos para
nos livrar­mos de idéias que somente nos prejudicam. Algumas delas têm sido
mesmo responsáveis por muitas das nossas aflições e, em acentuada pro­porção,
pelo próprio retardamento da marcha evolutiva da Humanidade. Estão neste caso
alguns dos dogmas mais caros e mais irredutíveis da teologia ortodoxa. E aqui
não se distingue a teologia católica da teologia protestante. Esta última, a
despeito de todo o seu ímpeto reformista, conservou certos princípios que ainda
prevalecem, como a questão da salvação.

Espero que o leitor fique bem certo de que não pretendo atacar o Catolicismo
nem o Protestantismo. Reencarnacionistas convictos, como somos os espíritas
kardequianos, podemos estar razoavelmente certos de já havermos trilhado os
caminhos da ortodoxia religiosa. E’ bem provável que muitos de nós tenhamos até
trabalhado ativamente para propagar essas idéias dogmáticas que agora não mais
podemos aceitar. No entanto, temos de pensar sem que nisso vá nenhuma pitada de
superioridade — que aqueles caminhos ainda servem a muitos e muitos ir­mãos
nossos.

Mas, voltando ao fio da conversa, em que consiste a salvação? Salvamos a
nossa alma, diz o teólogo, das penas do inferno e vamos para o Céu, se agirmos
de acordo com os preceitos da lei moral e se praticarmos fielmente os
sacra­mentos, observando os ritos, conforme a prescrição canônica. Para a
teologia ortodoxa não basta que o homem seja altamente moralizado, bom e puro; é
preciso também que pratique os sacramentos e se conforme com a estrita
orientação espiritual da sua Igreja. O desvio, por menor que seja, é logo tido
por heresia e o seu iniciador é proscrito do meio, depois de esgotados os
re­cursos habituais de persuasão, com o objetivo de reconduzir ao seio da
comunidade a ovelha desgarrada.

Convém examinar bem essa idéia da salvação, pois esta é uma das que têm
trazido bastante dano à evolução do espírito humano. No fundo, é um conceito
egoístico: o Espírito se salva pela fé e pelas obras, diz o católico. Não, diz o
protestante, basta a fé, porque o homem é intrinsecamente pecador e sem a graça
vai para o inferno irremediavelmente. E, assim, muitos se encerraram em
claustros, passaram a viver isolados do mundo para que nele não contaminas­sem
suas almas destinadas ao Senhor, logo após a libertação da morte. Outros,
empenhados não apenas em salvar as suas próprias almas, como a dos outros,
saíram pregando aquilo que lhes parecia ser a doutrina final, a última palavra
em matéria teológica. Ainda outros, mais zelo­sos e exaltados, achavam que não
bastava sal­var suas próprias almas e convocar as de seus irmãos a fim de lhes
mostrar o caminho; era necessário obrigá-los a se salvarem, porque nem todos
estariam em condições de decidir acerca dessas coisas tão importantes. E, por
isso, aqueles que estudavam Teologia e se diziam em íntimo contacto com Deus e
agiam em nome do Senhor, se sentiam não apenas no dever, mas na obrigação de
salvar a massa ignara que nada entendia disso. “Creia porque eu creio e eu mais
do que você” — parecia pensarem estes mais agressivos salvadores de almas.
Quando o irmão recalcitrava, era preciso corrigi-lo, aplicando pe­nas que iam
desde a advertência amiga e verdadeiramente cristã, até o extremo da tortura e,
finalmente, do inacreditável assassínio frio e calculado, em masmorras infectas
ou nas fogueiras purificadoras. Disso não se eximiu nem mesmo o nascente
Protestantismo, cuja intolerância religiosa conduziu a crimes lamentáveis. Era
melhor queimar um corpo físico — pensavam todos — do que permitir que aquela
alma “rebelde” contaminasse outros seres incautos, com as suas doutrinas, e
acabasse pelos arrastar às fornalhas do inferno.

Vemos, então, que a idéia da salvação se prende solidamente a duas outras: a
do céu e a do inferno. A questão é que também estas precisam de um reexame muito
sério.

Aqueles de nós que têm tido oportunidade de entrar em contacto com Espíritos
desencarnados, ficam abismados com a quantidade imensa de pobres seres
desarvorados que não conseguem entender o estado em que se encontram e a vida no
Além, ficando numa confusão dolo­rosa por um lapso de tempo imprevisível. O
Espírito que levou uma ou mais existências ouvindo a pregação dogmática, sem
cuidar de examiná-la, praticando as mais nobres virtudes, frequentando
religiosamente todos os sacramentos e assistindo a todas as cerimônias do
ritual, sente-se, com certa razão, com direitos inalienáveis ao prêmio que lhe
foi prometido, isto é, subir para Deus imediatamente após a morte do corpo
físico. No entanto, não é isso que acontece. Quem somos nós, Senhor, já não digo
para sermos acolhidos no seio de Deus, mas para suportar com nossos pobres olhos
o brilho de um Espírito mais elevado? Que mérito temos nós, ainda tão
imperfeitos, para exigir o chamado céu, após uma vida (uma só, como crêem os
ortodoxos) em que tanto erramos, por melhores que tenham sido nos­sas intenções?
Como poderemos ambicionar chegar a Deus se nem ainda tivemos tolerância
suficiente para admitir a coexistência de outras crenças?

Daí o desapontamento daquele que morreu em pleno seio da sua Igreja amada,
protegido por todos os sacramentos, recomendado por tantas missas e serviços
religiosos, mas que, a despeito de tudo isto, ainda não viu a Deus.

Conhecemos também a angústia daqueles que, conscientes dos seus erros e
crimes, ou mesmo ainda indiferentes a eles, mergulham num clima de angústia que
lhes parece irremediável e sem fim, tal como lhes diziam que era o inferno.
Hipnotizados à idéia do sofrimento eterno, nem sequer sabem que estão “mortos”
na carne nem suspeitam que podem recuperar-se pela oração e pelo arrependimento.
Figuras sinistras passeiam à sua volta e deles escarnecem e os fazem sofrer. São
os demônios, pensa a criatura aterrada e desalentada. No entanto, são seres como
ele próprio, também desarvorados e infelizes, todos inconscientes das forças
libertadoras que trazem em si próprios e que podem ser despertadas pelo poder da
lágrima e da prece.

Tanto num caso como noutro, não há como negar, estamos diante de vítimas do
dogmatismo cego que proíbe o livre exame das questões. Enquanto na carne,
aceitavam aquelas idéias ou seriam forçados a abandonar as igrejas a que
pertenciam, se não excomungados, pelo menos proscritos do meio. E se de um lado
estão os que não se dispuseram a deixar as idéias erradas por indiferença ou
comodismo, de outro vemos os que não as deixaram por receio de não se sal­varem,
pois que uma das doutrinas prediletas das organizações dogmáticas é a de que
fora delas não há salvação. Assim, vai a criatura inteiramente despreparada para
enfrentar o mo­mento supremo da sua vida terrena, isto é, aquele em que, mais
uma vez, se encontra diante do trágico balanço da sua existência.

Por isso o Espiritismo mudou o conceito da salvação. Não dizemos que fora do
Espiritismo não há salvação, e sim que fora da caridade não há salvação. Mas
completamos esse nobre conceito explicando que céu e inferno são figuras de
ficção que já perderam sua razão de ser e, ainda, que nunca essas idéias se
conciliaram com a de um Deus justo e bom, puro e perfeito. Esse Deus, imenso de
caridade e amor, não iria criar filhos seus para as chamas do inferno
irremediável e eterno, como também não ficaria como um potentado, rodeado de
multidões a Lhe cantarem loas eternas. O que Deus quer de nós é o trabalho
fraterno e a conquista da nossa própria paz interior, palmo a palmo, com o nosso
próprio esforço, se bem que muito ajudados pelo infinito amor que Ele derrama
tão generosamente por todo esse grandioso Universo, fervilhante de vida.

Salvar-se, para o Espiritismo, não é escapar às penas de um inferno
mitológico, para subir às glórias de um céu de contemplação extática.
Salvamo-nos caminhando sempre para a luz divina, aos pouquinhos, vencendo nossas
fraquezas, caindo aqui, levantando ali, ajudando e sendo ajudados, distribuindo
as alegrias que nos sobram e recebendo um pouco da mágoa que aos outros aflige,
pois que já disse alguém que a felicidade aumenta com o dar-se e o sofrimento
alivia quando partilhado.

Salvar-se, para a Doutrina Espírita, não é escapar ao inferno que não existe,
é aperfeiçoar-se espiritualmente, a fim de não cairmos em estados de angústia e
depressão após o transe da morte, em suma, libertar-se dos erros, das paixões
insanas e da ignorância. Salvamo-nos do mal e nos liberamos para o bem, eis
tudo.

Examine o leitor as suas idéias, como quem remexe uma gaveta de papéis. Aqui
e acolá vai encontrando alguns que não servem mais e precisam ser postos fora,
como também encontrará alguns conceitos novos que, sem se saber ao certo,
juntaram-se à nossa bagagem. Estes também precisam de ser examinados com
atenção. Talvez nos sejam úteis, mas tenha cuidado com eles. Uma idéia pode ser
nova e boa e pode ser apenas nova. Pode ser velha e excelente e pode ser não
mais que uma velharia que já teve seu tempo e desgastou-se. A pedra de toque de
todas as idéias é a Verdade e esta somente nos ajuda a selecionar o nosso
mobiliário mental e espiritual quando vamos adquirindo serenidade e humildade no
aprendizado constante que é a vida, aqui e no Espaço.

(Reformador – agosto, 1964)

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